31 de maio de 2011

paraíso

Para Adelaide e Alceo, que me dão asas, ainda que isso lhes doa; para Helena e seus filhos; para Milene, Cristina, Cristiane e Eduardo, que não me deixam esquecer de que o paraíso pode, sim, existir. Da maneira que o pintarmos.
Isso aí é um pedaço das Maldivas; o paraíso para muita gente

"Longe de casa

Há mais de uma semana
Milhas e milhas distante
Do meu amor
Será que ela está me esperando
Eu fico aqui sonhando
Voando alto perto do céu
Eu saio de noite andando sozinho
Eu vou entrando em qualquer barra
Eu faço meu caminho
O rádio toca uma canção
Que me faz lembrar você, eu
Eu fico louco de emoção
E já não sei o que vou fazer
Estou a dois passos do paraíso
Não sei se vou voltar
Estou a dois passos do paraíso
Talvez eu fique, eu fique por lá
Estou a dois passos do paraíso
Não sei porque que eu fui dizer bye bye
Bye bye, baby, bye bye
-A Rádio Atividade leva até vocês
Mais um programa da séria série
"Dedique uma canção a quem você ama"
Eu tenho aqui em minhas mãos uma carta
Uma carta d'uma ouvinte que nos escreve
E assina com o singelo pseudônimo de
"Mariposa Apaixonada de Guadalupe"
Ela nos conta que no dia que seria
O dia do dia mais feliz de sua vida
Arlindo Orlando, seu noivo
Um caminhoneiro conhecido da pequena e
Pacata cidade de Miracema do Norte
Fugiu, desapareceu, escafedeu-se
Oh! Arlindo Orlando, volte
Onde quer que você se encontre
Volte para o seio de sua amada
Ela espera ver aquele caminhão voltando
De faróis baixos e pára-choque duro
Agora, uma canção, canta pra mim
Eu não quero ver você triste assim
Estou a dois passos do paraíso
E meu amor vou te buscar
Estou a dois passos do paraíso
E nunca mais vou te deixar
Estou a dois passos do paraíso
Não sei porque eu fui dizer bye bye..."


Figuras como o Evandro Mesquita são dessas que, como se diz em bom, popular e irresistível português, fizeram e jogaram a forma fora; não têm igual. A década de 1980 é igualmente ímpar. Tentamos risivelmente copiar aquilo que, há trinta anos, eram as últimas tendências; vezenquando um artista doido o suficiente para colocar a sua reputação no páreo dos índices de popularidade arrisca-se a fazer um estilo Mesquita ou Paulo Ricardo, mas não tem jeito. Tem coisas que nem a Philco faz por você. E, outras, que nem o Mastercard faz valer à pena.

Estou longe. Milhas e milhas distante, mas já faz mais de uma semana. Tenho estado na estrada há tanto tempo que, créditos devidamente concedidos ao Almir, já virei a própria estrada. O problema do indivíduo que se transforma em estrada é que, de uma maneira inexorável e muito estúpida, perde a noção do que é casa. Então fica milhas e milhas distante não se sabe do que. O Evandro é um sujeito esperto. Escreveu a letra de uma canção moderninha para a época, que cola na memória à base de Super Bonder e que, no final das contas, é uma gracinha; toda canção de amor é adorável. A "casa" do Evandro é a "baby" da canção, o seu amor. A coisa parece banal, mas não é. Associar o amor à casa é genial. E se o cantor suspira melodicamente que está longe de casa há mais de uma semana, milhas e milhas distante do seu amor, cara-pálida, não tem tempo ruim nem desacordo com a Hora do Brasil: mesmo a dois passos do paraíso e voando alto, perto do céu, ele não entra; volta para casa.

A dor maior de quem está longe de casa há mais de uma semana não é a falta da casa - leia-se, do amor. É estar a míseros dois passos do paraíso e não entrar; é ver as delícias dos sonhos mais íntimos pela greta da porta e saber-se falível, sentir-se culpado ou sozinho demais e, rabo entre as pernas, fazer o caminho de volta. Viagem é um lance que sempre mexeu comigo. Não viagem de ônibus, avião, trem ou balão, muito menos essa pseudo-psicodelice de viagem astral. O que me faz fritar os miolos são as odisséias. O Ulisses, por exemplo: saiu de casa, deixou a esposa, Penélope, tecendo um manto pela manhã e desfazendo o trabalho à noite para evitar os pretendentes à mão da recém-abandonada castelã, ficou vinte anos fora, participou da batalha mais famosa da história, apaixonou-se por Calipso e morou com ela na mais paradisíaca das ilhas, foi tentado pelas mais sexy harpias e, barbudo e reconhecido apenas por seu velho cão de guarda, retornou. Ulisses não esteve apenas a dois passos do paraíso; ele vivenciou o paraíso. Ocorre que o mais famoso dos odisseus tinha uma casa para onde retornar - um amor - mesmo que essa casa e aquele amor fossem-lhe mais idealizados pela memória do que vividos pela experiência. Jogue a primeira pedra quem, como eu, não achou o Ulisses o barbudo mais babaca entre os gregos.

O Evandro, que de Odisseu e troiano não tem nada, se faz de besta e diz que fica ali sonhando, se perguntando se a moça está esperando por ele em casa. Ora, é claro que está e ele bem o sabe. Se não houvesse uma baby, um cachorro velho ou mesmo uma torradeira ligada à tomada, é óbvio que ele não ficaria a apenas dois passos do paraíso; ele já teria caído dentro e abraçado o capeta. Ah, sim. Esqueci de explicar: no paraíso há tudo, menos querubins rechonchudos, carpideiras e carolas de vestidos cinza rezando o padre-nosso. Paraíso não é exatamente a minha especialidade, mas algo me diz - intuição, mandinga, neurose, vá saber - que ele deva ser como aquela pantomima que o Bosch pintou num tríptico do século XVI. O centro é o Jardim das Delícias Terrenas; o diacho é que, nas asas laterais, o pintor retratou um inferno para lá de dantesco. Vá lá. Nem tudo é, ou poderia ser perfeito. Assim sendo, no paraíso ou no inferno, já que a odisséia começou, beije Calipso, amontoe centenas de gregos num cavalo de pau, abra as portas do paraíso, espie à vontade, entre, decida se vai ou se fica e abrace o capeta, seja ele ou isto o que for.

Paraíso é feito futebol, mulher, carro e política: não se discute. Cada um tem o seu. Durante um tempo o meu paraíso foi uma estrada de terra batida, um curral com cheiro de leite fresco e os meus tios e primos reunidos na varanda da casa, no escuro, sem rádio, televisão, nem internet para encobrir o vazio do silêncio. A gente ficava sentado nuns bancos de madeira compridos, vendo o baile dos vagalumes que sobrevoavam o arrozal. E, o supra-sumo do éden, contávamos casos. Aquele era o meu paraíso particular. Eles adoravam as histórias que eu tinha para contar, eram todos ouvidos, eu era o centro daquele pequeno universo e era inacreditavelmente feliz. Em julho, quando a noite fazia a molecada bater os queixos de frio e a lua-cheia criava sombras no chão, a gente cismava de ir à casa de um tio que era dono de um bar e de uma pista para jogo de malha. Íamos a pé, chutando o saibro da estrada, de olhos atentos ao chão para colher umas pedrinhas pretas e brilhosas que, muitos anos depois, aprendi que se chamavam magnetitas. Nessas caminhadas, também pregávamos os sustos mais mirabolantes num moleque medroso, o Dim, que todos amávamos. Naquelas noites de lua, em que o cheiro das damas-da-noite inebriava e marcava a memória como a ferro e fogo, indelével, o paraíso era mais do que real. Era palpável.

Nossos conceitos e expectativas mudam e, com eles, a acepção do paraíso. Houve um tempo em que também o éden se modificou para mim: tornou-se uma terra cercada de montanhas, onde eu acreditava poder construir uma identidade própria, sem seguir as pegadas de ninguém. Então, o anonimato e a liberdade que, de tão liberta, chegava a efervescer no peito feito uma pastilha de Alka Seltzer engolida a seco, eram o foco no meu jardim das delícias. Não demorou muito para que eu entendesse que, cercada por morros de pedras e incógnita entre milhares de ignotos, a solidão faz qualquer mero e ridículo mortal virar Odisseu; eu quis uma casa. Desejei o retorno. Fiz rotas elípticas em torno de mim mesma, mordi o próprio rabo e cumpri o legado nietzschiano necessário, ainda que doloroso, do eterno retorno. Vá lá. Nada pode, mesmo, ser perfeito. Do contrário, estragaria o cenário do Bosch.

Chegou o tempo, enfim, em que imaginei que o conforto do ninho, este sempre à minha espera, sob as asas - leia-se "galhos" - frondosas dos pais e a segurança tentadora, prática e irrecusável de um destino certo pudessem ser o paraíso. E, então, não eram dois, nem três, nem um passo adiante dele: eu comia, bebia, respirava e digeria o paraíso diariamente. Não havia casa para aonde pudesse voltar, nenhum "baby" a me esperar; lá era a casa e, ao meu lado, o baby devorava-me com olhos pidões, inocentes, castanhos como os meus. Mas, então, também não havia um amor. Ah, claro. Amor paterno, de mãe e de filho há aos litros, aos borbotões. E não existe plataforma mais segura, perene e aliviante do que a certeza do amor de seus pais e da admiração e da dependência de um pequeno rebento.

Mas e quanto ao amor próprio? O que pensar, esperar ou fazer com os sonhos guardados na concha do caracol, que carrega a casa às costas e, lentamente, vai de um lugar a outro? Haverá uma receita para que sejamos pura sensatez e apague da memória os desejos de andar com os próprios pés, mesmo que seja para o lugar errado, para longe de casa e por mais de uma semana? Alguém aí pode me ensinar a não sonhar ser mais do que já fui, a não querer ser diferente daqueles que mais amo, a podar os cotos das asas que teimam em brotar? Ah... É tão mais confortável ser caracol. E ser sozinho. E não precisar de um amor não-filial, não-paterno, não-materno, não-pátrio. Confortável, eu disse. Mas doloroso, oco, cinza, pálido e irreal.

Se eu tivesse o talento do Bosch para a pintura, o meu tríptico já teria um tema. Asa lateral direita: mulher, homem, indivíduo. A escolha. Painel central: homem, mulher, indivíduo, filhos. A caminhada; cada um na sua mas com tudo o que realmente importa em comum. Asa lateral esquerda: o bizarro fundamental; ser filho (a) e pai (mãe) ao mesmo tempo. Está aí a dualidade que ultrapassa os limites maniqueístas entre o paraíso e o inferno do Jardim das Delícias, a realidade confusa e angustiante que foge à compreensão lógica e enlouquece a balança da afetividade. Suspendo os dedos do teclado por uns segundos; olho pela janela do apartamento - céu azul-leitoso; ouço um ônibus frear, um helicóptero distante, uma buzina. E penso: quem sou eu? Filha, mãe, mulher, indivíduo. Em busca. Sempre. Da unidade e do amor que, refugiado do cinismo, da amargura e das chagas que ainda faltam sarar, acredito ser a cola para tantas facetas. Sou brasileira, idealista, apaixonada, passional, tresloucada, kamikaze. E não desisto nunca.

Dia desses uma amiga que, sem fazer esforço, habitou-se em meu peito, contou-me algo de que jamais me esquecerei. Ela disse que um filho adultesce apenas quando vê os próprios pais como crianças. Estávamos tagarelando há mais de três horas numa mesa de um restaurante que ela adora, comendo lingüiças à paisana; não as lingüiças. Nós. Ou melhor, ela. Seus filhos, hoje grandes meninos adultos, a proíbem de degustar uma iguaria tão deliciosa e, no entanto, gordurosa. Ela não dá a mínima. Ou quer que pensemos isso. Ela é misteriosa, quiçá meio cigana. Quem esses meninos pensam que são para querer me tratar como criança? - dizem os seus olhos marotos. Entretanto, bem lá no fundo, ela adora essa preocupação, essa supervisão materna às avessas: é a prova de que seus meninos, para sempre meninos, cresceram. Naquele final de tarde, com uma amiga, duas latas de coca-zero e lingüiças à parmegiana, digo, à paisana, entendi o pecado original do meu paraíso-ninho: com pais que vejo imensos e frondosos como carvalhos imortais, infalíveis e super-poderosos, não adultesço. Projeto-me às metades: meia-mulher, meia-mãe, meia-filha, meio-indivíduo. E o meu paraíso é ser inteira, lua-cheia, como a das noites frias na roça, fazendo sombra no chão e iluminando o lago onde os meus pais, de mãos dadas, olhos atentos ao neto, poderão me ver grande, brilhante e una como eles.  

Há quem seja entusiasta da mudança; tipos que tatuam na testa que preferem ser metamorfoses ambulantes a ter aquela velha opinião formada sobre tudo. Confesso: tenho opiniões estritamente formadas sobre muito pouco, outras em processo de formação e, algumas, não chegam a me convir. No entanto, a idéia de ser uma partícula magnetizada, cujos elétrons giram em torno de si mesmos num spin alucinado, alterando a polaridade da matéria em frações de segundos imperceptíveis, não me agrada. Talvez a metamorfose ambulante já tenha exercido um baita apelo sobre mim; hoje, as linhas retas, que eu possa traçar e definir, falam-me mais alto à alma. Quanto a ter opiniões formadas sobre tudo, bem, isso já deve ser um inferno de proporções neurotizantes.

O Evandro, que de troiano, baiano, poeta e blogueiro não tinha nada, escreveu uma canção inteligente. Qual seria o paraíso de que ele distava dois passos? Ácido? Óbvio demais. E nada óbvio me apetece. Fama? Talvez. Um chalé em Petrópolis? Quem sabe. Mas encerro uma certeza: a carta que ele narra na Rádio Atividade, escrita pela Mariposa Apaixonada de Guadalupe para o caminhoneiro Arlindo Orlando, é dele. Ou melhor, para ele. Evandro é Arlindo; e a sua baby, o seu amor, a sua casa, é a Mariposa Apaixonada. Penso que os faróis baixos vêm da tristeza de quem conheceu Calipso e encontrou - ou pensou ter encontrado o paraíso, mas sabe que é em casa que mora a segurança. Os pára-choques duros podem denotar a libido do reencontro, o que descarto, porque também é muito óbvio. Prefiro acreditar que a dureza veio da dor da odisséia, da aventura, dos encontros e desencontros consigo mesmo, das descobertas, das desilusões, do retorno. Um viajante - caminhoneiro ou Odisseu - precisa endurecer, formar crostas, pregar ao corpo uma armadura que o proteja nas próximas jornadas. Apenas um elemento me escapa nessa "viagem" do Evandro: quando ele se pergunta "não sei porque eu fui dizer bye, bye", para quem ou para o que exatamente ele disse adeus? Para a Mariposa, o amor e a casa, para início de conversa, ou para o paraíso, no qual ele nem chegou a entrar? E, de volta para buscar a amada, ele a levará consigo ao paraíso...?

4 comentários:

  1. Alberto Lacerda4.6.11

    Roberta, é impressionante sua capacidade de criar textos incríveis ,apaixonantes e emocionantes,partindo as vezes de um simples cometário ou pergunta que lhe foi feita,ou como você fez agora,sobre a letra dessa canção.Como sempre,belíssimo texto.Quanto a questão se ele á levará consigo ao paraíso,acho que sim,levanto-se em conta o final da música.
    Estou a dois passos do paraíso
    E meu amor vou te buscar
    Estou a dois passos do paraíso
    E nunca mais vou te deixar


    Será que ele cumpre as palavras,ditas num momento de solidão?distante de casa?mesmo que seja a dois passos do paraíso?

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  2. Eu não sei, Alberto. De verdade. Há pessoas que só conseguem o paraíso sozinhas. Não é o meu caso, mas...

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  3. Anônimo16.11.11

    Não tenho muitas palavras para descrever seu blog, apenas, LINDO.

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  4. Muito obrigada, Anônimo. Com uma frase curta, direta e simples, você conseguiu me emocionar. E muito. Por este e outros pequenos presentes, vale à pena escrever. E viver. Abraço grande.

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