20 de junho de 2011

balança(o) mas não cai(o)



até bem depois de 23 de junho, quando eu deveria estar desaniversariando, e não o contrário. Para tornar a coisa toda ainda mais dramática, o dia cai num feriado de Corpus Christi; 33 anos, a idade de Cristo, a minha. Esse é um daqueles momentos em que a mulher começa a pensar em Honoré de Balzac e passa a considerar aventuras envolvendo asa-deltas, arranha-céus ou selvas africanas. Tudo vale a pena quando a grana é pequena. Ah, claro. E quando se é oficialmente uma balzaquiana. 

tombos, escudos e um bunker

Para Marcelo Akstein


O que você faz quando, em galope alucinado, cai do cavalo? Estirado ao chão, as pernas dormentes pelo tombo, o rosto colado ao solo, o pó invadindo-lhe as entranhas pela garganta, arranhando a faringe, sufocando, roubando-lhe o ar? Cada osso seu parece estilhaçado, cada músculo a ponto de se lacerar, abrir uma fenda maior que o mundo, jorrar o sangue que o mantém vivo, encharcar a terra, matar a sede de vida da terra? Você gira os olhos, procura ver onde caiu, se é noite ou dia. Espalma as mãos no solo, mexe a cabeça e cada movimento seu é um estirar de dor latejante, excruciante, vergonhosa. Os segundos parecem se congelar num tempo que cessou de existir. Você está mudo, a boca seca, os lábios rachados. Sua voz não passa de um chiado rouco e você, como a terra, tem sede. Mas o solo de quem cai é estéril, inóspito e desolado e não há água, chuva, nem fonte. Ao cavaleiro tombado não são permitidas miragens. Você está num deserto, mudo, dolorido, colado ao chão, como uma sombra fria e comprida de final de tarde. É sempre fim do dia quando se cai. A noite não tarda a chegar, cobrindo-o com um manto sem estrelas, sem lua, sem luz. E, então, a dor e a aflição não vão bastar; a solidão vai chegar para lhe fazer companhia assim que a noite cegar os seus olhos. Mas a solidão é o pior dos amigos; não lhe estende a mão, apenas o olha de cima, com a arrogância velada de quem tem comiseração. A pena dos derrotados. Você sabe que o sol vai nascer mas que ela, a solidão travestida de piedade, ainda vai estar lá, sussurrando baixinho, com olhar de reprovação: "tsc, tsc, tsc...". Você não quer amanhecer. Sente um sono de letargia mortal, o sono da falta de apetite pela vida, pela luz, pela caminhada. No entanto, noite após noite, o sol há de nascer. Ele não dá trégua. A vida não dá trégua. E então? O que você faz quando leva um tombo, quando pensa que, desta vez, doeu demais, sangrou e cegou tanto que pode realmente não se reerguer?

Dizem que o cavaleiro fica mais forte a cada tombo, que sente menos dor, que fica mais ágil. Isso é balela, história para boi dormir. Não, é mais do que isso. É um mantra repetido em milhares de vozes mudas, um prêmio patético de consolação ao derrotado: "Outro tombo, companheiro? Não se preocupe. O que não mata, fortalece. Da próxima, você vai estar tão forte que nem vai cair. Vai antever a queda. E ainda marcar o gol. Parabéns, amigo! Você é um sobrevivente. Bola para frente, o show deve continuar!". O otimismo inserido goela adentro, feito remédio amargo, pode até melhorar a tosse a longo prazo, mas é invasivo, corrosivo, ultrajante. Pimenta em olhos alheios é caipirinha refrescante na praia de Ipanema para quem não acabou de levar um tombo. Quando está estirado no chão, você suporta ouvir qualquer coisa, menos "bola para frente". Isso é óbvio; você sabe que a vida deve, e vai, continuar, mas ouvir o ululante é afrontoso. Por outro lado, não é de piedade e paternalismo que você precisa. É de tempo, de ouvidos atentos, de um abraço amigo e, principalmente, de alguém que tenha coragem suficiente para se deitar no chão, ao seu lado, afugentar a solidão e, quando o sol nascer em seu peito, estender a mão e ajudá-lo a se reerguer. Frases feitas e telefonemas não atendidos abundam no universo dos tombados; encontrar alguém para se nivelar, sem os malefícios da dó e o jogo do contente de Pollyanna, é o primeiro desafio nesse terceiro, quarto ou milésimo tombo.

Então você levanta a cabeça da lama, sacode a poeira e continua a jogar. E aí começa o verdadeiro desafio: em quem você vai se transformar agora? No cavaleiro de cota de malha, escudo, armadura e espada, pronto para a próxima batalha do amor? Ou no braço-direito do general, protegido e anulado pelas paredes fortificadas de um bunker, ouvindo os gritos dos soldados pelo rádio? No cético amargurado, com senso de humor refinado e cáustico, inatingível e entorpecido, desprovido de sensações, talvez? No solteirão convicto, habitué de bares do momento, velado pela fumaça dos cigarros e pelo cheiro das bebidas? No conquistador inveterado, que vive em serial monogamy, arrasando quarteirões e corações e amanhecendo sozinho, sempre? Num avatar de sites de encontro e relacionamentos, que vive intensa e virtualmente emoções que, outrora, foram reais? Ou, por outro lado, se você não se transformar em absolutamente ninguém que você mesmo, da forma como sempre fora? 

Amizade é um vocábulo peculiar em meu léxico emocional. Você pode ter milhares de colegas, companheiros de bares e baladas, parceiros de goles e cigarros, camaradas de conversas leves e agradáveis. Mas considere-se um sujeito de sorte se você possuir um amigo que seja. Aquele que vai se deitar na lama com você e ajudá-lo a se levantar; a pessoa que ouve o seu pranto frustrado às duas da madrugada ou uma boa piada às onze da noite; aquele que o abraça, chora e ri com você. O indivíduo que, soterrados você e ele pela avalanche do tempo e da distância, ainda conversa como nos primeiros meses de convívio. Talvez eu seja uma idealista e, por isso, poucos - e leais - sejam os meus amigos. Por eles, rujo, mordo e carrego ao colo. E deles, como não poderia deixar de ser, espero o mesmo. Porque amizade é, por definição, estar nivelado. Do contrário, é coleguismo. Colegas e amigos não competem, nem se complementam. Apenas habitam universos distintos.

Há pouco tempo descobri um amigo. Nele vi cicatrizes que são também as minhas, expectativas, sonhos e frustrações que compartilhamos, como bons, velhos e inseparáveis amigos. Ele tem olhos de água, que as pessoas pensam ser azuis, mas que ele afirma serem verdes. Não me importa. São olhos líquidos, cristalinos e, neles, se observados um pouco mais de perto, aflora a essência desse meu amigo. Ele gosta de tênis brancos, jaquetas modernas e cachecóis, não entende lhufas de gibis de super-heróis e diz que sou nerd. Quando está feliz e relaxado, caminha lentamente. Aborrecido, ansioso ou entristecido, dá passos rápidos, normalmente tomando a liderança. Faz piadas em filmes, gosta de cozinhar, toca piano desde moleque e fala não sei quantas línguas. Aceito o rótulo de nerd porque, talvez, eu seja mesmo. Um pouco. Mas é ele quem tem a coleção completa do Star Wars e faz esculturas em argila. Do Homer Simpson. Ele é vasto: lê Dickens e se diverte aos montes com o Austin Powers. Seu sorriso habitual é discreto, com muitos e brancos dentes; mas sua gargalhada é sonora e contagiante. Um cara que nasceu para dar risada, fazer música, contar e ouvir casos.

E que nasceu para levar tombos. O primeiro, há algum tempo, não presenciei porque ainda não o conhecia. Mas senti, pelas palavras dele, a dor que vivenciou então. O segundo, feliz ou infelizmente, vi de perto. Na crônica "De Encruzilhadas e Pipocas"


mencionei que é no furacão e nas encruzilhadas da vida que, às vezes, temos a sorte de encontrar aqueles que entram em nossas trajetórias como companheiros, para permanecer. Nessa, vou além: é na fossa, na lama e no bunker que descobrimos os amigos. Assim foi com o meu amigo pianista, de olhos d'água. Caído, do avesso, machucado e de asas quebradas, ele olhou para mim e não precisou pedir ajuda. Naquele momento, ele era eu, numa derrota que já foi a minha um dia. E se hoje sou eu a lhe estender a mão, amanhã poderá ser ele a me ajudar a levantar de mais um tombo. No escuro do deserto da batalha - e da busca - do amor, o sangue dos soldados se mistura; é apenas um. O que reveza é a doação. 

Em uma semana de trevas, meu amigo e eu trocamos emails que, no final, regados à pizza, idas e vindas pela cidade e à rivalidade de Charles Xavier e Erik Lehnsheer no novo filme dos X-Men, renderam essa crônica. Perguntava-me como ele era capaz de escrever, trabalhar e "tocar em frente" depois de mais um tombo. E ainda caminhar na praia de manhã. Se fosse eu, estaria debaixo das cobertas, cortinas cerradas e ouvindo Montenegro, no mínimo. A esse comentário ele respondeu que, de Montenegro, não conhece nada mais do que uma bebida tal de um bar tal. É incrível como alguém essencialmente bom pode, mesmo num bunker, com três capacetes e um escudo, sorrir e fazer o outro rir.

Meu amigo e eu acreditamos nessa entidade chamada "amor da vida". Houve um tempo, o momento cínico, cético e cinza da minha vida, em que eu não acreditava nisso. Depois, passei a crer que o amor da vida de alguém precisa, por definição, não estar na vida desse alguém, como nas tragédias de Shakespeare, em Tristão e Isolda e em uma centena de outros casais separados pelo destino na literatura clássica. Hoje, tenho uma definição própria, muito minha e muito peculiar, para o "amor da minha vida": é aquele homem que, um dia, hoje, amanhã ou daqui a quantos anos o amor viver - e ainda acredito que haja maneiras de fazê-lo acordar renovado, a cada manhã - vai se sentar comigo no topo de uma colina gramada e, em silêncio comigo, num abraço de cumplicidade e esperança, assistir ao por do sol, até que as nuvens alaranjadas sejam tudo o que se possa ver no céu, porque o sol foi dormir atrás de outra colina. E sabemos que ele vai se levantar no dia seguinte. Por isso acredito que o amor da minha vida, tendo assistido comigo ao por do sol e tendo certeza de que ele sempre se deita e se levanta, terá certeza também de que o amor, tal como o próprio sol, dorme para acordar depois. E depois, e depois, e depois.

Para o meu amigo, o conceito é mais simples e, por isso, ainda mais belo. Para ele, "amor da vida é aquele que sabemos que combina com a gente em quase tudo, que há harmonia e que sabemos que poderemos viver até o resto da vida, acordando de manhã e olhando para aquele rosto amassado e pensando 'que sorte estar do lado dela'. Eu já pensei ter encontrado esse amor da vida, mas hoje vejo que não; que era apenas a ilusão de querer ter encontrado. Enfim, tenho certeza de que o amor da vida não pode ser vencido por tombos, escudos, desilusões e medos. Eu acredito no amor, por mais difícil que possa ser. Porque para mim, além dos sonhos, é o que me faz andar e viver."

Tive certeza de que éramos amigos quando li o último email do pianista, durante a semana das trevas. Para quem estava no chão, ele era ainda mais corajoso do que qualquer outro soldado, caído, imunizado, dormente ou protegido pelo bunker. E suas palavras ainda ensinam, sem que ele ao menos se dê conta disso, de que não basta encontrar o amor da sua vida; você pode ter sido apenas ludibriado pela ilusão do desejo de encontrá-lo. A semana de trevas passou. Meu amigo agora está de pé e caminha. Ainda está ferido, mas as feridas existem para fechar e para que se tornem cicatrizes. Tem gente cuja cicatrização é tão eficiente que a cesura, após um tempo, não passa de uma linha fina, imperceptível. Gente assim não se transforma depois de um tombo; continua sendo quem era, à procura, sem a derrota maior que é o medo. Por outro lado, há aqueles que, ao menor corte, formam queloides incuráveis, hiper-sensíveis, avermelhados e incômodos como corcovas. Acredito que esses, sim, transformam-se em tudo, menos no que já foram um dia. Ou, então, tornam-se insensíveis. Ao ruim e ao feio, assim como ao bom e ao belo. Relacionar-se é uma aposta, um risco. Mas, por mais que tema o tombo, assim como meu amigo, acredito que tem mais chances de vencer, andar e viver quem se permite amar.    

claves de sol, fá e casas

Para Caroline e Raísa, e todos que tem algum talento, revelado ou não. E em busca de um sonho, marcam na pele e na alma o que lhes orienta os passos.

Carol Rohen e suas claves de sol e fá

A minha prima mora numa cidadezinha que eu amo por muitas razões. Lá passei os melhores anos da minha infância e os momentos mais gloriosos da minha adolescência (sim, a adolescência pode, em raras ocasiões e cidadezinhas, ser gloriosa). A cidade da minha prima, essa menina que nem é mais menina, uma morena com pele de jambo, sorriso rasgado e olhos de jamelão, é também a cidade da minha família. O meu refúgio. Quando olho no espelho e não vejo ninguém, quando desconheço os traços outrora meus porque, em algum momento da caminhada, deixei de ser quem achava que era ou quem deveria ser, é para essa cidade com nome de fruta que vou. Até bem pouco tempo era lá que considerava refazer minha vida. Mas, então, muita gente me disse que a cidade da minha prima não é uma realidade palpável para mim, mas um sonho distante, uma reminiscência que sobrevive apenas porque, diariamente, reavivo as brasas de carvão da memória. Uma fuga, dizem os sensatos, sem sal. Ouço calada e, por dentro, chovo. Ninguém escuta os meus trovões de rebeldia por não poder dominar o tempo, fazê-lo girar para trás ou, ao menos, pará-lo por algum tempo, o tempo necessário, para que eu possa chover até a última gota e clarear o meu céu lá, na cidade da minha prima, na cidadezinha com nome de fruta.

Então descobri - ou talvez já o soubesse, apenas permiti que aflorasse à consciência o fato - que quanto mais próximos estamos das raízes, mais distantes nos vemos do horizonte. Isso vale como regra geral, claro. E se não houvesse exceções, ocorrências repetidas jamais seriam regras. De cinco filhos arraigados e enraizados, meu pai foi o único que contemplou o horizonte e não achou que ele estivesse longe demais; foi até onde o céu encontra o chão, fez um limite próprio, escapou à regra. Quanto a mim, não posso dizer o mesmo. Não nasci na cidade com nome de laranjas, mas volto para lá recorrentemente, como se aquela, e não a cidade no topo da Serra do Mar, fosse a minha cidade natal. Como se lá fosse a "casa" que, andanças e estrada que sou, ainda não encontrei. Então me lembro dos sensatos, aconselhando-me a não me apegar a sonhos, à fuga. Fuga-cidade. E a parte mais louca, viva e liquefeita da minha consciência se pergunta se "casa" não é, de fato, como já dizia o poeta, o lugar onde a alma está. E como a minha alma vive "fugindo" para lá, talvez seja lá a minha casa, ainda que eu nunca venha a residir naquele lugar. Tem gente que mora e vive no mesmo lugar onde dorme e acorda a sua alma. Não há estatísticas para isso: mas posso dizer que estes devem ser a minoria. Ou talvez o meu palpite não passe de um resquício de um ranço nauseabundo de inveja.

Tem gente que mora na mesma casa em que nasceu, uma vida inteira, e vê, pela janela da sala, a última folha da árvore da casa vizinha cair, o sol deitar para a lua ficar gorda no céu e a alma ir embora para sabe-se lá aonde. Ou ficar ali mesmo, na mesma casa, na forma de poeira sobre os móveis, retratos envelhecidos, pés-de-jabuticaba e ranger de portas. Não, cara-pálida. Não é de assombrações ou almas-penadas que falo. Sou cética - ou ao menos acredito sê-lo - o bastante para não sugerir isso num blog que, a rigor, é o meu inconsciente expresso. A alma em forma de poeira, árvore, fotografia luz e som é a memória. É nas brasas reavivadas da lembrança que vive, eternamente, uma alma. Na casa onde, outrora, escolheu para morar. Pois existe uma sutil - porém relevante - diferença entre "viver" e "morar", entre "residência" e "casa". E se o Quintana está certo e "casa é onde a alma está", alguém pode viver cem anos sem jamais ter morado em casa alguma, embora, obviamente, numa ou em milhares de residências. Talvez este seja o meu caso. Mas se a alma for, para os sensatos e céticos, apenas sonhos e fugas, a minha vive (vaga...?), mas não mora. E todas as residências cujos tetos abrigarem o meu corpo serão apenas isso: logradouros. Até que eu encontre, finalmente, a minha casa. 

A cidade da minha prima não será a sua casa por muito tempo. Será a de seus pais, a de meus outros primos, tios e velhos amigos. Para nós, mais "antigos", as raízes estão mais próximas do que as folhas das árvores, e o horizonte, muito mais distante do que o riacho que corre, sereno, logo ali, na curva da estrada. Para nós, a regra é mais forte do que a exceção: ficar é mais fácil do que partir. A lua gorda no céu, para nós, é mais bonita naquele céu, daquela cidade, daquela casa. Para Caroline, a lua que ela ama será ainda maior, mais brilhante e mais perto de um toque seu no horizonte à distância, que é distância apenas para quem é raiz, mas proximidade para quem é folha. Carol, a moça que tatuou na pele uma clave de sol intrincada a uma de fá, é folha. E está prestes a soltar o galho e ser levada pelo vento, para mais longe de nós, para mais perto de si mesma. O mesmo aconteceu com seu irmão. E com sua prima, fruto da mesma cidade, da mesma geração que vai subindo das raízes ao tronco, nutrindo a árvore com seiva renovada, até alcançar os galhos mais altos e, folha, soltar-se e ir brotar noutras casas.


O orgulho que sinto dessa moça, em particular, é imenso. Filha da prima que, até hoje, cuida de mim como se eu ainda tivesse cinco anos, ela foi batizada Raísa Rohen. Sorrio baixinho ao ler o seu nome recém-digitado por esses dedos de árvore que são os meus. Raísa deveria ser o meu nome porque é de raízes que sou feita e é em raízes que vejo a possibilidade de fazer uma casa para a minha alma morar. Ocorre que Raísa nunca viu a cidade com nome de laranjas como "casa"; não era lá que a sua alma estava. Lá, Raísa olhava no espelho e não conseguia entrever a alma pelo branco dos olhos. Folha, Raísa quis voar. E foi a primeira que o fez, num galho antigo onde todos ficam enraizados, na mesma casa onde nasceram. Raísa mudou-se para uma cidade grande, grande demais para uma cidadezinha com nome de fruta e, hoje, estuda leis, petições, artigos e códigos. Não encontro Raísa; a distância nos separa. Mas, quando fecho meus olhos, enxergo claramente os seus, escuros, que brilham de alegria, sonhos e ideais; vejo-a fazendo amigos, sorrindo aberto, sentindo-se "em casa". E a felicidade dela me faz mais feliz. Mora em mim a certeza de que, no dia da formatura dessa moça com nome de raiz, eu serei a primeira da fila, juntamente com meus primos, seus pais. E aplaudirei, calma e frenética como um são francisco febril.

Caroline e Raísa traçam rotas diferentes, ainda que tenham partido do mesmo lugar, das mesmas raízes. Elas vêem o horizonte e não temem a distância, a mediocridade ou o fracasso; elas voam. Porque, no frigir dos ovos, temer a distância, a mediocridade e o fracasso é um engodo, uma máscara que engana apenas a quem permite ser ludibriado. Quem tem medo de voar teme, na verdade, a felicidade e o sucesso. É exatamente isso o que eu disse, cara-pálida. A felicidade dá medo; assusta. Põe gente grande para correr, feito menino de calças curtas. À tristeza e ao fracasso já nos preparamos, desde a primeira derrota. Estes não assombram; são a regra, como somos levados a crer: "Tristeza não tem fim, felicidade sim (...)". O que enregela os ossos e faz subir pela espinha um calafrio de emoção é a exceção: a alegria, o sorriso, o enlevo. E se abrirmos a porteira um pouco mais e baixarmos a guarda... E se ousarmos fazer da exceção a regra? Caroline e Raísa fizeram. Suas almas não vivem, apenas; moram em casas próprias, o sonho brasileiro mais antigo. Para terminar, uma "canja" do sonho, da casa, da alma de Caroline, fazendo o que nasceu para fazer: cantar. Ela é um corrupião. E, como tal, não canta engaiolada. Se gaiolas e pássaros não casam, imagine se uma gaiola pode ser a casa de alguém.

16 de junho de 2011

Doze de Junho



Passou o 12 de junho. Agora posso, enfim, escrever sobre ele. Certas coisas são como são e pronto. Assim é com o tempo e com as crostas de ferrugem da rotina que corroem lenta e inexoravelmente o amor e o sentimento de enlevo dos enamorados. Mas não há nada mais corrosivo do que o presente. Não o tempo; mas o embrulho com papel colorido e laço de fita. O presente estraga a relação. Se quiser sobreviver ao Dia dos Namorados a dois, meu amigo, poupe o seu tempo, o seu Visa e o seu investimento pessoal. Porque, ao dar um presente, o amante coloca em risco a então abençoada - ainda que hipotética - segurança do seu relacionamento. Um presente é, por definição, uma caixa de Pandora e, na pior das hipóteses, um presente de grego. Se o conteúdo da caixa enfeitada em poá e laço vermelho não refletir o conteúdo do presenteado ou, pior, se representar exatamente o oposto da essência daquele que o recebe, fica claro que nem mesmo a intenção valeu. O presente inadequado, seguido do inevitável sorriso amarelo, do baixar embaraçado dos olhos e do abraço com direito a tapinhas nas costas é a prova cabal e irrefutável de que fulano desconhece sicrano nessa instituição denominada "casal". E não há frustração maior do que descobrir que se pensava conhecer o ser amado justamente no 12 de junho.

Já posso sentir cenhos franzidos em desaprovação à esta crônica. Tenha calma, leia até o final e permita-me explicar meu ponto de vista. Pessoalmente, adoro presentes. Gosto mais de dá-los do que de recebê-los, confesso. Mas tal preferência tem duas razões de ser, além da óbvia: já recebi incontáveis cavalos de Troia como presentes, caixas de Pandora cujo poder, uma vez liberado de seu invólucro, é inenarrável, além de descabido para um texto com aspirações ao Dia dos Namorados. O outro motivo é mais complexo, ainda que mais facilmente justificável: se escrevo é porque, antes de qualquer coisa, gente em geral é o meu maior interesse. Quando vou a um shopping, ou sento num banco de praça, tomo o metrô, caminho pelo parque ou aguardo pelo filme durante aquele intervalo reservado aos anúncios no cinema, quando as luzes ainda estão acesas, meu hobby e obsessão inevitáveis são observar as pessoas. Não há julgamento de valor nesse processo de exame; talvez, o que seria grande hipocrisia de minha parte não confessá-lo, uma certa análise.

Gosto de prestar atenção ao que estão fazendo. Se leem o jornal, qual seção prende-lhes os olhos; se ouvem música; se dormitam; se conversam uns com os outros. O conteúdo de suas conversas sempre tem relevância, por envoltas que são pela aura de magia do distanciamento, que, no mínimo, há de render uma crônica; se entram numa bolha anti-ruídos, anti-observação e anti-diálogo, que os mantém imersos num universo próprio, não este a que pertencemos os demais; se também, como eu, observam os outros. Tem gente que preenche as lacunas do ócio de cabeça baixa; outros, olham a paisagem; eu, observo atenta, maravilhada e vorazmente as pessoas. A mim, é irrelevante se, no final do mês, sobra-lhes dinheiro para guardar sob o colchão, na caderneta de poupança ou em aplicações na bolsa de valores; não me faz diferença se usam ternos, vestidos surrados, tailleur, havaianas ou sapatos italianos; se são amarelos, azuis, verdes, grandes, pequenos ou gigantescos; se falam português, chinês ou tumbuka; se tingem cabelos e unhas ou se as roem e são carecas; se estão dando seus primeiros passos no mundo ou saindo dele com seus últimos, igualmente lentos e trôpegos. Gente é gente e ponto. O resto é adorno, escudo, impostação vocal e detalhes. Ah, sim, claro. Os pequenos detalhes que contam as grandes biografias de cada um.

Já chego no gancho; geralmente, bom observadores fazem bons presenteadores. E, por mais esdrúxula, minha afirmação tem certa lógica: se você observa as pessoas atentamente, de perto, dando ouvidos ao silêncio que permeia o ambiente, circunda a personalidade e faz brotar uma orquestra sinfônica de peculiaridades, as chances de não errar na hora de embalar o mimo nos braços de Pandora são maiores. Por isso gosto tanto de "Crash" (2004), de direção do Paul Haggis. Embora o filme se passe em Los Angeles, na época do Natal, presentes - ou a forma como as pessoas os dão e os recebem - não são o enfoque de Haggis, mas sim a falta de observação das pessoas umas às outras. O diretor parte da premissa de que cada um vive em seu próprio universo-umbigo, submerso em tal atitude blasé ao ponto de não se ouvir, nem se compreender, como numa Babel alucinada e fora de propósito numa época em que mal-entendidos ideológicos e raciais tomam proporções de ataques e ofensas pessoais - e internacionais; Haggis baseia-se na onda de horror, auto-proteção e "bunkerismo" subseqüente ao ataque de 11 de setembro de 2001, nos Estados Unidos.

O filme começa com a fala de uma das personagens, um policial: "em Los Angeles ninguém se toca. Estamos sempre atrás do metal e do vidro. Acho que sentimos tanta falta desse toque, que batemos uns nos outros só para sentir alguma coisa". A frase, dita nos primeiros segundos de abertura, é crucial não apenas por explicar o propósito mesmo da produção, mas por preparar o espectador para o que vai ser abordado: da falta de observação alheia - fruto do medo e do egoísmo - nasce a ausência do toque, leia-se "calor humano", ou, se preferir, "empatia". Com olhos apáticos, tal qual um cristalino esbranquiçado e cego, tomado pela catarata, vemos o mundo através de bolhas em que, toupeiras, encravamo-nos. Não é a realidade que se vê, mas a percepção leitosa e distante de um universo a que pertencemos, mas do qual tentamos escapar. No entanto, somos, antes de toupeiras cegas, erráticas e solitárias, humanos. E, assim sendo, o "toque" - seja pela forma de diálogo, de um olhar trocado, de uma gentileza gratuita, de um abraço ou mesmo de "acidentes" (incidentes...?), é fundamental para espaventar a loucura, a neurose, o medo, a mudez e a cegueira.

Mas não era de "Crash" que eu queria falar; nem de terrorismo e muito menos de política. Nem de presentes, ao final e ao cabo, embora todos esses elementos sirvam ao propósito de ilustrar o cerne da minha ideia. É sobre a observação e o "toque", em contrapartida aos olhos de toupeira do mundo e ao ostracismo ao qual nos acostumamos a subsistir, que desejo escrever. O medo embaça a visão; depois paralisa. Tetraplégicos na alma, não caminhamos passos próprios: somos empurrados adiante pela maré de demais seres autômatos, numa massa informe e embotada, tal qual gado à entrada do abatedouro. E nossos corpos, à semelhança dos das bestas à espera do abate, exalam o cheiro do pavor. Fedemos de medo do desigual e do estrangeiro; fedemos de horror da aproximação do outro; de solidão; de cegueira e mudez auto-imputadas; recendemos às certezas putrefatas da vida de inesperados que levamos; fedemos às camadas sobrepostas de adequação, civilidade, sucesso e felicidade, todos conceitos pré-pagos, que compramos à moda de celulares descartáveis que utilizamos sem saber bem porque. E cujos bônus, se é que existem, perdemos. Somos gado; estamos nus; acorrentados uns aos outros pelos pés inertes; antevemos o abate, certeza única de quem está vivo; e fedemos. Fedemos porque temos nojo de olhar para os lados, de observar de perto, de estender as mãos, descolar os lábios, dizer "existo" e tocar. Olhar e tocar não dói. Ao contrário: sela as chagas de quem estende as mãos e de quem as pega.

Doze de Junho; Vinte e Cinco de Dezembro; Segundo Domingo de Maio; Segundo Domingo de Agosto; Doze de Outubro; O Seu Dia. Todas datas que calendários, vitrines e redes sociais encarregam-se de nos lembrar que é hora de - oops! - abrir os olhos, observar de perto, tocar e, para não fugir à tradição ou parecer ativista de esquerda, aquecer a economia local e presentear a quem você ama. Mas, então, com as datas comemorativas, nascem os dilemas comemorativo-existenciais: Amo...? Devo dar um presente? E se não receber nada em troca...? O que comprar? Escrevo um cartão ou bilhete para acompanhar? Escrevo alguma coisa ou mando um torpedo? Precisa escrever qualquer coisa...? Ela gostaria de um livro, de uma cadeira art déco ou de um buquê de margaridas? Ele é o tipo que prefere halteres, um CD do Schoenberg ou vasilhas para guardar molho shoyu? Ele é de que tipo, mesmo...? Que porção da minha vida ela ocupa, então...? Não seria melhor um vale-presente da Americanas? Depósito em conta-corrente...? E se ele quiser trocar? Mas e se ficar sem graça...? Valem vale-presente e vale-troca...? O que dar para alguém que tem tudo? E para alguém que não tem nada...? Que dia é hoje, mesmo? Mas, já?!

Dilema:
s.m. Argumento composto de duas proposições contraditórias.
fig. Situação embaraçosa que apresenta somente duas soluções, ambas difíceis ou inconvenientes, o que gera perplexidade para uma opção.


O verbete "dilema comemorativo-existencial" não consta no vernáculo. Nada surpreendente. Até porque, se o ato de presentear for uma "situação embaraçosa que apresenta somente duas soluções", o cenário fica ainda mais sombrio: embaraçoso é tudo o que não é natural - leia-se "ilegítimo", e entre duas soluções, dar um presente ou não, "ambas difíceis e inconvenientes", bem... É como disse anteriormente: nem a intenção fica valendo. Se a comemoração é um dilema - isso quando chega a ser elevada ao status de comemoração - e se presentear ou não é outra contradição, a coisa toda não passa de uma pantomima ilógica, anti-natural, forçada e desproposital; é um não-dilema, na verdade. É para não ser. Onde há muita dúvida, há fogo. E onde há fogo, há o fedor do medo de observar o outro e de descobrir que, para começo de conversa, nem mesmo chegara a conhecê-lo. A comemoração e o presente não são o dilema. O dilema é: observar ou não; tocar ou não; entregar-se ou não. Resolvido este, o presente - tempo ou caixa com laço de fita - são outra história.               

8 de junho de 2011

de encruzilhadas e pipocas

Pour un grand enfant.
Un voyageur.
Un découvreur de sentiers.


Adoradores de clichês possuem um especial que constantemente lembro quando me encontro aboletada em alguma encruzilhada do destino: "pessoas entram em sua vida por acaso, mas não por acaso permanecem nela". A bem da verdade, não tenho uma opinião plenamente formada sobre o destino; mas tenho certeza de que encruzilhadas, figurativas ou não, existem. Algumas seriam tão solitárias ao ponto de dar dó, se não fosse pela presença das placas indicando inúmeros caminhos: a múltipla escolha do livre arbítrio da caminhada; outras, nem placas possuem. Nessas, o melhor que o viajante pode fazer é molhar o dedo indicador, apontá-lo para o alto, olhar para o céu e esperar sentir para que direção o vento o levará - não ao dedo, mas a si próprio, tal qual a uma pluma.

Também há as encruzilhadas adornadas com espantalhos, os fantasminhas camaradas (ou não) do passado. Tem encruzilhada com prato de farofa e garrafa de cachaça; esses adornos, quando os vejo, chuto-os. Para fazer como reza o dito popular; ou para provar para mim mesma que mandinga ruim vale tão pouco quanto mandinga boa. Encruzilhadas, por diferentes que sejam, são sempre um pit stop da vida: se você não parar de bancar o Forrest Gump, não cessar a corrida por um tempo e não pensar para aonde vai, acaba enraizando-se por ali mesmo e virando árvore. Ou espantalho. Ou, o que é mais patético, transformando-se nas próprias placas indicativas. Porque é mais fácil apontar o dedo para o outro e dizer: "por ali", do que colocar as mãos no peito, ouvir mente e coração e sussurrar para si mesmo: "vai". 

Por vezes me pergunto se destino, acaso e sorte - ou azar, o revés daquela - não seriam todos elementos idênticos. Esse é o tipo de metafísica que, por mais que me agrade, escapa à minha compreensão. E igualmente à minha paciência, confesso. Já queimei tanta mufa pensando nisso que, nas encruzilhadas em que caí - ou nas que despencaram sobre mim - deixei de caminhar. Virei musgo em cabeça de gárgula. Ah, sim. Esqueci de mencionar: além de placas, espantalhos e macumba, também há gárgulas em certas encruzilhadas. Parar para refletir, reescrever o... destino?, e decidir é preciso. Entretanto, empacar e tornar-se uma briófita ou craca de navio é altamente desaconselhável.

De qualquer maneira, não era bem sobre isso que desejava falar: destino, acaso, musgo, espantalhos. É sobre o clichê da segunda linha deste texto. Tenho uma ressalva a ele: é nas encruzilhadas que as pessoas entram em sua vida. E, saindo do cruzamento com você, é que permanecem nela. Talvez o destino seja a própria encruzilhada; talvez o fato de alguém entrar em sua vida para ficar já esteja associado ao intervalo do seu pit stop, que você realizou apenas para olhar, para de fato enxergar esse alguém. Tenho para mim que, na velocidade da corrida e na rotina autômata dos dias, ninguém consegue se ver nem se tocar, muito menos entrar para a vida um do outro. É na encruzilhada, no novelo das linhas tortas e entre os nós dos caminhos que as pessoas abrem os olhos, vêem a si mesmas a às outras e decidem entrar ou sair de suas vidas; sós ou na companhia de outros viajantes.

Tereza, personagem do Milan Kundera em "A Insustentável Leveza do Ser", acreditava que coincidências eram como sinais, avisos, pombos que pousam sobre os ombros para que, através do ruflar suave de suas asas, possamos dar ouvidos ao chamado do "destino". Em Kundera, destino é coincidência. Para mim, coincidência é estar na encruzilhada certa, no momento exato e, se houver "sorte" - ou pombos otimistas a nos sobrevoar as cabeças - com alguém certo. Esse "alguém" pode ser um amigo; um cão; uma bengala; uma xícara de café; uma cadeira; uma cédula eleitoral; um livro; um filme; uma ilha; uma carteira de identidade renovada; um iPhone; um chapéu de palha; um amante; uma promessa. Cada um sabe a melhor e mais conveniente companhia para si mesmo. E cada um é o responsável pleno por sair da encruzilhada com as próprias pernas, ainda que no compasso das pernas de outro "alguém". 

Estive numa encruzilhada das mais medonhas ultimamente. Estava míope dos olhos e cega da alma, não conseguia ler as placas a sequer um palmo do nariz. Molhei o indicador e o apontei para o céu, mas aqueles eram dias abafados e bolorentos, sem a menor brisa a ventar e me carregar, por mais leve e suscetível que eu estivesse. Chutei muito prato de farofa, quebrei garrafas de cachaça a perder a conta e assustei espantalhos - gárgulas metem mais medo do que bonecos de palha. Fiz um pit stop demorado, digno de um Karmann Ghia com carburador estourado. Ocorre que, no torto dessas linhas, no novelo enredado da minha encruzilhada, havia também um garoto grande, míope, meio surdo e tão perdido quanto eu. Aprendemos a ler as placas de mãos dadas, muito temerosos das histórias um do outro, com reservas muitas e proteções poucas. Caminhamos em compasso, embora nem sempre em uníssono. Ou talvez seja o contrário.

No entanto, caminhamos. E em paralelas que, à distância, no lugar em que o horizonte vira um ponto único, vão se cruzar. Ou talvez já se tenham cruzado e nós, o garoto e eu, sejamos orgulhosos, medrosos ou meninos demais para admiti-lo. Acho que soube disso num momento especial, definitivo, eu diria, em que o garoto me contou o que ele sonhava ser quando crescesse: um pipoqueiro de praça. Não um médico, ou um engenheiro, um advogado e nem um astronauta. Apenas - e por isso mesmo tanto - um pipoqueiro. Senti o cheiro da pipoca doce com chocolate que minha mãe fazia para nós aos domingos. E o gosto da pipoca salgada, com queijo, que feliz eu comia em minha cidade natal. E o entusiasmo da pipoca de manteiga que o meu filho adora. Quando você encontra outro viajante numa encruzilhada, sabe que é em sua vida que ele vai permanecer quando lhe é revelada a memória de um garoto grande, que desejava fazer pipocas numa praça e vender alegria, sonhos e esperança.

saudade


Minha segunda tentativa de letra de música para a Carol.


SAUDADE
Composição: (Roberta Rohen e Caroline Rohen)

Se eu fosse cantar a saudade
Que faz o meu peito arfar de dor
Faltariam os versos e as rimas
Pra mandar embora de vez esse ardor

Mas sou um ser passional, filha da terra
E é na canção que encontro o meu eu
Por isso solto a minha voz, a minha’alma
Pra te dizer o quanto de mim já é seu

Distância não se encurta em caminhos
Nem no tempo nosso que passou
Mas quando a saudade aperta, amor
Eu viro música pra te mostrar quem eu sou

Eu sou a mulher que os seus braços afagam
Quando juntos vemos a sombra da lua no chão
Eu sou a menina que o seu peito ampara
Quando me entrego a esse amor em aflição

Eu sou aquela que te espera acordada
Mesmo sabendo que você não vem
Eu sou aquela que te vê em sonhos
E sente a sua presença ainda mais além

Mas essa saudade comprida me faz prisioneira
Então fecho os olhos, deixo que a lembrança provoque
Eu queria ser senhora do tempo, pra voar pelos morros
E chegar nos seus lábios, te enredar num só toque

Eu queria controlar meus desejos de tempestade
Evaporar, virar chuva e inundar o nosso abraço
Então pensa em mim, amor, mesmo de longe
E vamos viver a distância no mesmo compasso

Eu sou a mulher que os seus braços afagam
Quando juntos vemos a sombra da lua no chão
Eu sou a menina que o seu peito ampara
Quando me entrego a esse amor em aflição

6 de junho de 2011

family

By Alex Noriega

Algo me diz que as tesouras do Noriega não são potentes o bastante para cortar galhos tão compridos e grossos. Isso porque ele nem mencionou - ou melhor, desenhou - as raízes.

5 de junho de 2011

a passagem

Para Caroline Rohen, neta do tio que eu mais amo.


Nunca escrevera uma letra de música antes, muito embora a música seja, depois das palavras, a minha grande paixão. A bem da verdade, esse argumento não cola; música é uma coisa, literatura é outra; a rigor, não faz sentido hierarquizá-las. No entanto, vez ou outra surgem poetas iluminados que, além das letras, enfeitam a poesia com uma melodia que é como prece silenciosa, ainda que retumbante. Canções como "Chão de Estrelas", do Silvio Caldas, "Cabelos Brancos", do Herivelto Martins, "Sem Fantasia", do Chico Buarque e "As Rosas Não Falam", do Cartola, fazem-me pensar que poesia e música nasceram gêmeos univitelinos, entretanto separados pelo tempo, pelo sampler, pelo jabá.

Algo me diz que falar sobre música aqui vai-me dar mais trabalho do que falar sobre bullying e política. Eu, entusiasta da velha-guarda, posso ofender sensibilidades que vêem na moderna música popular a união de poesia e melodia que sinto nessas canções com cheiro de naftalina. De qualquer forma, fica aqui registrado um pedido atendido à minha prima, que vai participar de um festival de música. A melodia, a voz, a simpatia, a presença de palco e a beleza são, claro, desta garota de 17 anos, puro carisma moreno e olhos rasgados de índia. A poesia é minha. Se vai dar samba, eu não sei. O próximo tema é "saudade" - cada participante tem direito a se inscrever com duas canções. Suspirei fundo quando Caroline atirou-me à queima roupa com esta: saudade... Dá para fazer poesia, com métrica e rima, com um sentimento tão grandiloquente, que dá tanto pano para manga e assunto para mais de metro? Não me custa tentar. Quem sabe a dor da saudade - sempre presente porque onipresente é o tempo e inexorável a sua passagem - não faz brotar uma letra banhada em luar, que emocione aos ouvintes? Oops. Leitores.

A PASSAGEM 
(Composição: Roberta Rohen e Caroline Rohen)

Olha nos meus olhos, repara
Que neles brilha a lua cheia de mulher
E as estações mudam devagar
Mas a parte secreta ‘cê não sabe
Guarda a menina que vive a sonhar

Essa vida é peão, trem-bala
Que a gente custa a acompanhar
Porque deita na relva verde do quintal
Deixa o sonho virar nuvem e poeira
E esquece que o tempo pode ser rival

Ah, se pelo menos fosse fácil 

A passagem do que eu era
Pra aquela que eu vou ser
Ah, se pelo menos não doesse
Escolher a estrada pra onde eu vou crescer

Ontem de mãos dadas com meu pai
Olhava os passos grandes que ele dava
Hoje eu estico os braços pra unir
A menina esperta que eu fui
E a mulher que agora sinto fluir 

Porque o tempo e o vento são gêmeos
Que sopram as lembranças pra longe 
Vão abrindo caminhos e portas
E quem decide fazer o seu destino
Não pode escrever linhas tortas

Ah, se pelo menos fosse fácil
A passagem do que eu era
Pra aquela que eu vou ser
Ah, se pelo menos não doesse
Escolher a estrada pra onde eu vou crescer

Boa sorte, Caroline. 

3 de junho de 2011

desabafo beócio (não é bronca)

Aos amigos - guerreiros por definição e essência - que lêem, curtem e apóiam minhas excursões no Expresso: Milene Portela, Priscila Rohem, Luciana Hipólito, Ivy Gobeti, Luiz Tavares, Cris MouraFernanda Samico, Cristina Graneiro, Gabriel MaiaMarcelo Carreiro, Renato Pontual, Rogério Lemos, Matheus Marcus, Alberto Lacerda, André Augusto, André Conforte e outros aos que, perdoem-me, minha memória balzaquiana me falha.


Descobri o quão maléficos podem ser os botões "curtir" e "enviar" do Facebook aplicados logo abaixo das postagens de seu próprio website. Vocês curtem e compartilham, bem o sei, e não raro suas impressões digitais nesses botões, em sinal de apoio à minha utópica tentativa de literatura, fazem o céu dos meus dias se abrir num anil ainda mais cintilante que o do selo acima. Ocorre que a minha carência insuperável de ex-pseudo-escritora, além de insuperável, é incurável. Mas há paliativos: seus comentários, amigos, guerreiros e leitores, posicionados logo abaixo dos botões "curtir" e "enviar" e, já ia-me esquecendo, "twitar". Seus "achismos", anônimos ou não, pequenos ou longos, construtivos ou destrutivos, à guisa de "olá" ou "adeus", são a conversa que, em dias, é o diálogo que mantém viva a minha fé na escrita, esta que traz o meu ego à pele e me faz caminhar, sonhar, ansiar. Curtam, enviem, twitem. Vocês me fazem ganhar o dia quando o fazem! Mas, se comentarem, meus amigos, me farão sentir ao seu lado, tomando um cappuccino ou uma Bohemia, proseando fácil, longe da solidão dos poetas, malditos ou não.
Pronto. Falei.   

2 de junho de 2011

mesa de bar

Para Milene Portela, Cristina Graneiro, Lindomar e para mim. 

"Café Terrace at Night", Vincent van Gogh

Havia vinte anos que não se sentava a uma mesa de bar com seus amigos de infância, desses que conhecem três quartos da sua persona social e metade daquela parte que só se revela ao analista, a portas fechadas e na penumbra, se possível for. Para certas pessoas, uma mesa de bar é apenas isso: uma mesa de bar. Para outras, é um reencontro com os cem por cento de uma persona antiga e autêntica, até então envolta num mistério brumoso ou soterrada por água salobra, terra e tempo.

Primeiro, o abraço apertado na loira de sorriso aberto, que não teme rugas. Ela aguardava à porta do seu palácio, o trabalho que, após sucessivas derrotas e tentativas malfadadas de sucesso, ergueu não do zero, mas do muito que sua bagagem lhe permitia. Seus olhos são escuros, porém transparentes; sua pele é leitosa, um veludo branco; as mãos são finas, expressivas, falantes; e as unhas, esmaltadas em chumbo. As minhas eram cobertas de algo com o nome alienígena de "nude". Sua bolsa é Karan, de um tom entre o cinza escuro e um preto elegante e, escondida na parte mais secreta do couro, leva uma Mont Blanc, com a qual rabisco dizeres risíveis em minha agenda. Não é por ser uma Mont Blanc que o especial da tinta se revela, mas por ter sido um presente de seu avô. Para certas pessoas, uma Mont Blanc é apenas isso: uma Mont Blanc. Para outras, é um mimo com história e reminiscências.

Escolhemos a mesa central, talvez porque fosse, de fato, a mesa mais apropriada àquela hora da noite. Quando há muitas opções, escolher torna-se uma tarefa tão árdua quanto esperar em fila porque o restaurante está superlotado; a abundância de opções é o reverso da moeda da escassez de escolhas. Ou, por outro lado, a mesa central coubesse melhor em nosso desejo secreto de, após tantos anos, ser o centro das atenções: para nós mesmas, para o bar, para o universo. A loira usava um coque frouxo, a franja dourada, repartida no centro, caindo-lhe no rosto. Meus cabelos de mogno pendiam soltos, embaraçados, libertos. Porque, naquele dia, livre eu estava.

O garçom que nos serviu chamava-se Lindomar. Seria cômico se não fosse trágico; ou, quiçá, o contrário. Ou, talvez, eu seja apenas observadora demais, intimista demais e não me desapegue ao hábito de tocar as pessoas e chamar a todos pelo nome, ainda que tenha que lê-los em crachás polidos de metal. Há garçons que são apenas isso: garçons. Outros possuem nomes inesquecíveis, que combinam a beleza natural da terra onde moram e o belo humano que cada indivíduo encerra em si. A loira insistiu que Lindomar errara a soma das latas de coca-zero e dos croquetes de carne. Eu não prestei atenção. Só via os olhos embaraçados de Lindomar que, erroneamente, acreditava que fôssemos de espécies diferentes, apenas porque nos sentávamos numa mesa central e ríamos alguns decibéis acima do protocolar para o bairro crème de la crème do Rio. Se Lindomar ao menos soubesse que, por essência, viemos do mesmo lugar, ainda que a quilômetros aparte, e que somos vasos da mesma argila... A diferença que salta aos olhos é o polimento, a caminhada, a lapidação; ao final, naquela mesa de bar, éramos todos lindos e recém-adaptados mares.

Ela conta que desistiu de sites de relacionamento; que se cansou de ser o homem em suas relações. Diz que tem muito a oferecer e que, sendo assim, espera no mínimo o mesmo muito em troca. Acho justo, mas minha natureza é outra. Costumo oferecer demais, por vezes sufocar a quem teme oferendas e, não raro, minha balança pende para o lado que não é o meu. A loira me repreende e diz que já passei do tempo de aprender a jogar. Acho relevante. Para alguns, um jogo é simplesmente isso: um jogo. Mas para outros, no entanto, um jogo é um baile de máscaras. E temo as máscaras; elas não me cabem. Nossas risadas se elevam quando ela me conta a gota d'água. Ao que parece, até meninas que pensavam poder voar de guarda-chuva e pintar as unhas com esmalte cintilante para vê-las brilhar no escuro, têm o seu momento de transbordar o copo das desilusões.

Alguém aparentemente interessante, seu vizinho de bairro, disse-lhe que ela parecia ser alguém "muito profunda". A moça se empertigou. É compreensível. Como alguém, de armadura e binóculos, do outro lado inatingível de uma tela, poderia ter condições de julgá-la de maneira tão íntima? Então, eis que chega, agalopado, o golpe mortal, a guilhotina do amor virtual que decepa mentes e expectativas, mais do que cabeças: o desconhecido pretensioso escreve: "Tens telefone? Se for TIM, eu ligo". Gargalhei e perguntei se o seu telefone era, de fato, um TIM. "Não. Claro. Claro que não. E mesmo se fosse, você levaria algo tão bizarro adiante?". Minha operadora é OI. Simples assim; não precisei pensar muito, nem me colocar em seu lugar para ponderar se, fosse eu a mulher "muito profunda", levaria situação tão inóspita adiante.

Revivemos o passado. Chamo Lindomar. Quero outra coca-zero. Ou talvez fosse ela que a desejasse, escapam-me tais detalhes fúteis à memória. Meu desejo era fazer amizade com o Lindomar, assim como sempre anseio pela prosa com taxistas, caixas, balconistas e serventes. Através deles, vem a minha redenção: o ápice da minha rebeldia tardia à la Sidarta Gautama. Não sou budista, nem de esquerda. Entretanto, tenho questões mal resolvidas com a burguesia que, para o bem e para o mal, é o meu berço. Ocorre que esse tipo de questão mal resolvida - e que dificilmente tem remédio - não é papo para uma mesa de bar, púlpito de um reencontro entre amigas que não se viam há duas décadas. Deixei Lindomar de lado, mas não sem um sentimento de empatia dorido, quase como um ímpeto de amparar aquele garçom de olhos tristes e cansados ao colo e levá-lo para ver o lindo mar a apenas duas quadras dali.

Quando os meus pensamentos soturnos - frutos de um velho hábito de auto-sabotagem inexplicável - já me transportavam para longe do bar e do mar e para mais perto da terra e das montanhas, entra pela porta a morena. Um metro e sessenta de pura grandeza e rutilância indescritíveis; cabelos naturalmente cacheados e escuros, que ela, não se sabe exatamente porque, resolveu domar e tingir de vermelho, o que, a priori, representa uma contradição. Vermelho é subversão; cachos, num universo feminino onde impera o liso insosso, também. Vá lá. Toda grande mulher é feita de grandes contradições. Nos dedos roliços, de mãe, amiga, Gaia e avó, esmalte vermelho-cereja. Ela entra na prosa dos sites de relacionamento.

Conta que conheceu um "sujeito legal", caminhando com o seu cachorro numa praia da cidade. Eles tomam um lanche num quiosque. Conta: R$13,50. Ele baixa os olhos e diz que possui apenas uma nota de cinqüenta. A morena torce o nariz. Afinal, cinqüenta pagam treze, principalmente num primeiro encontro. Final de semana seguinte, segundo encontro, tomam um táxi. Conta: R$9,75. O bonitão da bala-chita repete a atitude "sou um cara tímido, porém moderno", baixa os olhos e afirma: "Desculpe, mas só tenho uma nota de cinqüenta". Minha amiga, cabelos ruivos, revoltos, capricorniana de dar medo, fuzila-o à queima roupa: "A mesma?". Esse é apenas um dos motivos pelos quais adoro essa baixinha invocada e espirituosa Achei genial. Mas tenho que comer muito feijão com arroz para crescer em espírito e ter essa assertividade e coragem para saber a hora certa de dizer não, ainda que o "não" seja em forma de pergunta.    

Outro dia, poucos minutos antes da meia-noite, ligo para ela aos prantos, em desespero com a dor que é recomeçar uma vida e nem saber ao certo para aonde ir. A solidão pesou naquela noite e eu era a versão feminina, canhestra, confusa e míope de Atlas. Ela me confortou. Disse-me a frase mais bela que ser-humano algum me dizia há anos: "Onde estão aqueles cavalos selvagens que vi em seu peito quando a conheci?". Nem me lembrava mais de que podia ser um alazão livre e selvagem; acostumei-me à sela, ao cabresto, ao arreio. Naquela meia-noite de morte, minha amiga soprou-me vida adentro e lembrou-me de que caminhar é preciso. Mais do que isso: é obrigatório. E de que, nessa caminhada, estaríamos juntas.

Abraçamo-nos as três: uma loira, uma vermelha, uma morena. Engana-se quem pensa que mulheres tingem unhas e cabelos por pura vaidade ou capricho vão. Unhas e esmaltes; cabelos e tinta: casais que revelam a intimidade da mulher, o seu segredo mais encravado e que, no entanto, ela deseja expor ao mundo, talvez exatamente porque seja um segredo e ela esteja exausta de tantos tabus inexplicáveis, tortos e opressivos. Já dizia Alceu, não o meu pai, mas o Valença:

"(...) Ele: Vamos entrar?
Ela: Não tenho tempo...
Ele: O que é que houve?
Ela: O que é que há...
Ele: O que é que houve, meu amor,
Você cortou os seus cabelos...
Ela: Foi a tesoura do desejo,
Desejo mesmo de mudar (...)"

Abaixo, seguem palavras da Czarina, escritora que não conheço pessoalmente, mas que adoro particularmente:

"Esmalte não é cor, meu amigo, os vermelhos, os marrons e os pinks no fim das contas se parecem e não há por que preferir esta cor à outra. Esmalte é gênio na garrafa, é desejo escondido de se por nas pontas dos dedos, é luz de farolete pra chamar a própria sorte. Daí convém, como poções que são, que tragam o rótulo, o nome, a função, a face que vem - pérola, luxo, magia, cravo-e-canela, atração fatal, paris, condessa, cigana, gabriela, fortuna, malícia, pecado, final feliz. Esmalte, amigo, não é cor nem vaidade, nem nada daquilo que você pensava. Esmalte, amigo, é mandinga da brava."


Meninas crescem. Tornam-se mulheres, mães, amantes, solteiras convictas, solteiras infelizes, casadas contentes, casadas descontentes, descasadas, companheiras, profissionais, ruivas, loiras e morenas. Mudam. E buscam. Por vezes se esquecem do que procuram, mas estão continuamente a escarafunchar o passado, revolver o presente e vislumbrar o futuro. Abandonam os seus casulos e a condição embaraçosa de pupa, ganham asas e, borboletas douradas, desejam voar. Há borboletas que são apenas isso: borboletas. E há aquelas que, numa mesa de bar, às gargalhadas e algumas lágrimas mal-contidas, revelando segredos e se revirando do avesso, como nunca o deixaram de fazer, são aves migratórias. Que não se perdem do bando nem de sua terra de origem, por mais que rondem pelo mundo.