24 de maio de 2011

o melhor bolo do planeta

Para a Manu, que é como o Carlos, nos melhores sentidos. E para os meus pais, que também souberam cozinhar o seu próprio destino.


Em 1987, um economista português que atende pela alcunha de Carlos Brás Lopes, decidiu chutar o pau matemático da barraca - ou o pau da barraca matemática; aqui a ordem dos fatores altera, sim, o produto. Conto-lhe a equação, digo, a história, e você aplica a fórmula de Bhaskara para decidir o resultado. Enfim, foi preciso que o sujeito, não por ser português, mas por ter sucumbido ao seu lado demasiado humano, cursasse cinco anos de Faculdade, sobrevivesse a um casamento falido e se deparasse com outro já a lhe bater às portas, para descobrir que taxas de juro, equações variáveis e oscilações da bolsa de valores jamais lhe alimentariam da paixão que ele precisava para dar um passo após o outro, com significado e valor; algo muito diferente dos passos trôpegos e incertos dos autômatos, que vivem imobilizados pela culpa de tentar e pela certeza da covardia em desistir de seus sonhos, suas paixões e ambições. Esse é o problema dos sonhos e da resposta ao chamado das vocações: você é obrigado a sair da inércia antes que um bonde lotado de gente com bilhetes para o futuro lhe passe por cima, estraçalhando-lhe os sonhos e amputando-lhe as vocações. Estar no bonde é melhor e mais recomendável do que fora dele, atolado no meio do caminho entre a culpa e a redenção.

Porque Carlos Brás é um português inteligente, logo percebeu que, uma vez autômato e trôpego como um economista, o bonde do futuro - e do inexorável avanço do tempo - logo chegaria à sua estação fantasma e , na correria da vida, para chegar mais rápido ao futuro, não pararia para ele. E isso não seria culpa do maquinista, que conduz o bonde igualmente para todos - nós é que escolhemos a modalidade da passagem: rápido, allegro ma non troppo, devagar, quase parando e ausência de bilhete. O fato é que, de longe, o que o condutor do bonde avista no ponto não é Carlos, o economista. É um Pedra Carlos cor de cimento, semelhante a uma forma humana, sentada com os ombros encolhidos, olhando para o nada. Mas o maquinista sabe bem, não é nada bobo, que rochas não possuem ombros, nem se sentam e muito menos olham para o vazio. O rapaz que conduz o bonde lotado para o futuro sacode a cabeça, esfrega os olhos com as costas das mãos, belisca-se para ter certeza de que não está a sonhar e olha novamente, cada vez mais próximo do ponto. Não, aquilo não poderia ser um passageiro. E pensa: "Como as rochas podem adquirir formatos tão peculiares, como os de corpos humanos petrificados?" Desnecessário afirmar que o bonde não parou para Carlos. E, por pouco, na velocidade de quem se move, que é sempre mais alta em relação ao que jaz inerte, quase não lhe amputa os braços, outrora estendidos em busca da redenção, fruto da culpa por sonhar.

Foi pelo susto na estação que Carlos Brás, o economista português, decidiu fazer como a Cecília aconselha: substituir o destino pela probabilidade. Ele pensava que o seu destino estivesse selado às estatísticas, aplicações e previsão de mercados. Mas qual seria a probabilidade de o português ser bafejado pela sorte de encontrar sentido na vida, seguindo um destino que, a cada manhã, ele se perguntava ser legitimamente seu...? Fez algumas contas, utilizou-se dos números como sabia e pesou o destino e a probabilidade. O segundo prato rendeu a balança. E Carlos, num átimo epifânico, concluiu que jamais passaria pelo embaraço de ser confundido por uma pedra novamente. Foi então que ele chutou o pau da barraca.

Ocorre que uma tenda veio ao chão, mas outra já estava pronta para ser armada e servir-lhe de morada. O Carlos, ex-economista, descobriu que gostava de caçarolas, panelas, tabuleiros, pratos, taças, colheres, batedeiras e claras em neve. E descobriu que podia, literalmente, pôr as mãos na massa e, eventualmente, ganhar dinheiro com isso. Abriu um restaurante de comida regional em Lisboa. Virou chefe de cozinha, feliz da vida. Então, o português criou uma receita de bolo de chocolate, ingrediente que acreditava ser imprescindível a qualquer um que desejasse, como ele, abraçar a probabilidade e se livrar do peso do destino. Fato: o bolo de chocolate do Carlos se tornou a estrela do cardápio. Conta-se em Lisboa que havia quem fosse ao restaurante já alimentado, só para pedir o doce, prato principal da casa. Há duas possíveis razões para o sucesso do bolo: ele é realmente, escandalosamente delicioso ou, versão em que prefiro crer, o chocolate usado na receita trazia a paixão, a vitalidade e a leveza da probabilidade aos estômagos pesados de destinos indigestos.

Esse é o Carlos. E, aquele, é o bolo.

Não demorou muito para o Carlos precisar abrir outro negócio. Não pense você que o português optou por uma filial do primeiro restaurante; já lhe disse, portugueses são inteligentes. Dessa vez, ele abriu uma pequena confeitaria, só para vender a sobremesa. Chamou o estabelecimento de "O Melhor Bolo de Chocolate do Mundo". Quando alguma coisa vem a ser a melhor coisa do mundo, não pode ser complicada; há apenas três versões da iguaria: tradicional doce, com 53% de cacau; meio-amargo, com 70% de cacau; e zero açúcar, para diabéticos e magras por opção, que também têm o direito de experimentar o melhor bolo de chocolate do mundo. A receita não leva farinha, nem fermento - o que corrobora a tese do Carlos e da Clarice de que o destino pode ser suplantado pela probabilidade. Afinal, receita de bolo não é apenas uma receita de bolo, com ovos, leite, farinha e fermento...? Pois é, cara-pálida. O melhor bolo de chocolate do mundo não segue a receita do destino.

Algum tempo depois, o português, com o seu velho espírito de colonizador, trouxe a franquia para o Brasil. A primeira aportou em São Paulo. Em seguida Brasília, Rio de Janeiro e Salvador também foram sitiadas pela guloseima. E o negócio é feito uma bola de neve, ou melhor, de chocolate, rolando e se agigantando até tomar todas as capitais tupiniquins. As lojas seguem o mesmo padrão da primeira confeitaria inaugurada em Lisboa, em 1987, e a receita é a mesma; um meio-amargo do Leblon é idêntico ao meio-amargo do Morumbi. O Carlos é exigente e honesto; se o sol brilha para todos, o seu bolo será o melhor do mundo em cada canto do mundo onde alguém quiser prová-lo.

Talvez um dia eu visite Lisboa. Dizem que é uma cidade encantadora. E se isso acontecer, talvez eu faça malabarismos incríveis para atrair a atenção do Carlos e ter uma prosa com ele. Talvez ele, um lusitano sonhador e corajoso, tenha compaixão pelo meu dilema brasileiro de não desistir nunca, engolir o destino a seco e fingir que a probabilidade de ser infeliz não existe. Tenho encontrado um bocado de gente que, para lá dos quarenta anos, faz como o Carlos: chuta o pau da barraca que não lhe cabe mais e parte para outra. Se isso acontece, é porque muita gente não engole o destino que pensava ou acreditava ser o seu e, com medo de ser atropelado pelo bonde do futuro, passa a escrever um novo roteiro, com probabilidades que se tornam possibilidades, sonhos que viram objetivos, um destino próprio, diverso e renovado. Se o melhor bolo de chocolate do mundo ajudar nesse processo, o meu preferido é o tradicional doce, com uma bola de sorvete de creme. E eu substituiria todas as refeições insossas de arroz com feijão da vida pelas guloseimas que têm o gosto incomparável do destino reescrito. 

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