16 de junho de 2011

Doze de Junho



Passou o 12 de junho. Agora posso, enfim, escrever sobre ele. Certas coisas são como são e pronto. Assim é com o tempo e com as crostas de ferrugem da rotina que corroem lenta e inexoravelmente o amor e o sentimento de enlevo dos enamorados. Mas não há nada mais corrosivo do que o presente. Não o tempo; mas o embrulho com papel colorido e laço de fita. O presente estraga a relação. Se quiser sobreviver ao Dia dos Namorados a dois, meu amigo, poupe o seu tempo, o seu Visa e o seu investimento pessoal. Porque, ao dar um presente, o amante coloca em risco a então abençoada - ainda que hipotética - segurança do seu relacionamento. Um presente é, por definição, uma caixa de Pandora e, na pior das hipóteses, um presente de grego. Se o conteúdo da caixa enfeitada em poá e laço vermelho não refletir o conteúdo do presenteado ou, pior, se representar exatamente o oposto da essência daquele que o recebe, fica claro que nem mesmo a intenção valeu. O presente inadequado, seguido do inevitável sorriso amarelo, do baixar embaraçado dos olhos e do abraço com direito a tapinhas nas costas é a prova cabal e irrefutável de que fulano desconhece sicrano nessa instituição denominada "casal". E não há frustração maior do que descobrir que se pensava conhecer o ser amado justamente no 12 de junho.

Já posso sentir cenhos franzidos em desaprovação à esta crônica. Tenha calma, leia até o final e permita-me explicar meu ponto de vista. Pessoalmente, adoro presentes. Gosto mais de dá-los do que de recebê-los, confesso. Mas tal preferência tem duas razões de ser, além da óbvia: já recebi incontáveis cavalos de Troia como presentes, caixas de Pandora cujo poder, uma vez liberado de seu invólucro, é inenarrável, além de descabido para um texto com aspirações ao Dia dos Namorados. O outro motivo é mais complexo, ainda que mais facilmente justificável: se escrevo é porque, antes de qualquer coisa, gente em geral é o meu maior interesse. Quando vou a um shopping, ou sento num banco de praça, tomo o metrô, caminho pelo parque ou aguardo pelo filme durante aquele intervalo reservado aos anúncios no cinema, quando as luzes ainda estão acesas, meu hobby e obsessão inevitáveis são observar as pessoas. Não há julgamento de valor nesse processo de exame; talvez, o que seria grande hipocrisia de minha parte não confessá-lo, uma certa análise.

Gosto de prestar atenção ao que estão fazendo. Se leem o jornal, qual seção prende-lhes os olhos; se ouvem música; se dormitam; se conversam uns com os outros. O conteúdo de suas conversas sempre tem relevância, por envoltas que são pela aura de magia do distanciamento, que, no mínimo, há de render uma crônica; se entram numa bolha anti-ruídos, anti-observação e anti-diálogo, que os mantém imersos num universo próprio, não este a que pertencemos os demais; se também, como eu, observam os outros. Tem gente que preenche as lacunas do ócio de cabeça baixa; outros, olham a paisagem; eu, observo atenta, maravilhada e vorazmente as pessoas. A mim, é irrelevante se, no final do mês, sobra-lhes dinheiro para guardar sob o colchão, na caderneta de poupança ou em aplicações na bolsa de valores; não me faz diferença se usam ternos, vestidos surrados, tailleur, havaianas ou sapatos italianos; se são amarelos, azuis, verdes, grandes, pequenos ou gigantescos; se falam português, chinês ou tumbuka; se tingem cabelos e unhas ou se as roem e são carecas; se estão dando seus primeiros passos no mundo ou saindo dele com seus últimos, igualmente lentos e trôpegos. Gente é gente e ponto. O resto é adorno, escudo, impostação vocal e detalhes. Ah, sim, claro. Os pequenos detalhes que contam as grandes biografias de cada um.

Já chego no gancho; geralmente, bom observadores fazem bons presenteadores. E, por mais esdrúxula, minha afirmação tem certa lógica: se você observa as pessoas atentamente, de perto, dando ouvidos ao silêncio que permeia o ambiente, circunda a personalidade e faz brotar uma orquestra sinfônica de peculiaridades, as chances de não errar na hora de embalar o mimo nos braços de Pandora são maiores. Por isso gosto tanto de "Crash" (2004), de direção do Paul Haggis. Embora o filme se passe em Los Angeles, na época do Natal, presentes - ou a forma como as pessoas os dão e os recebem - não são o enfoque de Haggis, mas sim a falta de observação das pessoas umas às outras. O diretor parte da premissa de que cada um vive em seu próprio universo-umbigo, submerso em tal atitude blasé ao ponto de não se ouvir, nem se compreender, como numa Babel alucinada e fora de propósito numa época em que mal-entendidos ideológicos e raciais tomam proporções de ataques e ofensas pessoais - e internacionais; Haggis baseia-se na onda de horror, auto-proteção e "bunkerismo" subseqüente ao ataque de 11 de setembro de 2001, nos Estados Unidos.

O filme começa com a fala de uma das personagens, um policial: "em Los Angeles ninguém se toca. Estamos sempre atrás do metal e do vidro. Acho que sentimos tanta falta desse toque, que batemos uns nos outros só para sentir alguma coisa". A frase, dita nos primeiros segundos de abertura, é crucial não apenas por explicar o propósito mesmo da produção, mas por preparar o espectador para o que vai ser abordado: da falta de observação alheia - fruto do medo e do egoísmo - nasce a ausência do toque, leia-se "calor humano", ou, se preferir, "empatia". Com olhos apáticos, tal qual um cristalino esbranquiçado e cego, tomado pela catarata, vemos o mundo através de bolhas em que, toupeiras, encravamo-nos. Não é a realidade que se vê, mas a percepção leitosa e distante de um universo a que pertencemos, mas do qual tentamos escapar. No entanto, somos, antes de toupeiras cegas, erráticas e solitárias, humanos. E, assim sendo, o "toque" - seja pela forma de diálogo, de um olhar trocado, de uma gentileza gratuita, de um abraço ou mesmo de "acidentes" (incidentes...?), é fundamental para espaventar a loucura, a neurose, o medo, a mudez e a cegueira.

Mas não era de "Crash" que eu queria falar; nem de terrorismo e muito menos de política. Nem de presentes, ao final e ao cabo, embora todos esses elementos sirvam ao propósito de ilustrar o cerne da minha ideia. É sobre a observação e o "toque", em contrapartida aos olhos de toupeira do mundo e ao ostracismo ao qual nos acostumamos a subsistir, que desejo escrever. O medo embaça a visão; depois paralisa. Tetraplégicos na alma, não caminhamos passos próprios: somos empurrados adiante pela maré de demais seres autômatos, numa massa informe e embotada, tal qual gado à entrada do abatedouro. E nossos corpos, à semelhança dos das bestas à espera do abate, exalam o cheiro do pavor. Fedemos de medo do desigual e do estrangeiro; fedemos de horror da aproximação do outro; de solidão; de cegueira e mudez auto-imputadas; recendemos às certezas putrefatas da vida de inesperados que levamos; fedemos às camadas sobrepostas de adequação, civilidade, sucesso e felicidade, todos conceitos pré-pagos, que compramos à moda de celulares descartáveis que utilizamos sem saber bem porque. E cujos bônus, se é que existem, perdemos. Somos gado; estamos nus; acorrentados uns aos outros pelos pés inertes; antevemos o abate, certeza única de quem está vivo; e fedemos. Fedemos porque temos nojo de olhar para os lados, de observar de perto, de estender as mãos, descolar os lábios, dizer "existo" e tocar. Olhar e tocar não dói. Ao contrário: sela as chagas de quem estende as mãos e de quem as pega.

Doze de Junho; Vinte e Cinco de Dezembro; Segundo Domingo de Maio; Segundo Domingo de Agosto; Doze de Outubro; O Seu Dia. Todas datas que calendários, vitrines e redes sociais encarregam-se de nos lembrar que é hora de - oops! - abrir os olhos, observar de perto, tocar e, para não fugir à tradição ou parecer ativista de esquerda, aquecer a economia local e presentear a quem você ama. Mas, então, com as datas comemorativas, nascem os dilemas comemorativo-existenciais: Amo...? Devo dar um presente? E se não receber nada em troca...? O que comprar? Escrevo um cartão ou bilhete para acompanhar? Escrevo alguma coisa ou mando um torpedo? Precisa escrever qualquer coisa...? Ela gostaria de um livro, de uma cadeira art déco ou de um buquê de margaridas? Ele é o tipo que prefere halteres, um CD do Schoenberg ou vasilhas para guardar molho shoyu? Ele é de que tipo, mesmo...? Que porção da minha vida ela ocupa, então...? Não seria melhor um vale-presente da Americanas? Depósito em conta-corrente...? E se ele quiser trocar? Mas e se ficar sem graça...? Valem vale-presente e vale-troca...? O que dar para alguém que tem tudo? E para alguém que não tem nada...? Que dia é hoje, mesmo? Mas, já?!

Dilema:
s.m. Argumento composto de duas proposições contraditórias.
fig. Situação embaraçosa que apresenta somente duas soluções, ambas difíceis ou inconvenientes, o que gera perplexidade para uma opção.


O verbete "dilema comemorativo-existencial" não consta no vernáculo. Nada surpreendente. Até porque, se o ato de presentear for uma "situação embaraçosa que apresenta somente duas soluções", o cenário fica ainda mais sombrio: embaraçoso é tudo o que não é natural - leia-se "ilegítimo", e entre duas soluções, dar um presente ou não, "ambas difíceis e inconvenientes", bem... É como disse anteriormente: nem a intenção fica valendo. Se a comemoração é um dilema - isso quando chega a ser elevada ao status de comemoração - e se presentear ou não é outra contradição, a coisa toda não passa de uma pantomima ilógica, anti-natural, forçada e desproposital; é um não-dilema, na verdade. É para não ser. Onde há muita dúvida, há fogo. E onde há fogo, há o fedor do medo de observar o outro e de descobrir que, para começo de conversa, nem mesmo chegara a conhecê-lo. A comemoração e o presente não são o dilema. O dilema é: observar ou não; tocar ou não; entregar-se ou não. Resolvido este, o presente - tempo ou caixa com laço de fita - são outra história.               

2 comentários:

  1. Alberto Lacerda16.6.11

    Oi amiga, esse deu medo, rsrs.Ainda bem que o Natal está longe!!

    ResponderExcluir
  2. Excelente comentário, Alberto. É verdade. Esse está meio soturno. Mas, no final, a mensagem é positiva. Ótimo tê-lo aqui de volta. E melhor ainda poder me alegrar com os seus comentários. Abraço de urso!

    ResponderExcluir