25 de maio de 2011

ícaro

Inspirado num desabafo de Milene Portela. E para ela. Para mim. Por nós todos.


Quando nascem as asas de um homem
Menino, jovem ou velho
Primeiro lhe desponta um broto nas costas
Feito o coto de um membro amputado

Que pode ser apenas isso
Um broto a florescer
Ou um toco inerte
Que esqueceu terem lhe abortado um dia

O coto comicha, repuxa a pele macilenta
E rasga o tecido morto
Para fender espaço por meio da carne
Que, latente, respira ainda

E continua crescendo em direção ao sol
Para virar pluma, tornar-se asa
Quando o segundo botão, calombo escabroso
Aponta para fora, fleimão que ele é

E a comichão aumenta, rouba o juízo do homem
Que com dois cotos às costas ainda é pássaro no ninho
Um lado mais disforme, teso e pesado que o outro
Pois ali o broto já vira tronco, com penas a fingir de espinhos

O temporão, no entanto, até agora um bulbo a coçar
Ainda é gânglio que fere o couro, lacera os músculos
E sussurra quente das estranhas, ribombada de um vulcão: "Salta"
Expondo ao dia a alma cega, acostumada ao oco do breu

Agora já não há mais cotos nem galhos a lhe pesar
Mas uma ossatura completa e flexível de um par alado
E o homem, de seu ninho finito de possibilidades
Encara o horizonte, as nuvens, o sol e o abismo

As asas recém-nascidas deixaram de coçar e repuxar
É o destino de apêndices jovens cicatrizar com vigor
Mas eles ferem mais do que um membro amputado
Pois o que já não existe não lhe pode causar inquietação

A dor tenebrosa pede passagem pelas asas agora
Quando o homem precisa lidar com o peso da liberdade
Decidir petrificar-se no ninho, atirar-se dele, rastejar ou voar
Porque nada dói mais do que a escolha de ícaro

2 comentários:

  1. porque toda e qualquer busca pela luz, pelo calor e pela liberdade dói, mas dói menos que a inércia e a comodidade da escuridão.

    que não seja ainda águia, que seja vagalume, que ainda não seja gaivota, que seja abelha, mas que o movimento esteja presente.

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  2. Lindo. Como tudo o que você pensa, faz e escreve. O que seria dessa mariposa sem você, abelhinha-operária?

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