2 de junho de 2011

mesa de bar

Para Milene Portela, Cristina Graneiro, Lindomar e para mim. 

"Café Terrace at Night", Vincent van Gogh

Havia vinte anos que não se sentava a uma mesa de bar com seus amigos de infância, desses que conhecem três quartos da sua persona social e metade daquela parte que só se revela ao analista, a portas fechadas e na penumbra, se possível for. Para certas pessoas, uma mesa de bar é apenas isso: uma mesa de bar. Para outras, é um reencontro com os cem por cento de uma persona antiga e autêntica, até então envolta num mistério brumoso ou soterrada por água salobra, terra e tempo.

Primeiro, o abraço apertado na loira de sorriso aberto, que não teme rugas. Ela aguardava à porta do seu palácio, o trabalho que, após sucessivas derrotas e tentativas malfadadas de sucesso, ergueu não do zero, mas do muito que sua bagagem lhe permitia. Seus olhos são escuros, porém transparentes; sua pele é leitosa, um veludo branco; as mãos são finas, expressivas, falantes; e as unhas, esmaltadas em chumbo. As minhas eram cobertas de algo com o nome alienígena de "nude". Sua bolsa é Karan, de um tom entre o cinza escuro e um preto elegante e, escondida na parte mais secreta do couro, leva uma Mont Blanc, com a qual rabisco dizeres risíveis em minha agenda. Não é por ser uma Mont Blanc que o especial da tinta se revela, mas por ter sido um presente de seu avô. Para certas pessoas, uma Mont Blanc é apenas isso: uma Mont Blanc. Para outras, é um mimo com história e reminiscências.

Escolhemos a mesa central, talvez porque fosse, de fato, a mesa mais apropriada àquela hora da noite. Quando há muitas opções, escolher torna-se uma tarefa tão árdua quanto esperar em fila porque o restaurante está superlotado; a abundância de opções é o reverso da moeda da escassez de escolhas. Ou, por outro lado, a mesa central coubesse melhor em nosso desejo secreto de, após tantos anos, ser o centro das atenções: para nós mesmas, para o bar, para o universo. A loira usava um coque frouxo, a franja dourada, repartida no centro, caindo-lhe no rosto. Meus cabelos de mogno pendiam soltos, embaraçados, libertos. Porque, naquele dia, livre eu estava.

O garçom que nos serviu chamava-se Lindomar. Seria cômico se não fosse trágico; ou, quiçá, o contrário. Ou, talvez, eu seja apenas observadora demais, intimista demais e não me desapegue ao hábito de tocar as pessoas e chamar a todos pelo nome, ainda que tenha que lê-los em crachás polidos de metal. Há garçons que são apenas isso: garçons. Outros possuem nomes inesquecíveis, que combinam a beleza natural da terra onde moram e o belo humano que cada indivíduo encerra em si. A loira insistiu que Lindomar errara a soma das latas de coca-zero e dos croquetes de carne. Eu não prestei atenção. Só via os olhos embaraçados de Lindomar que, erroneamente, acreditava que fôssemos de espécies diferentes, apenas porque nos sentávamos numa mesa central e ríamos alguns decibéis acima do protocolar para o bairro crème de la crème do Rio. Se Lindomar ao menos soubesse que, por essência, viemos do mesmo lugar, ainda que a quilômetros aparte, e que somos vasos da mesma argila... A diferença que salta aos olhos é o polimento, a caminhada, a lapidação; ao final, naquela mesa de bar, éramos todos lindos e recém-adaptados mares.

Ela conta que desistiu de sites de relacionamento; que se cansou de ser o homem em suas relações. Diz que tem muito a oferecer e que, sendo assim, espera no mínimo o mesmo muito em troca. Acho justo, mas minha natureza é outra. Costumo oferecer demais, por vezes sufocar a quem teme oferendas e, não raro, minha balança pende para o lado que não é o meu. A loira me repreende e diz que já passei do tempo de aprender a jogar. Acho relevante. Para alguns, um jogo é simplesmente isso: um jogo. Mas para outros, no entanto, um jogo é um baile de máscaras. E temo as máscaras; elas não me cabem. Nossas risadas se elevam quando ela me conta a gota d'água. Ao que parece, até meninas que pensavam poder voar de guarda-chuva e pintar as unhas com esmalte cintilante para vê-las brilhar no escuro, têm o seu momento de transbordar o copo das desilusões.

Alguém aparentemente interessante, seu vizinho de bairro, disse-lhe que ela parecia ser alguém "muito profunda". A moça se empertigou. É compreensível. Como alguém, de armadura e binóculos, do outro lado inatingível de uma tela, poderia ter condições de julgá-la de maneira tão íntima? Então, eis que chega, agalopado, o golpe mortal, a guilhotina do amor virtual que decepa mentes e expectativas, mais do que cabeças: o desconhecido pretensioso escreve: "Tens telefone? Se for TIM, eu ligo". Gargalhei e perguntei se o seu telefone era, de fato, um TIM. "Não. Claro. Claro que não. E mesmo se fosse, você levaria algo tão bizarro adiante?". Minha operadora é OI. Simples assim; não precisei pensar muito, nem me colocar em seu lugar para ponderar se, fosse eu a mulher "muito profunda", levaria situação tão inóspita adiante.

Revivemos o passado. Chamo Lindomar. Quero outra coca-zero. Ou talvez fosse ela que a desejasse, escapam-me tais detalhes fúteis à memória. Meu desejo era fazer amizade com o Lindomar, assim como sempre anseio pela prosa com taxistas, caixas, balconistas e serventes. Através deles, vem a minha redenção: o ápice da minha rebeldia tardia à la Sidarta Gautama. Não sou budista, nem de esquerda. Entretanto, tenho questões mal resolvidas com a burguesia que, para o bem e para o mal, é o meu berço. Ocorre que esse tipo de questão mal resolvida - e que dificilmente tem remédio - não é papo para uma mesa de bar, púlpito de um reencontro entre amigas que não se viam há duas décadas. Deixei Lindomar de lado, mas não sem um sentimento de empatia dorido, quase como um ímpeto de amparar aquele garçom de olhos tristes e cansados ao colo e levá-lo para ver o lindo mar a apenas duas quadras dali.

Quando os meus pensamentos soturnos - frutos de um velho hábito de auto-sabotagem inexplicável - já me transportavam para longe do bar e do mar e para mais perto da terra e das montanhas, entra pela porta a morena. Um metro e sessenta de pura grandeza e rutilância indescritíveis; cabelos naturalmente cacheados e escuros, que ela, não se sabe exatamente porque, resolveu domar e tingir de vermelho, o que, a priori, representa uma contradição. Vermelho é subversão; cachos, num universo feminino onde impera o liso insosso, também. Vá lá. Toda grande mulher é feita de grandes contradições. Nos dedos roliços, de mãe, amiga, Gaia e avó, esmalte vermelho-cereja. Ela entra na prosa dos sites de relacionamento.

Conta que conheceu um "sujeito legal", caminhando com o seu cachorro numa praia da cidade. Eles tomam um lanche num quiosque. Conta: R$13,50. Ele baixa os olhos e diz que possui apenas uma nota de cinqüenta. A morena torce o nariz. Afinal, cinqüenta pagam treze, principalmente num primeiro encontro. Final de semana seguinte, segundo encontro, tomam um táxi. Conta: R$9,75. O bonitão da bala-chita repete a atitude "sou um cara tímido, porém moderno", baixa os olhos e afirma: "Desculpe, mas só tenho uma nota de cinqüenta". Minha amiga, cabelos ruivos, revoltos, capricorniana de dar medo, fuzila-o à queima roupa: "A mesma?". Esse é apenas um dos motivos pelos quais adoro essa baixinha invocada e espirituosa Achei genial. Mas tenho que comer muito feijão com arroz para crescer em espírito e ter essa assertividade e coragem para saber a hora certa de dizer não, ainda que o "não" seja em forma de pergunta.    

Outro dia, poucos minutos antes da meia-noite, ligo para ela aos prantos, em desespero com a dor que é recomeçar uma vida e nem saber ao certo para aonde ir. A solidão pesou naquela noite e eu era a versão feminina, canhestra, confusa e míope de Atlas. Ela me confortou. Disse-me a frase mais bela que ser-humano algum me dizia há anos: "Onde estão aqueles cavalos selvagens que vi em seu peito quando a conheci?". Nem me lembrava mais de que podia ser um alazão livre e selvagem; acostumei-me à sela, ao cabresto, ao arreio. Naquela meia-noite de morte, minha amiga soprou-me vida adentro e lembrou-me de que caminhar é preciso. Mais do que isso: é obrigatório. E de que, nessa caminhada, estaríamos juntas.

Abraçamo-nos as três: uma loira, uma vermelha, uma morena. Engana-se quem pensa que mulheres tingem unhas e cabelos por pura vaidade ou capricho vão. Unhas e esmaltes; cabelos e tinta: casais que revelam a intimidade da mulher, o seu segredo mais encravado e que, no entanto, ela deseja expor ao mundo, talvez exatamente porque seja um segredo e ela esteja exausta de tantos tabus inexplicáveis, tortos e opressivos. Já dizia Alceu, não o meu pai, mas o Valença:

"(...) Ele: Vamos entrar?
Ela: Não tenho tempo...
Ele: O que é que houve?
Ela: O que é que há...
Ele: O que é que houve, meu amor,
Você cortou os seus cabelos...
Ela: Foi a tesoura do desejo,
Desejo mesmo de mudar (...)"

Abaixo, seguem palavras da Czarina, escritora que não conheço pessoalmente, mas que adoro particularmente:

"Esmalte não é cor, meu amigo, os vermelhos, os marrons e os pinks no fim das contas se parecem e não há por que preferir esta cor à outra. Esmalte é gênio na garrafa, é desejo escondido de se por nas pontas dos dedos, é luz de farolete pra chamar a própria sorte. Daí convém, como poções que são, que tragam o rótulo, o nome, a função, a face que vem - pérola, luxo, magia, cravo-e-canela, atração fatal, paris, condessa, cigana, gabriela, fortuna, malícia, pecado, final feliz. Esmalte, amigo, não é cor nem vaidade, nem nada daquilo que você pensava. Esmalte, amigo, é mandinga da brava."


Meninas crescem. Tornam-se mulheres, mães, amantes, solteiras convictas, solteiras infelizes, casadas contentes, casadas descontentes, descasadas, companheiras, profissionais, ruivas, loiras e morenas. Mudam. E buscam. Por vezes se esquecem do que procuram, mas estão continuamente a escarafunchar o passado, revolver o presente e vislumbrar o futuro. Abandonam os seus casulos e a condição embaraçosa de pupa, ganham asas e, borboletas douradas, desejam voar. Há borboletas que são apenas isso: borboletas. E há aquelas que, numa mesa de bar, às gargalhadas e algumas lágrimas mal-contidas, revelando segredos e se revirando do avesso, como nunca o deixaram de fazer, são aves migratórias. Que não se perdem do bando nem de sua terra de origem, por mais que rondem pelo mundo.   

2 comentários:

  1. Anônimo5.10.11

    Adoooorei!!!!
    Tanto a crônica, quanto o encontro....
    Precisamos repetir.
    Bjs
    Loira do coque frouxo!!!!!!

    ResponderExcluir
  2. Que bom que gostou, coisa linda! Também amei o seu comentário. Temos que repetir, ah, se temos! Beijos!

    ResponderExcluir