20 de maio de 2011

karaokê


No longínquo ano de 1990 e lá vão mais alguns dígitos, os poucos, porém leais amigos que eu tinha gostavam de se entregar ao deleite patético do karaokê. Naquela época, "karaokê" significava um bando de garotos amontoados na Praça da Matriz, cabulando a aula de Educação Física e cantando a plenos pulmões, sem microfone e muito menos tela de LCD com o videoclipe da música e as legendas amarelas correndo lá embaixo. Nostalgia à parte, a brincadeira era muito melhor daquele jeito: o céu era sempre azul; o sino da igreja soava alto, assustando a molecada; as mochilas de borracha ficavam sujas de terra e de grama; perdíamos os papéis avulsos do dever de casa; gastávamos o trocado para o ônibus com picolés e pipoca; penteávamos os cabelos uns dos outros; fingíamos ser politizados e discutíamos sobre a influência imperialista norte-americana; líamos os gibis da Marvel; paquerávamos os garotos e garotas dos nossos sonhos, que nunca vieram a ser realidade; prometíamos que, num dia de muito calor, nadaríamos no chafariz da Praça; ríamos às gargalhadas, até nos faltar o ar; subíamos na parte mais alta do coreto. Éramos jovens imperadores, semi-deuses, felizes, ridículos, imortais; e cantávamos.

Músicas de letras fáceis não nos agradavam. Nada deliberadamente gratuito ou fácil demais prendia a nossa atenção juvenil e embasbacada por mais de quinze minutos, nem mesmo o Andy Warhol em pessoa, pintando a Marilyn nas paredes da escola ou nos hábitos das freiras. O desafio era o que nos fazia rolar o sangue mais quente, mais rápido e mais vivo nas veias: duelos físicos e intelectuais; ser o primeiro da classe; ser o líder nos esportes; ser o mais engraçado, o mais tolo e o mais galanteador; beijar a moça mais bonita; namorar o rapaz mais promissor; tirar dez em Física; falar alguma coisa muito espirituosa para constranger a professora baixinha, loirinha e boazinha de Trigonometria; e cantar "Faroeste Caboclo", "Nowhere Fast" ou qualquer outra canção rápida e sem refrão. Esse era o nosso karaokê. E nele havia o mais mortal, (des)honroso e inesquecível dos desafios: ver qual de nós seria capaz de cantar a música inteira, sem sair do ritmo, desafinando pouco - melhor seria se não desafinássemos nada - e, glória máxima do olimpo adolescente, sem errar a letra.

Lembro-me de uma garota sardenta, de longos cabelos castanhos e olhos esverdeados, que vivia com uma caneta pendurada ao pescoço por uma cordinha de poliéster. Ela tinha diversas dessas canetas, cada qual de uma cor mais vibrante e cítrica do que a do dia anterior. Os traços de seu rosto não me escaparam à memória; o seu nome, sim. Quando os garotos falavam qualquer coisa que a aborrecesse, ela retirava a caneta do pescoço e girava-a pela cordinha, tal como o faria um vaqueiro com o seu laço, prestes a capturar o touro. Os meninos mais lentos não escapavam e voltavam para a casa com um pequeno "galo" na testa; os mais espertos fugiam das chibatadas e, livres, vitoriosos e arrogantes, corriam até o topo da Praça, rindo-se da amazona das canetas. Ela era a única, entre dezenas de garotas e garotos espinhentos, que sabia cantar "Faroeste Caboclo" inteira, sem errar. Mas o que nos assombrava mesmo era quando ela o fazia de trás para frente; então, boquiabertos, ficávamos mudos, num silêncio que era mais um sinal de temor do que de respeito, e encarávamos o rosto dela, a sua boca, seus olhos verdes que faltavam faiscar e a caneta, que ela girava no dedo indicador, distraída, para acompanhar a batida da canção.

Mas houve um desafio que ninguém foi capaz de vencer: cantar "Nowhere Fast", uma das várias canções do filme "Ruas de Fogo", de 1984, em que Diane Lane, jovem, lisa e fresca como um cisne, faz o papel da mocinha roqueira que é seqüestrada pelo bandido, motoqueiro e igualmente roqueiro Willem Dafoe. O mocinho, na época aspirante a galã - ou talvez o fosse de fato, não saberia dizer - sumiu na poeira imperdoável do tempo. De qualquer forma, ele é um mero coadjuvante no enredo: fala pouco, bate um pouco mais, não canta e só pilota motocas alucinadas e faz umas caretas de "vou conquistar o seu coração, baby. For-ever!". "Ruas de Fogo", assim como "Top Gun", "De Volta Para o Futuro", "Goonies" e "Curtindo a Vida Adoidado" eram apenas algumas das obsessões cinematográficas daquela época e entre a nossa faixa etária. Melhor do que assistir aos filmes, era esperar que eles fossem reprisados na Sessão da Tarde para que pudéssemos gravá-los em fita VHS. Nenhuma conveniência moderna, como a interatividade do assinante na programação da TV da Gisele Bündchen, nenhum DVD blu-ray, nada se equipara à excitação da espera pela reprise naqueles tempos: desmarcávamos compromissos, deixávamos de estudar para a prova, não atendíamos ao telefone, tudo para ficar de olhos grudados na tela e ouvidos atentos ao plim-plim para, só então, apertarmos o botão de REC e respirarmos aliviados.

    
"Nowhere Fast" é ágil e vigorosa; sua letra é longa, rápida e complicada e até hoje, confesso, só consigo cantá-la se acompanhada de um papel com a letra impressa em caracteres grandes, em negrito, de preferência; "Faroeste Caboclo", também. Pois é; certos desafios são insuperáveis e certas distâncias, intransponíveis, ainda que o tempo sopre, levante a poeira, cubra algumas estátuas no jardim e revele outras. Há estátuas que, quando escondidas, fazem-nos levantar as mãos para o céu e agradecer a anjos e demônios por isso; outras, quando surgem - ou ressurgem - dão um frio na barriga, que vai subindo pela espinha feito uma serpente úmida e maliciosa, que nos hipnotiza a mente e cerra-nos os olhos. Esse é o mal do tempo: ele passa e não volta; e nós, peões de um xadrez arbitrário, viramos estátuas de sal ao olhar para trás. Ou empacamos de puro terror de andar para a frente.

A música que derrotou cada um dos meus amigos inflados de auto-estima e segurança fala sobre isso, ainda que de uma maneira muito anos oitenta, com baterias retumbantes, guitarras estridentes e, o que não poderia ser mais óbvio, um coral. Fala também da juventude que transborda sonhos, ambições e vontades, mas que tem poucos objetivos e metas para aonde direcioná-los. Nada muito complexo, na verdade; a mensagem é clara: mesmo que você não tenha lugar algum aonde ir, vá depressa para lá e, acima de tudo, fuja do passado; não há nada errado em não ter para aonde ir, mas você deve ir. E rápido.

Nos idos de 1990 e mais alguns dígitos, eu ouvia essa música, tentava decorar a letra para impressionar os meus amigos e, quem sabe, fazer ainda mais bonito do que a menina das canetas (a do "Faroeste Caboclo"), mas nunca reservei cinco minutos para entender o que a cantora dizia. E este é outro mal do tempo: insistimos em revisitar as coisas e, de repente, boo! Elas fazem sentido. E o que antes era apenas melodia, vira elucubração mental. Talvez eu esteja apenas muito nostálgica, ou talvez a chegada do frio tenha me azedado um pouco, o que é bom, na verdade, pois assim tenho inspiração para escrever essas bobagens que poucos lêem e menos ainda comentam. Acaba de me ocorrer uma frase que ouvi de uma analista de uma amiga (essa história de "amiga" às vezes cola, então não me custa nada tentar). Segundo ela, o escritor feliz não produz. É preciso dor, mágoa e nostalgia para que os pensamentos virem palavras escritas. Tenho um amigo - e esse é real, garanto - que desaprova o uso de palavras viscerais em meus textos. Mas, para o exemplo acima, não consigo pensar em outro verbo senão "digerir". E "vomitar". Segundo a lógica da analista, o escritor digere a tristeza, vai ruminando a dor e, então, vomita poesia, prosa, conto ou um Prêmio Pulitzer. Nunca se sabe...

Voltei a ouvir "Nowhere Fast" numa época da minha vida em que, eufemismos às favas, não tenho ido a lugar algum. A bem da verdade, sou um barco velho e carcomido por traças, ancorado por mil correntes a um porto fustigado por tempestades e granizo. Vejo o mar, as ondas quebrando na praia, as caravelas ganhando distância e, inerte, canto a música de "Ruas de Fogo". Mas, então, a medida que o ritmo vai crescendo, sinto uma vergonha e um pesar imenso de não me aventurar em mar alto, mesmo que seja para naufragar. Porque morrer na praia não é apenas patético; é a prova cabal de que a vida passou e que você a viu de longe, pela janela exígua do porão do navio. É um atestado indelével, humilhante e doloroso de covardia. Nos anos noventa eu tinha tanta coragem, tantos sonhos e tanto querer... Não sabia exatamente para onde ir, mas caminhava. E rápido. Como diz a canção: "não sei de onde tirei a idéia genial de que eu era legal, tão só e independente". Pois é. Certos desafios existem mesmo para serem apenas isso: desafios.

"Lying in your bed and on a Saturday night
You're sweatin' buckets and it's not even hot
But your brain has got the message
And it's sending it out
To every nerve and every muscle you've got

You've got so many dreams
That you don't know where to put 'em
So you'd better turn a few of 'em loose
Your body's got a feeling that it's starting to rust
You'd better rev it up and put it to use

And I don't know how I ever thought that I could make it all alone
When you only make it better
And it better be tonight
And we'll fly away on those angel wings of chrome in your daddy's car
Waiting there for you tonight
I'll be there for you tonight

Even if you don't have anywhere to go
You go down on the pedal and you're ready to roll
And even if you don't have anywhere to go
You go down on the pedal and you're ready to roll
And your speed
Is all you'll ever need
All you'll ever need to know
Darlin', Darlin'-

You and me we're goin' nowhere slowly
And we've gotta get away from the past
There's nothin' wrong with goin' nowhere, baby
But we should be goin' nowhere fast

Everybody's goin' nowhere slowly
They're only fighting for the chance to be last
There's nothin' wrong with goin' nowhere, baby
But we should be goin' nowhere fast
It's so much better goin' nowhere fast

Stalkin' in the shadows by the light of the moon
It's like a prison and the night is a cell
Goin' anywhere has gotta be heaven tonight
'Cause stayin' here has gotta be hell
Dyin' in the city like a fire on the water
Let's go runnin' on the back of the wind
There's gotta be some action on the face of the earth
And I've gotta see your face once again

And I don't know where I ever got the bright idea that I was cool
So alone and independent
But I'm depending on you now
And you'll always be the only thing that I just can't be without
And I'm out for you tonight
I'm comin' out for you tonight

Even if you don't have anywhere to go
You go down on the pedal and you're ready to roll (ready to roll)
Even if you don't have anywhere to go
You go down on the pedal and you're ready to roll
And your speed
Is all you'll ever need
All you'll ever need to know
Darlin', Darlin'

You and me we're goin' nowhere slowly
And we've gotta get away from the past
There's nothin' wrong with goin' nowhere, baby
But we should be goin' nowhere fast

Everybody's goin' nowhere slowly
They're only fighting for the chance to be last
There's nothin' wrong with goin' nowhere, baby
But we should be goin' nowhere fast
It's so much better goin' nowhere fast

Godspeed
Godspeed
Godspeed
Speed us away!" 

2 comentários:

  1. eu acho que eu devia te dar uma canetada na testa às vezes para que vc possa rock your boat. navegue, girl! há outros barcos que te escoltarão. vc não sabe disso?
    posso ser uma canoa, mas ó, corto as ondas que puder cortar. ;)

    you've got a sailor in me. and a harbor, as well.

    ResponderExcluir
  2. Ah, minha amiga, eu sei disso. E como sei. E como preciso de canetadas na testa... E de barcos. E o seu, embarcação pequena por fora, comporta o mundo por dentro. Eu amo você, amiga.

    ResponderExcluir