30 de setembro de 2010

Vinte e Uma Verdades Absolutas e Absolutamente Contestáveis



1.    “Homens são de Marte, mulheres são de Vênus”.
Somos, ambos, do mesmo planeta e falamos a mesma língua. A diferença é que homens, quando meninos, brincam melhor com Lego e mulheres, desde meninas, falam demais e têm senso espaço-direcional muito pior.

2.    “Mertiolate arde pra cacete”.
Não arde mais, desde que o fabricante mudou a fórmula, há mais de 15 anos, para clorexidina pura. Agora, ele é só um anti-séptico inofensivo, e nem adianta tentar fazer medo em criança com ele.

3.    “Pai e mãe estão sempre certos”.
Pai e mãe são gente igual a seus filhos, passíveis de falhas. Essa “verdade” só cola até a gente sair do segundo-grau e começar a bater de frente com eles, e ver que não são e nunca nem quiseram ser totens. Apenas humanos. Pais que tentaram criar um indivíduo melhor para um mundo que, às vezes, não é melhor. Humanos que erram, mas que amam. E nem sempre estão certos, embora queiram sempre o melhor para os seus filhotes.  

4.    “Devagar tudo se alcança”.
Você pode até caminhar devagar para alcançar seus objetivos, mas às vezes, se não der uma corridinha, vai perder o trem e ficar para trás de quem foi mais esperto e apertou o passo. Então, caminhe sempre. Ficar parado cria lodo e limo, e a gente acaba virando gárgulas em tetos de catedrais. Mas, nessa caminhada, altere as marchas. A gente pode fazer isso porque somos movidos a câmbio manual, e não automático, daqueles que vão passando as marchas à nossa revelia. Cambiar sua caminhada dá mais fôlego, mantém o motor da gente “cheio”, respondendo rápido. 

5.    “Coca-cola desentope pia”.
Coca não desentope pia, nem nariz. Também não tem cocaína na fórmula e aquela história de que um trabalhador da fábrica de Chicago caiu num tanque pronto para engarrafamento, foi cozido e todo mundo bebeu o refri sem sentir o gostinho do camarada, é a maior balela de todos os tempos. O único mal comprovado cientificamente que a Coca faz é acelerar o processo de descalcificação óssea, também chamado de osteoporose. Se você bebe muita coca, então, tome uma pílula de Carbonato de Cálcio com vitamina D3 por dia.

6.    “Melhor um pássaro na mão do que dois voando”.
Melhor nenhum pássaro na mão do que ter, em mãos, um pássaro que não é o seu, que não canta e que é arisco. Mãos vazias, por um tempo, é uma boa tática até você conseguir o que realmente quer e precisa.

7.    “Ele(a) dorme como um bebê”.
Quem diz isso nunca teve bebês em casa, com cólicas às três da madrugada e/ou acordando a cada três horas para mamar.

8.    “Mulheres são péssimas motoristas”.
Há exceções. Mulheres são acomodadas quando se trata de dirigir, e preferem passar o volante para um companheiro e ficar se maquiando ao espelhinho do quebra-sol. Isso quando se atrevem a dirigir longas distâncias. Mas, boas ou más motoristas, mulheres têm senso de direção basicamente detonado. Por isso, amigas, usem mapas. Ou um GPS. Ou então, o que é muito mais divertido, vá parando no caminho e pedindo informações.      

9.    “Toda mulher nasceu para ser mãe”.
Maternidade é um sentimento que nasce com a mulher junto com seu filho, e vai se construindo e solidificando à medida que o bebê vira criança e, de criança, adulto. Mas muitas mulheres preferem trabalhar, morar sozinhas e ter cães e gatos.

10.  “Os opostos se atraem”.
Isso se aplica apenas à lei do eletromagnetismo. Com amigos, sócios, namorados, amantes e afins, o melhor mesmo é procurar quem tenha gostos e atitudes semelhantes aos seus. A diferença acrescenta e enriquece o universo individual, mas na convivência diária, cria atritos irreparáveis.

11. “Discos de vinil têm som melhor do que CD’s”.
Isso é muito descolado para se dizer se você tiver uma coleção de mais de duzentos exemplares, mas desde que a Phillips parou de fabricar agulhas de diamante, o som dos álbuns de vinil é bem ruinzinho e, vamos combinar, o chiado tira o charme de qualquer sinfônica e/ou banda de rock.

12. “É preciso fotografar. Sempre. Cada momento”.
Sair com uma câmera na mão, em férias de família, por exemplo, querendo registrar cada “Kodak Moment” e mandando a galera posar e dizer “xiz” a cada dez minutos acaba quebrando o encanto da coisa. Tem imagens que a gente registra é na memória, e mais, no compartimento sentimental da memória onde, além da cena, moram os cheiros, os sabores e a saudade. E isso, nenhuma Cannon dá conta de registrar. Então, a passeio, observe mais as cenas com as suas próprias “lentes”, e não através de lentes objetivas.

13.  “Discutir o relacionamento, sempre, é essencial”.
Só se você quiser um divórcio ou acabar o seu namoro em tempo recorde. DR’s são chatas, embaraçosas, tomam tempo e os envolvidos acabam falando demais. Discuta apenas o necessário, para cruzar pontes e não voltar pelo mesmo caminho. No mais, deixe as almas e os corpos se comunicarem, com pequenos gestos diários, silêncios preenchidos de significado, rotina saudável. Deixe a DR para o seu analista, se você tiver um.

14.  “Meus amigos são minha família”.
Não, seus amigos são seus amigos, que você escolheu integrar à sua vida. Sua família é sua família, a qual você pertence querendo ou não. A questão é que seus amigos também têm as famílias deles e, eventualmente, podem partir. Você pode até desertar de sua família, mas dificilmente as portas estariam fechadas, caso você retornasse. Se estivessem fechadas, é porque você deu azar e, nesse caso, é mesmo melhor que você adote amigos como família. Para mais informações, assista ao curta “Patinho Feio”, de 1936.

15. “O tempo cura/apaga todas as feridas”.
Tempo não é band-aid, esparadrapo, Terramicina, nem Nebacetin. Tempo é uma fita métrica, que, à medida que vai se esticando para longe de nós, ou melhor, nós dele, deixa os fatos do passado tão distantes que a gente os vê como vê as pessoas do alto de uma asa-delta: um bando de formiguinhas, indistintas. As feridas do passado continuam, em forma de cicatriz. No início, porque a fita métrica do tempo correu pouco, dói ao menor roçar dos dedos. Depois, como toda cicatriz, torna-se insensível ao toque. E tem que ser assim porque, se a gente expuser a alma com cicatrizes vivas, é porque elas ainda são feridas abertas, e acaba-se tornando alguém amargurado, disforme.

16. “Para curar um amor perdido, só mesmo um novo amor adquirido”.
Balela. Para curar um amor perdido, só mesmo um tempo de solidão, como o urso hibernando no inverno, para a gente catar os cacos de si mesmo, montar tudo outra vez e se mostrar novamente para o mundo como um ser inteiro, e não facetado pela dor. Se você embarcar nessa, vai usar o tal “novo amor adquirido” como muletas, que nenhum aleijado ama de verdade, mas usa porque precisa delas. Ruim para você, que cai num engano doloroso, pior para ele(a), se descobrir que um dia nem foi amado de verdade.

17. “No amor e na guerra, vale tudo”.
Vale tudo desde que você não engane a si mesmo, nem ao próximo. Na verdade, eu nunca entendi muito bem porque esse ditado usa “amor e guerra” na mesma sentença. Deve ser porque toda guerra é, ou deveria, ser imbuída de paixão, não é? Então, se no amor e na guerra tudo valer, vale também aniquilar o outro, escravizar, desumanizar. E isso, pense bem, não pode valer.

18. “Até que a morte os separe”.
Só se você, numa relação vazia de sentimentos, mesmo que “socialmente” estável, preferir morrer em vida antes mesmo de partir desta para melhor. Recomeçar é um direito universal, porque a história da gente não começa com final pronto; vai-se escrevendo, cada um de nós, passo a passo, e dá para, no meio do livro, repensar o enredo e partir para um final diferente. Mas o final, de verdade, quem vai contar não é você, mas seus filhos que presenciaram sua história encenada, e seus poucos, verdadeiros amigos. Ou seja, não dá para saber o final de nada, até se chegar até lá. E tentar. E essa é a beleza da vida. Reescrever, recomeçar, reaprender, recriar, reciclar.

19. “Vontade é coisa que dá e passa”.
Isso é desculpa que a gente usa quando enterra um sonho, deixa de aproveitar uma oportunidade pelo medo de abrir uma porta ou perde um trem porque estava parado no caminho ou andando feito uma lesma. Vontade é aquela comichão na alma que atesta nossa vitalidade. Sem vontades, somos robôs, meros zumbis caminhado em frente com tapa-olhos, para não ver como o horizonte é imenso. Então, vontade dá, sim, e a gente tem duas opções quando ela surge, lá no fundo de nossas entranhas: fazer o que está ao nosso alcance para fazer da vontade um objetivo, do objetivo uma meta e, de meta, um acontecimento real. Ou, como segunda alternativa, ignorar a comichão, fazer mil coisas para mover o foco, não abrir aquela porta nem aquela janela e “enterrar” a vontade. Mas, acredite, ela não passa. E muitas vontades enterradas no terreno fértil que é nosso coração, podem um dia emergir, dando um baita susto na gente. Mais informações, assista ao clip “Thriller”, do Michael Jackson.

20. “Somos todos iguais, perante de Deus”.
Eu nunca vi Deus nem nunca falei com alguém que tenha levado um papo com Ele. Mas, NÃO perante a Ele, que é aqui, no dia-a-dia da vida, somos todos diferentes, únicos, cada um com uma “doideira”, a idiossincrasia que faz de nós aquela pessoazinha especial, sem a qual aqueles que nos amam não sabem viver. E é direito nosso ser diferente, fazer uma virada em “U” e seguir para o sul, ao invés do norte. E por sermos, todos, diferentes um do outro, temos a obrigação de tratar o outro como acreditamos que merecemos ser tratados: com exclusividade. Nem numa manada de bois brancos para corte, ou entre mil zebras, todos são iguais. E o bom criador sabe como tratar cada um de seus bois. Mas a gente não é gado, nem zebra. E se cada um de nós tratar o outro com exclusividade, como gostaríamos de ser tratados, no final e ao cabo seremos todos tratados de maneira justa e igualitária. Mas, cada um na sua, com alguma coisa ou nada em comum.

21. “Tudo é relativo”.
Bem, em tese, tudo é de fato relativo, até as verdades ditas absolutas. O problema é quando “relativizar” costuma virar um hábito para fazer a humanidade engolir barbáries a seco. Isso costuma acontecer muito com antropólogos, que relativizam toda e qualquer prática cultural. Sofisma. Balela. Touradas não são relativas; rinhas de cães e galos não são relativas; terrorismo e a “guerra ao terror” não são relativos; mulheres com as genitálias mutiladas, sendo apedrejadas por adultério e usando burcas, isso não é relativo; meninos que moram em favelas e idolatram os donos das “bocas”, seguindo-nos como exemplo de sucesso, também não é relativo; meninas japonesas tendo seus pés enfaixados e os ossos deformados, para se tornar gueixas perfeitas, não é relativo; comer barbatanas de tubarão e cães exóticos porque as ditas “iguarias” aumentariam a virilidade masculina, não é relativo; matar focas e outros animais para usar-lhes a pele como adorno, não é relativo. Enfim, nenhum desses hábitos culturais ditos “relativos” vai de encontro à evolução social e cultural da humanidade, ao contrário, estão na via da desumanização. E desumanizar não pode – nem deveria – ser relativo.

29 de setembro de 2010

Little Miss Sunshine, vulgo Milene Portela

Pense numa florzinha do campo amarela, murchinha e seca, num terreno devastado, de solo árido e inóspito.

Esta sou eu. Ou sou eu agora. Ou era o que eu pensava ser. Ser e estar são coisas tão diferentes...


Agora pense nessa florzinha recebendo, aos poucos, gotas de água fresca, revitalizante, em forma de pequenos, grandes "comentários" ao seu enraizar incerto e solitário no mundo.

Agora, imagine como é, para essa florzinha, se sentir inteiramente compreendida, como numa comunhão "vegetal" de almas.


Agora, pense na florzinha rebrotando, explodindo em cores, e sorrisos, e sementes, por causa de você.

Que é meu pequeno regador, meu sol que ilumina sempre, mesmo à distância.

Seu pássaro já mora em meus galhos, garota-fênix, hoje mulher que varre as próprias cinzas e se recria e renova, sempre que o destino a convoca.

E eles, teu pássaro e meus galhos, já conversam e se entendem, como velhos amigos que são.

Máscaras de Sol e de Grau

Há cerca de quinze dias, voltei de uma consulta com o meu oftalmologista com o seguinte diagnóstico: hoje, sem o apoio de lentes corretivas, eu tenho apenas 57% de visão de um adulto da minha idade. Nada de mais, na verdade, só astigmatismo e hipermetropia. O que aconteceu foi que, com o passar dos anos, o grau aumentou e, para quem lê e escreve muito, ou seja, “força” a vista, as letras embaralham, fica tudo muito embaçado, dirigir à noite é desconfortável – e eu sempre amei dirigir à noite – e, de longe, você não distingue muito bem o Clive Owen do Jude Law, por exemplo.

O primeiro pensamento que me passou pela cabeça, na hora, foi: “que coisa triste é a gente ficar velho”. Depois, deixei a elucubração de lado e parti para o terreno prático: “Doutor, será que dá pra usar lentes de contato?”. Dar, até que dá, mas primeiro o candidato às lentes tem que passar por vários testes para saber se a constituição dos olhos suportaria o uso delas. E, depois, o doutor acrescentou, “você só vai usar os óculos mesmo para ler, para dirigir, para escrever, ir ao cinema, ver televisão...”. Resumindo, para praticamente tudo que não fosse tomar banho, fazer xixi e transar – com a exceção do sexo virtual que, em tese, exigiria computador, então...

Ainda não fiz meus óculos. O fato é que dá para enxergar tudo, só que não tão nitidamente e não muito de longe, principalmente se for um cardápio de petiscos tailandeses. Daí que vou forçando a visão, tendo umas dores de cabeça de vez em quando e protelando até o último momento para fazer os benditos óculos. Fico pensando na armação, na cor, no peso, ai, me dá uma canseira...!

O engraçado nisso tudo é que, de uns tempos para cá, eu passei a amar óculos. Escuros. Meu xodó é um Gianfranco Ferrè vinho de acetato, com a armação toda facetada, como se fosse um diamante. Claro que eu não poderia ter comprado um Ferre a essa altura do campeonato e, claro, vou ficar pagando esse mimo durante quase um ano, até encontrar um ainda mais bonito e me arrepender de tê-lo comprado, em primeiro lugar. Agora cismei com um Ray Ban enorme, de lentes de vidro dégradé, amareladas e não-espelhadas, e hastes de metal douradas. Mas como não sou – nem posso ser – perdulária, faço o que a maioria de todos nós fazemos quando temos uma vontade: espero ela passar. Pode até demorar, mas passa.

Então, qual é o problema com os óculos de grau? Tem gente que ama tanto seus óculos de grau e sua miopia que tem uma porção deles: tradicionais, coloridos, com hastes de metal, com hastes de acetato, e acha o maior barato usá-los mesmo que seja só para fazer xixi – ou transar, vai se saber, cada um com sua própria fantasia, não é?

Sabe quando sua cabeça encasqueta com uma determinada coisa, e aquilo fica feito um defeito na injeção eletrônica do carro, que você nunca descobre de verdade? Pois é. Acho que rola um lance parecido comigo e os óculos. Eu até olhei um ou outro de longe, na vitrine, sem sequer sonhar em entrar com a minha receita na loja, mas aí vem o tal “defeito” e eu fico pensando na Welma, do Scooby Doo; no irmão do meio da Wendy, o John, do Peter Pan; no galinho Chicken Litlle; no Clark Kent que, mesmo com visão de raios-X, caramba, vai ao Planeta Diário com óculos para parecer meio bobão para a Lois; no Thomas Riplley que, antes de assumir a identidade do amigo rico e popular e virar o jogo, usava uns óculos de espantar até cangaceiro bravo; no Mister Burns, com aqueles oclinhos medonhos na ponta do nariz; no Peter Parker, que só redescobre seus poderes-aranha quando os óculos caem no chão e ele percebe que enxerga melhor sem eles; no nerd-mor de Porky’s, que só consegue a primeira namorada depois que joga os óculos pela janela da sala... São tantas personagens aludindo ou à inteligência ou ao aparvalhamento que os óculos de grau imprimem que, honestamente, dá certa insegurança de usá-los em público.

Agora, com óculos escuros, as lentes mudam totalmente de foco. Quem não se lembra do Bogart e seus óculos pretíssimos pedindo: “Toque mais uma, Sam”? E do Ray Ban do Tom Cruise em Top Gun, ao por do sol, levando a instrutora para passear na moto mais bacana de todos os tempos, ao som de “Take My Breath Away”? E dos milhares de Wayfare da “Bonequinha de Luxo”, Audrey Hepburn? E dos incontáveis Guggi da Marylin, que encantou o presidente com um simples “Happy Birthday”? E dos modelos esportivos Armani de Lara Croft, vulgo Angelina Jolie, em Tomb Raider? E dos sensualíssimos óculos de brechó – assim ele diz – do Russel Crowe? E dos milhares de Tom Ford da “patricinha” mais badalada do momento, Paris Hilton?

Aliás, e é sobre isso esta crônica, por que as celebridades só posam para foto com seus óculos escuros e, ultimamente, virou moda a galera colocar a foto de perfil do Orkut, claro, com óculos escuros? Por que óculos escuros são tão bacanas e populares e, na contramão, óculos de grau aludem à idade avançada, alunos CDF’s chatos e jogadores de xadrez? Não é possível, alguma resposta tem que haver para esse fenômeno cultural/comportamental esquisitíssimo.

Tão esquisito que, em contrapartida, quem assume seus óculos de grau são, em quase 90% dos casos, intelectuais de carteirinha e atuantes nos DCA’s de universidades, mulheres independentes até o último fio de cabelo, que apresentam programa de TV e/ou escrevem livros sobre a libertação sexual feminina, bichos-grilo que sempre têm um papo sobre economia sustentável e Greenpeace e, claro, o John Lennon, a Yoko Ono, o Woody Allan, o Gabeira e a Fernanda Young (que caem, de uma forma ou de outra, nas categorias acima). Só um minutinho aí, doutor, ajusta essas lentes, que a coisa ainda tá bastante embaçada pra mim!

E se não pensarmos em óculos como armações de acetato ou metal munidas de lentes, mas, ao contrário, máscaras? Porque, para conviver em sociedade, cada um de nós usa uma “máscara” em dado momento, às vezes porque ter uma persona pública é necessário, outras vezes porque ser uma persona já se tornou o modo de vida adotado pelo indivíduo. Nesse ponto, me lembro do último filme dirigido pelo Kubrick, o “De Olhos Bem Fechados”. Se você assistiu a esse filme, com certeza se lembra da cena em que o marido vai um baile secreto em que todos, absolutamente todos os participantes do ritual, usam máscaras venezianas. Quando ele é descoberto como um impostor, mandam-no retirar a máscara. E ele, com seu terno Armani impecável, sente-se absolutamente nu em meio à multidão de mascarados, nu porque apenas ele tem sua identidade reconhecida, exposta.

A máscara pode aparecer das formas mais inusitadas. Pode ser uma maneira de agir diferente no local de trabalho, um sorriso que você só distribui em situações específicas, uma maquiagem mais elaborada, que faz a mulher se sentir mais poderosa – assim como um salto-alto também é uma máscara - , uma postura absolutamente relaxada que você assume com os amigos do bar mas não consegue envergar em casa, com a mulher e os filhos à mesa de jantar, as piadas contadas numa roda de amigos, para preencher os espaços vazios da conversa, uma alegria efervescente que esconde uma alma melancólica, ou uma melancolia perene, para atrair piedade e atenção alheias, gírias que você só fala para ser inserido numa determinada tribo, nem que seja por poucos minutos, mentiras que se conta sobre si mesmo, a guisa de “história de vida”, para se fazer mais interessante e único para alguém. E, o mais espantoso, às vezes envergamos nossas “máscaras” com tanta frequência e naturalidade que elas passam a ser parte do rosto, da alma da gente. É como o “Fantasma da Ópera”. Sem sua máscara, ele não é o gênio que produz óperas e encanta a doce Christine. Sem a máscara do Fantasma – que por sinal é o símbolo máximo da peça – ele é apenas uma criatura disforme, um monstro soturno e atormentado que vive nas catacumbas do Teatro e não olha nunca no espelho. Ele é a máscara, a máscara é ele.

A questão é: quando devemos esconder um pouco, ou totalmente, de nossa verdadeira personalidade e usar uma máscara, um escudo, um adaptador social? Ou, será que não dá para ser uma pessoa só, o tempo todo, em quaisquer ocasiões? E, se as máscaras são de fato necessárias, como saberemos a hora certa de retirá-las? Como saberemos se a máscara que usamos lá fora já não nos tomou por completo, aqui dentro? Como saber se, de indivíduos únicos, não nos tornamos prisioneiros do personagem, ou dos múltiplos personagens que interpretamos quando nos convém?

Particularmente, eu nunca gostei muito de máscaras, nem as venezianas, que me dão um medo descomunal, nem as sociais, que às vezes eu até tento, mas não consigo envergar. E, honestamente, isso não tem sido uma grande vantagem na minha vida prática, porque vou transitando por mundos diferentes sem me transformar em pessoas diferentes, e esse comportamento muitas vezes fecha portas para mim. Não interpretar papéis ou, em outras palavras, não saber jogar no tabuleiro de xadrez da vida, nem ocultar certas nuances da minha essência, tudo isso faz de mim alguém muito desnuda, como se houvesse apenas, entre mim e o mundo, uma fina e transparente camada de vidro. E, pensando bem, qualquer um pode martelar essa camada e rachá-la de cima a baixo. Mas muito poucos têm coragem de chegar tão próximo de alguém a ponto de poder-lhe retirar uma máscara do rosto. Então, nesse ponto, minha desvantagem é clara.

Mas, no final e ao cabo, é tudo uma questão de escolha, de opção. Assim como cada um escolhe a armação de óculos e as máscaras que vai usar, também é possível optar por não usar máscaras, nem óculos, nem escudos, e levar a vida como em um front de batalha, de peito aberto. Até hoje, ouço conselhos do tipo: “Você tem que se resguardar mais, esconder mais as coisas que pensa” (esse é o conselho do meu pai). Ou então: “Toda mulher tem que ter um quê de mistério, e você não tem nenhum!” (isso é minha mãe, falando). E “você ainda vai entender que um pouco de hipocrisia é necessário para a gente sobreviver” (isso, quem disse, foi minha irmã, há uns vinte anos). De lá para cá, pouca coisa mudou, mesmo com os conselhos. Ou a despeito deles...

Mas, como eu disse, é tudo uma questão de escolha. Ou não. Quem sabe a gente já nasce com uma predisposição genética a ser mascarado e andar de armadura, ou, por outro lado, nasce predisposto a ser feito o corcunda Quasimodo, que expõe sua deformidade, em plena luz do dia, para a população intolerante de Paris, abandonando seu refúgio em Notredame para revelar ao mundo seu amor impossível por Esmeralda... Vai ver isso realmente não é uma questão de escolha: ou se nasce camaleão, bicho de casca grossa e mutável, que sobrevive às piores secas do deserto, ou se nasce borboleta: uma vez fora do casulo protetor, exibe suas cores vibrantes a cada vôo e logo, logo vira caça. A não que borboletas azuis vivam sempre sobre flores azuis, borboletas amarelas vivam apenas sobre girassóis, e por aí vai, todo dia o mesmo lugar, a mesma vida, tudo em nome de Darwin, da lei da adaptabilidade ao ambiente e, claro, da sobrevivência nossa de cada dia.

Realmente não sei se a sobrevivência compensa tanto mascarar. Ou se é realmente necessário usar armadura o tempo todo. Às vezes penso que eu sou feito aquele povo de uma tribo africana, cujo nome não vou conseguir escrever aqui, que acredita que, se você tirar uma fotografia de um deles, vai roubar-lhe a alma. Por isso eu evito as máscaras. Vai que elas tomam conta do meu rosto, grudam que nem polvo, e depois eu nem sei mais quem sou, com ou sem máscara? Ah, claro, isso me vale um constante zero a um para a vida e para as pessoas, armadas e/ou mascaradas em geral, mas... Na vida, na arte, no amor e na guerra, tudo se resume ao abençoado (ou maldito?) livre-arbítrio. Coisa complicada é PODER escolher entre milhares de opções, comportamentos e rumos a tomar...

Acredito que, depois que postar esse texto no “Trens e Balões”, eu vá, finalmente, fazer meus óculos. Confesso que só aderi aos escuros depois que começaram a brotar pés-de-galinha ao redor dos meus olhos, de tanto eu andar de cara para o sol. A vaidade falou mais alto e eu escolhi minhas máscaras de sol. Agora, óculos de grau vão ser um passo pequeno para a humanidade, mas gigantesco para mim. E, como eu tenho a alma desnuda do Quasimodo, já vou logo contando a verdade: você não vai me ver com óculos da Welma por aí, pode crer. Por enquanto, vou reservá-los para a TV em casa, para o notebook, que não vai saber se eu estou com óculos ou não, e, claro, para o escurinho do cinema. E, mesmo assim, só depois que as luzes se apagarem e o leão da Metro começar a rugir. Antes disso, eles ficam na bolsa. E para dirigir, oras. Mas à noite, obviamente, quando todos os gatos são pardos porque, sob o sol, o Ferrè garante minha proteção contra os mal-fadados pés-de-galinha.

27 de setembro de 2010

Ao Menestrel, Sem Rótulos

Justiça seja feita, eu devo os royalties de chamá-lo de “Montenegrume” ao Lucas, pai do meu filho. O apelido surgiu quando ele teve contato, se não diário, a cada três dias no mínimo, com as letras e arranjos melancólicos do cantor e, como era um bom trocadilho, acabou pegando. Mas o fato é que o Oswaldo Montenegro, ou melhor, as músicas dele, fazem parte da minha vida há mais de 15 anos. Eu devia ter uns doze anos quando – imagine você – peguei um disco do barbudo na única locadora de CD’s da cidade. Naquela época não havia internet, 4-Shared, MP3, pirataria ou nada dessas comodidades altamente antiéticas para as gravadoras e os artistas (com exceção do Lobão, que promove a pirataria áudio-visual na tora). Eu vivia com o CD em casa, gastando os tubos com locações. A primeira música que ouvi dele foi “História Estranha” que, anos depois, eu viria saber que é de um musical chamado “Léo e Bia”. Foi “paixão à primeira ouvida”. Eu alugava o tal CD tantas vezes, que o dono da locadora acabou se apiedando daquela pré-adolescente esquisita e o vendeu para mim. Até hoje o álbum, “Vida de Artista”, está comigo. E, até hoje, “História Estranha” é uma das minhas preferidas.

Minha afinidade com o Montenegrume se deve a muitos fatores, dentre eles o fato de o próprio se autodenominar “flor de obsessão, que a vida plantou”. Depois vêm as letras melancólicas, da época dos Grandes Festivais da década de 80, letras que eu ouço e penso assim: “Puxa, por que não fui eu que escrevi isso?”. E, claro, os violões, violas e a flauta doce da Madalena Salles, companheira dele desde os tempos em Brasília.

O Montenegro é o mesmo hippie sujo de 30 anos atrás, que é o tempo que ele tem de carreira. Mesmo corte de cabelo, mesma barba, mesmo jeans e camiseta preta, a mesma Coca-Cola durante os shows e um charuto fedorento pra burro. Show do Montenegrume? Pode apostar que vai tocar “Bandolins”, “Intuição” e “Lua e Flor” – que foi tema do personagem Sassá Mutema, que o Lima Duarte interpretava numa novela em que ele, um capiau a dar com pau, no sentido bíblico, era apaixonado pela professora da cidade. Essa você deve conhecer. Certas coisas não mudam nunca. Oswaldo Montenegro é uma delas.

Talvez por isso, um cara chamado Bussunda, que já morreu há um tempo e fazia o programa “Casseta e Planeta”, tenha resolvido apelidar o Oswaldo de chato. Desde então, admitir ser fã do Montenegro equivale, numa escala talvez um pouco menor, a admitir ser membro da Ku Klux Klan ou dos Neonazistas Redskins da zona norte paulistana. E isso, sim, é que é muito chato. Porque eu aposto meu mindinho que nenhum daqueles caras do “Casseta” jamais ouviu uma música do Oswaldo. Na falta de uma figura política evidente na época, eles acharam por bem encarnar um cantor nacional. Sobrou para o Montenegrume. Azar de nós, fãs, porque ele não deu à mínima, e ainda fez uma música de rolar de rir, chamada “O Chato”.

Mas, pensando bem, por que azar de nós, fãs? Porque se você quiser ser “cool” e bancar o descolado no último grau, é só ter resposta pronta, na ponta da língua, para a fatídica pergunta: “E aí? Que tipo de música você curte?”. Então, meu amigo, você estufa o peito, dá uma baforada no seu Dunhill e responde, na lata, com sotaque de quem fez dez anos de Cultura Inglesa: “Pink Floyd, The Cure, Rolling Stones, Men at Work, Metallica, The Beatles...” Uau. Se você citar que curte os Beatles de montão, pode crer, vai sair super bem na fita. É incrível. Parece até mágica.

Agora, imagine um outro cenário. Você, seu interlocutor e a mesma perguntinha cretina. Daí você faz aquela cara de Sassá Mutema, dá uma baforada ou não no seu Free e responde de peito aberto: “Puxa, cara, eu adoro o Montenegro”. E, se for fã de carteirinha mesmo, ainda cantarola um “como fosse um par, que nessa valsa triste, se desenvolvesse ao som dos bandolins, lembra?”. Bem, isso já me aconteceu algumas vezes e, acredite, foi exatamente proporcional ao número de paqueras e/ou amigos que eu perdi. É incrível. Parece até macumba.

Ser descolado ou não ser descolado, eis a questão. Isso não acontece muito com literatura. Ao contrário, se numa rodinha de pseudo-intelectuais você disser que seu livro de cabeceira é o dificílimo “Grande Sertão: Veredas”, ou qualquer exemplar do Saramago, pronto. A coisa, aqui, é o inverso: quanto mais hermético o autor, quanto mais grosso o livro e quanto mais chata a história – pronto, falei – mais popular você é entre os “amigos”. Com filme é do mesmo jeito. Quer abafar? Declare que a-do-ra Almodóvar, David Lean e/ou Lars Von Trier e... Pluft! Você acabou de entrar para o rol dos “entendedores de cinema”. Agora, se você estiver num dia péssimo, super a fim de solidão e quiser perder sua paquera, é só responder que se amarra na trilogia do “Missão Impossível” e nos não sei mais quantos “Velozes e Furiosos”.

Com música é que a coisa se inverte. Para ser popular e aceito nesse processo dificílimo que é a socialização, você PRECISA curtir rock da antiga, saber o nome das bandas, de preferência inglesas, e as categorias às quais elas se encaixam no período histórico musical. Ai, que tédio... Se, por outro lado, você ousar pronunciar a blasfêmia “MPB”, danou-se. Vão achar que você gosta mesmo é de funk, pagode e sertanejo. A não ser que você queira pagar de fino e disser que tem toda a coletânea, original, do João Gilberto, e acha o máximo ele parar um show porque alguém fez “cof, cof” na platéia.

Sabe qual é o perigo da socialização? Os rótulos. Somos rotulados o tempo inteiro, às vezes percebemos e aceitamos isso, outras vezes nem notamos e, em alguns casos, nos recusamos a virar garrafa de uísque. Rodinha de amigos? Cerveja. Música boa? Rock inglês. Virgindade? Hã? “Cuma”? Daí que, se você não gostar de cevada com álcool e preferir água tônica ou café, fica difícil acompanhar uma roda de “amigos” até mais tarde do que onze da noite. E se assumir seu verdadeiro gosto musical, literário ou cinematográfico, corre o sério risco de ser zoado para o resto da sua vida.

Porque eu nunca admiti ser rotulada, acabei sendo taxada de anti-social, o que não deixa de ser um rótulo. Durante a adolescência, a fase em que normalmente se escolhe a “tribo” em que se vai entrar, eu não bebia, já escutava Montenegrume, música clássica e outras “chatices”, lia um bando de livros bizarros e curtia horrores passar as férias na roça. O que isso quer dizer? Suicídio social, claro. Eu, que sempre fui muito Charlie Brown, que puxa...

Hoje isso já não me faz queimar a mufa, como antigamente. Como eu disse, certas coisas não mudam nunca. Se alguém me faz as tais perguntas fatídicas: música, livro, filme – e há mais duas, que não mencionei, religião e política – depende muito do interlocutor e do meu grau de tolerância para responder a sério. Se o céu estiver azul – porque eu não sou da noite – e a companhia valer uma amizade, eu respondo claramente: “Música brasileira velha, filmes que já saíram de cartaz há décadas e romance histórico”. Não dá para entrar em detalhes numa primeira conversa, dá? Ah, sim, religião e política. Nessas, sou taxativa: eu só justifico meus votos porque sempre viajo em dia de eleição e, para mim, o ateu é tão religiosamente fanático quanto um protestante, já que ambos querem provar a existência ou a não existência do divino a todo custo. Só de pensar num papo desse grau, me dá uma preguiça indescritível.

Ninguém é uma ilha, é verdade. Então, há de se socializar sempre, mas rotular-se, jamais! (Tenho certeza de que o Che se revirou puto da vida em seu túmulo agora). Todo mundo é o que é, gosta do que gosta e deveria, assim penso, assumir essas posições. Eu posso começar: meu super herói favorito é o Clark Kent, não esse pseudo Kal-El de Smallville, mas o de Christopher Reeve, a paixão da minha vida. Tenho um Box com a coleção completa do Superman. Assisto de vez em quando. E ainda acho que, um dia, ele vai entrar pela janela e me levar para dar um passeio. Voando, é claro.

Não curto cerveja, mas sou viciada em Coca-Cola. Topo uma rodada de amigos, até gosto e preciso disso, mas quando a galera entrar no estágio “bêbado chato e/ou agressivo”, eu volto para casa para ler ou escrever. Gosto de muito filme velho, mas tem filme antigo que é tão chato que não dá nem para fingir e dizer que gosta. E Hollywood ainda produz muita coisa boa. O negócio do filme é muito simples: ele tem que atender ao propósito a que veio. Se for para ser um blockbuster com motocas alucinadas, que seja. Se for para ser uma coisa mais densa, para fritar os miolos da gente no Cine Mark, que seja. O que não desce é filme pretensioso, algo como um blockbuster para fritar os miolos da gente, entende?

A gente tem é que fugir dos rótulos, antes que eles virem tatuagem e a gente se esqueça de quem é e do que gosta realmente. Se para se ter amigos e ser descolado você tiver que fazer coisas das quais não gosta ou se anular por completo, veja a coisa por outro ângulo: esses não são amigos para você e nada lhe garante que o que eles fazem seja descolado. Você pode também optar por radicalizar. Ter um amigo só, publicar no jornal local que sua música favorita é “Nuvem de Lágrimas” e que João Gilberto é um mal-educado. Mas eu não daria esse conselho ao meu filho daqui a uns dez anos, então...

O negócio é ser mesmo o que se é, doa a quem doer. E o problema é que, na maioria das vezes, dói muito mais na gente do que nos outros e, por isso mesmo, acabamos usando fantasias, falsas personae para transitar em sociedade. Isso, sim, é chato. Hakuna Matata, companheiro. Ah! Já ia me esquecendo: adoro animações da Disney. E não, não curto “Os Besouros”. Pronto. Falei. E a minha fidelidade ao Montenegrume é canina; não tem jeito. Acabo sempre falando que sou fã dele até morrer. Se perder a paquera ou um amigo por isso, é porque nem um, nem outro valeriam à pena.


26 de setembro de 2010

Pequena Grande Cidade


A cidade onde eu moro é pequena. Não sei ao certo quais critérios o IBGE, ou sabe-se lá qual órgão do governo utilizam para alocar as cidades em compartimentos específicos, como municípios, distritos, cidades pequenas, médias, megalópoles, etc. Certamente o número de habitantes e o PIB são alguns desses critérios. Mas não é sobre esse tipo de chatices que eu quero escrever aqui.

Reza a lenda – e eu digo isso porque tenho pretensões literárias, e não históricas – que a minha cidade era uma grande e importantíssima fazenda do Vale do Café, a Fazenda Santa Cruz. Vai ver esse é, de fato, um dado histórico, porque até alguns anos atrás, vários comércios eram chamados assim. Era um tal de Padaria Santa Cruz para cá, Posto Santa Cruz para lá, Farmácia Santa Cruz, Avenida Santa Cruz, você pode imaginar. Até festa de Santa Cruz, com direito a feriado municipal e tudo o mais, tem na minha cidade. Como a Fazenda Santa Cruz era propriedade de uns coronéis de sobrenome Mendes, a localidade acabou entrando para o rol dos municípios com esse nome.

Mas o fato é que a minha é uma cidade pequena. E tem todas as mazelas e bênçãos que uma cidadezinha pode oferecer. Havia até, imagine você, uma lista que era impressa anualmente, não se sabe por quem, nem onde, indicando as esposas e maridos traídos até aquele dado momento. Conta-se que a tal lista era afixada em portas dos comércios, distribuídas à revelia, mas, como em cidade pequena tudo é muito pouco científico e a coisa anda mesmo à boca miúda, não dá para dizer se a lista existiu mesmo. Bem, eu nunca pus os olhos em uma, mas posso garantir que, com ou sem lista, todo mundo daqui sabe quem usa ou não o tal chapéu viking na cabeça.

Por outro lado, quando as avenidas e ruas não são tão compridas e você acaba esbarrando em um conhecido a cada dois metros, a sensação esmagadora de que você nasceu sozinho e vai morrer sozinho é menor. E todo mundo cumprimenta todo mundo, a não ser que sejam inimigos declarados. Nesse caso, você atravessa a rua, para não ter que cumprimentar. Até hoje, quando eu vou à capital, me pego cumprimentando desconhecidos, automaticamente. Nem preciso dizer que eles me olham com cara de vírgula e não me cumprimentam de volta. As amizades são mais sólidas, também, talvez porque elas nasçam na rua, continuem nos colégios e, daí, sigam por esse mundão de Deus afora.

Outra dádiva da cidade pequena: você pode sempre deixar para pagar um real de pão amanhã, se não tiver um puto no bolso. E comprar fiado mensalmente, lógico: na padaria, no restaurante, na mercearia, na farmácia. Cidade pequena sem fiado não é cidade pequena. E, em qualquer lugar que você precise abrir uma ficha para cadastro – digamos, na locadora, por exemplo – é totalmente desnecessário que você decore seu número. Afinal, o vendedor já te conhece e, em alguns casos, ele mesmo sabe o seu número de cor. Nesse caso específico de locadoras, há uma confusão bem intencionada já estabelecida. Como o dono promete reservar o mesmo filme para umas trinta pessoas, às vezes um cinéfilo pode ficar a ver navios.

E, claro, numa emergência médica, dificilmente um velhinho solitário vai ser encontrado morto em sua antiga casa apenas dali a três, quatro semanas. Porque se você precisa de ajuda, encontra. E rápido. E todo velhinho que mora sozinho deixa a chave de sua casa com um vizinho mais próximo exatamente para prevenir uma fatalidade como essa.

Na minha cidade, interfone existe só para enfeitar a entrada dos prédios. Porque, no final e ao cabo, ninguém sabe o número do apartamento de ninguém, e vai tocando aleatoriamente até encontrar a pessoa com quem quer falar. E as casas comerciais não são conhecidas pela razão social, coisa muito fina e organizada, do tipo “Casas Bahia” ou “Lojas Americanas”. Aqui, a coisa está mais para “Mercearia do Daniel”, “Posto do Zeca” e “Padaria da Jurema”. Raramente inquilinos e locatários se relacionam através de uma imobiliária; acaba-se alugando um imóvel mesmo é para o tio do primo do irmão do cunhado do “seu” José, gente de muita procedência.

Por falar em procedência, cidade pequena é uma coisa surreal quando se trata de SPC e Serasa. Se você mora numa cidade grande, sabe que o anonimato, coisa que o Max Webber já falava há anos, é um privilégio da metrópole, que garante a individualidade e, assim, a liberdade do cidadão. Por isso a burocracia existe, e SPC e Serasa são entidades mágicas que permitem ao vendedor, discretamente, consultar a procedência de crédito de um possível cliente.

Mas, numa cidade pequena como a minha, dificilmente um neto de caloteiros não vai estar no SPC ou no Serasa. Porque, como se diz por aqui, inadimplência está no sangue, faz parte dos cromossomos do cara, sabe como é. E, claro, você vai ser sempre “filho de fulano”, e não apenas o “fulano”. E a coisa não para por aí, porque você é sempre “filho de fulano”, certo? Mas, que “fulano”? Ah, sim, aquele, que é “tio do Cicrano”. É tudo uma grande família, realmente.

Na minha cidade, a cidade inteira sabe quando alguém morreu. E, nesse quesito em particular, não dá para eu ser imparcial. Sabe objeção estética? Pois é. É o que eu sinto quando passa por toda rua, avenida, beco e esquina, o carro de som anunciando a “Nota de Falecimento” e o horário e local do “féretro” do defunto. Que diabos, eu nem sabia o que era “féretro” antes de voltar para cidade onde eu nasci! E o mais original nisso tudo é que a minha cidade só tem um locutor para esses anúncios – não só os de falecimento, claro, mas também as promoções do dia do restaurante, a derrota do time X para o time Z, uma eventual propaganda política... E todo mundo conhece o cara, que é gente boa demais. Eu mesma sou fã dele, mas, quando imagino a locução para a minha eventual nota de falecimento: “Comunicamos com pesar infinito a morte de Roberta, filha do Alceo da farmácia”, Jesus toma conta! Eu juro que cada pêlo do meu corpo se arrepia e eu fico feito o Charlie Brown, da Turma do Snooppy, que ouvia a professora dele só assim: “Blah, blah, blah...”.

Isso é o que eu chamo, carinhosamente, de “estado geléia de ser”. Os psiquiatras dizem que é anomia, basicamente algo como não sentir nada. Mas, honestamente, a sensação que dá é a de que você está tentando andar, falar, escutar e ver dentro de um gigantesco pote de gelatina de limão. Tente mentalizar alguém anunciando o horário e o local do seu féretro que, com certeza, você vai se sentir na mesma geléia que eu.

Em cidade pequena, ninguém chama a polícia para briga de marido e mulher, mesmo que seja a mil decibéis e depois da meia-noite. Bom, na eminência de tiros, aí sim, a coisa pode ser diferente e o vizinho talvez venha a cumprir com seu dever cívico e ligar para o 190. Porque, afinal, quem não vai querer ficar escutando a discussão inteirinha, até o final, para ter o que contar durante a semana inteira? E se, por outro lado, o casal vive em eterna lua de mel e, depois da meia-noite, o marido resolve solicitar os serviços da esposa e esta, de natureza italiana, faz uma barulhada dos infernos, aí então a fofoca é ainda mais quente.

Numa cidade como a minha, todo mundo conhece o carro e as motos de todo mundo, alguns superdotados até pelas placas. E não são apenas os veículos, não, mas os itinerários também. Isso quer dizer que, se o Fusca azul do “seu” Manoel, que, depois das 19 horas, segue diariamente em direção norte, foi visto, numa certa ocasião, uma hora depois estacionado na zona leste, vai dar galho. Para o “seu” Manoel, claro. A não ser que o Fusca estivesse com a correia arrebentada e o “seu” Manoel o tivesse levado ao mecânico. Mas, mecânico, depois das oito da noite, e para aquelas bandas...? Ah. Esqueci de mencionar que os superdotados, os que sabem as placas dos carros de cor, costumam jogar no bicho com os tais números. E ganham bons trinta reais de vez em quando.

Na minha cidade não tem semáforo, de verdade. Mas tem um bocado de guardas de trânsito, todos muito “chegados” da galera da cidade. E, aqui, se você for visitante, não se sabe exatamente que sinais a pessoa emite, que tipo de ondas eletromagnéticas ficam rondando o sujeito, mas a gente logo sabe que é “gente de fora”. Incrível, isso, porque minha cidade tem quase trinta mil habitantes.

Mas o mais interessante da cidade pequena são os malucos. Fica parecendo que não tem maluco no Rio e em São Paulo, por exemplo, só mendigo e/ou andarilho, mas tem sim. Só que, evidentemente, quanto menor o espaço físico, mais fácil é detectar o que se difere, o que se destaca. Os malucos da minha cidade são adoráveis, de verdade. E todos são malucos do bem, para não dizer malucos-beleza. São malucos que embelezam a cidade, fazem a gente rir mesmo nos dias em que tudo o que a gente quer fazer é chorar ou matar alguém.

Tem um que acha que é guarda de trânsito, tem até um uniforme com quepe e tudo mais – evidentemente não um uniforme oficial, porque, aí então, maluco seria o prefeito, acho. Ele é uma graça. Em pleno domingo, cinco gatos-pingados na praça, meia dúzia de automóveis vagarosos percorrendo a avenida principal e ele lá, apitando horrores, fazendo mil gestos de “siga”, “pare” e sabe-se lá mais o que. Ele tem uma namorada que, coincidentemente ou não, também é doidinha, doidinha. Eles se amam de verdade. A especialidade dela é comprar esmaltes – sua paixão – e dançar no meio da rua em dias de festa, Carnaval ou quando uma banda cover qualquer vem tocar por aqui. Só vi esses dois brigarem uma vez na minha vida: ela, dançando em frenesi num cruzamento, atrapalhando o trânsito, e ele, furibundo, apitando para a namorada liberar a passagem.

Tem também um maluco que adora andar correndo pelas calçadas, esbarrando nos outros de propósito e entrando nas lojas comerciais, mexendo em absolutamente tudo. Mas, isso, ele só faz quando está muito atacado. Em dias melhores – e eles sempre vêm – ele gosta de encostar ao balcão e falar de coisas que ninguém entende, porque ele fala baixinho pra burro. Aí, antes de ir embora, ele olha bem dentro da sua cara e diz: “Tô de olho em você”.

Às vezes, até para nós, moradores da cidadela, fica difícil distinguir um maluco do bem de um andarilho. Acho que uma coisa é condição sinequanom para a outra. Porque, de malucos mesmo, eles não têm é nada. Estão sempre felizes, vivem como querem e sabem que é melhor andar por aí do que ficar parado e criar lodo. Um maluco/andarilho da minha cidade vive pedalando, adora decorar bambus com fitas coloridas e diz que, no verão, a melhor coisa para a saúde – e ele diz isso porque faz isso – é se cobrir todinho, dos pés à cabeça, com um cobertor bem quente, para suar bastante. Estranhamente – ou não, já que estou partindo do pressuposto de que ele é doido – ele só toma banho gelado. E tenho que confessar: o danado nunca pegou uma gripe na vida.

O meu maluco favorito varre a rua da casa onde mora há anos o dia inteiro, vai à missa todo domingo e ama a “Ave Maria” que a igreja toca diariamente às seis da tarde. Ele deve ter pouco mais de um metro e meio de altura, é um negro forte e trabalhador e vive sorrindo. Acho que é a pessoa mais feliz – ou doida – que eu já conheci na minha vida. Ele me conhece desde bebê e, quando me vê, grita lá do alto da escadaria de sua casa: “Ei, querida! A Adelaidinha, olha lá a Adelaidinha”. É que minha mãe chama Adelaide, e o doido só me chama pelo improvável diminutivo do nome dela. Eu, sim, que sou maluca de pedra, e vivo feito cão e gato com a minha mãe, tenho crises homéricas de identidade quando o escuto me chamando de “Adelaidinha”.

Hoje, o sorriso perene dele é de dentadura. Conta-se que ele tinha dentes perfeitos, mas, por ter quebrado apenas um, há ninguém sabe quantos anos, um dentista doido arrancou todos os dentes dele. Ouvi dizer que isso era de praxe, na época. Mas, no fundo, no fundo, eu acho que isso já era influência da loucura no metiê médico. Esse meu maluco favorito tem verdadeiro horror de ficar com cabelos brancos; então, ele gasta o que pode e o que não pode em tinta Fleury preta. Compra um monte delas, mistura tudo num balde e besunta os poucos fios encaracolados que têm. Dia sim, dia não. E a paixão dele, como a de todo doido, dizem, é um radinho de pilhas. Então, quando ele não compra tinta Fleury, compra pilhas Amarelinhas, tamanho AA. Muitas. Acho que, quando não está varrendo, nem pintando os cabelos, ele fica ouvindo rádio o tempo inteiro.

Eu, numa antiga crise de loucura clínica, com direito a ansiolíticos, antidepressivos, terapia freudiana e o escambau, prometi para ele que vou ensiná-lo a dirigir e me casar com ele depois. Agora, sempre que me vê, ele me cobra as promessas. E fica sério quando eu mudo de assunto. Coisas de cidade pequena...

Pais e Filhos: Versão 32.1


"Hoje é domingo, pé de cachimbo! Cachimbo é de barro, bate no jarro!". Hoje é domingo e eu não me sinto em nada como um touro, o que dirá valente. Outro dia desses, e não era num domingo, alguém me perguntou porque eu escrevo tanto. Acredito que, no meu caso, a escrita seja uma espécie de catarse, uma fuga. Antes de qualquer coisa, uma fuga para dentro de mim mesma, quando o mundo cá fora está demasiado grande, ele um gigante e, eu, um anão. Fuga, também, da solidão. Quando você tem seu dia de vampiro e não vê seu reflexo em espelho algum, nem mesmo no olho de um amigo. Solidão dessas em nada do que você diz reproduz eco. Então, escrevo em páginas amigas, que ecoam, que refletem, que me recolocam em meu centro. Afinal, todo mundo tem seu dia de Narciso...

Hoje é um domingo chuvoso, de um céu cinza medonho e nuvens tão gordas que parecem poder cair a qualquer momento. E não importa, meu amigo, que já seja oficialmente primavera. Um vento frio e úmido sopra do sul, enregelando os dedos da mão, e as flores amarelas do ipê do "seu" Ítalo caíram todas. Não sei se é porque é domingo, ou se porque o azul do céu se escondeu ou se é apenas meu olhar - o olhar da minha alma - mas nunca vi aquele ipê tão nu como hoje.

E quem imaginaria que tudo começou com um abrir de janelas da minha varanda. Nesse ínterim, essa história precisa de uns parênteses. Desde muito jovem, eu sempre orbitei em torno de meus pais, feito um satélite pequenino, girando em círculos e que, a cada volta completa, vislumbrava na linha do horizonte um destino, uma identidade única. Não é à toa que esta tenha sido sempre minha Odisseia pessoal: a busca por identidade.

Eu poderia fechar esses parênteses de muitas maneiras, até mesmo com fatos datados e detalhes sórdidos de uma vida de idas e vindas. Mas, além de isso ser tedioso à beça, não tenho a menor inclinação para biografista. Então, para resumir, vou usar aqui um dito popular: "Quando a árvore é grande demais, a sombra não permite que os arbustos menores ao redor floresçam". Para ser sincera, às vezes me pergunto se não uso essa coisa de pais grandes demais, filho único e satélite como um pretexto para os meus próprios fracassos pessoais. Mas isso eu só saberia em muitos anos de divã, no mínimo. Então, num domingo macambúzio e solitário como esse, usar aquela frase batida do Sigmund: "a culpa é sempre dos pais", não vem a ser nenhum crime hediondo, embora, sim, seja uma justificativa lamentável.

O fato é que meu grande pai, o totem supremo do meu universo - imagine algo como o Marlon Brando interpretando o Jor-El - entra às oito e meia desse domingo miserável em minha casa e escancara as janelas da varanda. OK, ele é meu pai, certo? Mi casa su casa. E vai por aí a questão: ele tem a prerrogativa - talvez porque eu o tenha permitido - de escancarar as cortinas e janelas da minha vida, mas, veja bem companheiro, essa não é uma via de mão dupla. Quando sua alma não tem portas nem janelas para os seus pais, fica muito mais confortável para eles lançar lá dentro todas as expectativas que têm sobre você, quiçá até mesmo um sonho ou outro deles, como se você pudesse realizá-lo em seu lugar.

Hoje eu não sou apenas filha, mas mãe também. E toda noite, feito um mantra poderoso, fico repetindo e prometendo para mim mesma que não vou criar expectativas - reais ou irreais - sobre meu filho, nem desejar que ele realize sonhos meus que já viraram poeira na estrada há tempos, e muito menos pensar ou acreditar que ele deva seguir minhas pegadas e dar continuidade aos meus legados, mesmo que isso fosse o mais lógico e fácil para ele, já que vai encontrar as porteiras abertas. Eu mesma não as encontrei...? 

E é por isso que eu morro, me borro mesmo de medo da Elis Regina quando ela canta: "Minha dor é perceber que apesar de termos feito tudo o que fizemos, ainda somos os mesmos e vivemos, ainda somos os mesmos e vivemos como nossos pais". Às vezes aquele meu lado masoquista fala mais alto do que meu incipiente otimismo e eu ponho essa faixa para tocar no volume máximo. Porque, afinal, eu adoro essa música, vá lá. Mas, não tem como negar, irmão. Se você tem pais e é pai também, a vontade que dá ao ouvir "Como Nossos Pais" é se esconder de baixo da cama e ficar por lá uns bons três dias; ou pelo menos o tempo suficiente para o seu subconsciente esquecer a letra e a gritaria da Elis no final da música. 

O fato é que é do ser humano esperar, ter expectativas sobre o outro. Se não fosse desse jeito, penso eu, seríamos todos um bando de pedras, milhares de famílias Stonehenge espalhadas pelo mundo. O problema é que ninguém muda a essência de ninguém e, se mudar, não mudou de fato, apenas a ocultou e fez do outro uma sombra do que já fora, um indivíduo anulado. E essa hecatombe pessoal não acontece apenas com pais e filhos; acontece entre casais, amigos, amantes, soldados em guerra e seus coronéis, patrões e funcionários, cidadãos e o governo. E, de uma expectativa frustrada a outra, sofre quem espera e nunca alcança, e quem está na berlinda, sentindo-se sempre aquém do que é. Na pior das hipóteses, expectativas podem gerar um medo tão grande na gente que se acaba ficando parado, empacado na estrada feito mula com medo de cobra. E deixa-se de trilhar caminhos, fazer opções, experimentar o novo, dizer "não" sem machucar, tomar rumos diferentes daqueles pré-traçados, voar mais alto, viver com leveza, enfim, ver a vida além de um buraco de agulha.

Tem dias de céu azul em que eu realmente queria ser mais como meu pai, ter a força, a liderança e a disciplina dele. Outras vezes eu realmente queria ser mais como minha mãe que, mesmo abatida e no chão, se levanta em segundos, sacode a poeira e ainda te dá uma rasteira. Eu queria ser, também, uma mãe mais presente para o meu filho porque ele, ainda tão pequeno, já tem suas próprias expectativas. Aí, então, nessa balada, vou me perdendo e me esquecendo de quem fui, de quem sou, de quem eu poderia ser. Então, eu escrevo. E fico pensando em me mudar para outra cidade, começar do zero, ser aquela que eu já fui, mas nem me lembro mais, para ser sincera. Ou faço pequenas revoluções, como sair num domingo sozinha e não dar satisfação para ninguém. O pior é que meu celular nem toca...

Meus pais dizem que eu "filosofo" demais. Vai ver têm razão, vai saber... Mas é impossível não filosofar num domingo tão cinzento como esse. Mas nessa minha muito vã e fajuta filosofia, eu guardo uma crença perene em meus pensamentos, na minha conduta. Expectativas a gente só pode, e deve, ter sobre si mesmo. Mais ou menos como se fôssemos todos nadadores profissionais; eles treinam competindo consigo mesmos, para bater seus próprios recordes. Dessa maneira, a gente evolui, caminha,  se auto-analisa, olha um retrato antigo e o reflexo do espelho para ver qual dos dois é mais fiel ao presente. Quem não espera nada de si mesmo vira estátua de sal. Mas esperar do outro um destino nosso, uma atitude que teríamos, como se o outro fosse não mais que um espelho, e não um indivíduo completo, repleto de idiossincrasias, bem, isso é neurótico, doloroso e, em alguns casos, até cruel (acabei de me lembrar do caso do Michael Jackson e seu pai. Mas essa é outra história...).  

Para terminar, cito Arthur Schopenhauer, cujo pai, à propósito, queria que ele fosse comerciante, assim como ele próprio. O pai dele, Heinrich, o mandou, com apenas 12 anos de idade, numa excursão pelas cidades mais influentes da Europa, só para futuros empresários e comerciantes. Tudo que Arthur fez de mais importante nessas viagens foi escrever uma série de textos pessimistas sobre a miséria da condição humana. Foi preciso que seu pai morresse para Arthur ingressar na universidade e se tornar o filósofo que influenciou gerações após a dele. Ele diz assim: "Uma pessoa é tanto mais amada quanto mais moderar as suas expectativas em relação ao espírito e ao coração dos outros; e tudo isso a sério, sem fingimento, e não apenas devido à indulgência enraizada no desprezo.

25 de setembro de 2010

A Tattoo

Acabei de virar mais uma página da minha vida. Às vezes me assusto com a quantidade de páginas que uma única vida tem, e o número imenso de páginas que a gente acaba tendo que virar pra chegar ao final da história. Nesse correr da minha biografia, entrei numa fase de “fazer mudanças”. A casa foi a primeira – uma revolução. Móveis, pintura nova, arrumação nota 10, o pacote completo de uma mini-pseudo-reforma.

Depois, fiz o quarto furo nas orelhas, com um brilhante minúsculo de ouro. Ficou um charme, mas doeu feito o diabo. Semana que vem pinto a cabeleira – só não me pergunte de que cor. Decido na hora, como me convier. Ah, e claro, agora não vou adiar mais. Já marquei minha tattoo. Era para eu ter feito uma quando fiz 30 anos e entrei numa crise existencial, mas adiei, adiei, e enfim, não vou esperar os 40 pra fazer isso, não é?

Meu pai e minha mãe, obviamente, fingem que a coisa não é com eles, mas, sinceramente, quem teve o ano de 2010 marcado fui eu, e não dou a mínima se eles não aprovam. Claro que me certifiquei, primeiro, de que eles não iriam me deserdar por causa de uma tattoo. Ri muito de meu pai. Ele disse assim: “Se você quer fazer uma marca no corpo para marcar essa fase, porque então não corta um dedo?”. O tatuador se chama Fagner – ótimo sinal, o “Fagner” que eu conheço é excelente compositor. Enfim, já até escolhi o desenho, algo que encontrei na internet. É um soldado romano pelado, de verga em riste, segurando uma espada. Não, claro que não. Se eu fizesse uma tatuagem dessas, não perderia meu tempo com um blog, certo?

É uma árvore. Linda, linda. Vou fazer em preto e grafite. Não quero cores nessa árvore. Só o tronco, os galhos e as folhas, que são adoráveis. Minha mãe se dignou a olhar o desenho e disse: “Ai, filha, como você é arraigada, agarrada, saudosista! Uma árvore? Um troço que fica parado, envelhece e morre no mesmo lugar? Fica esperando pra ser cortada?”. Eu ri baixinho comigo mesma, porque minha mãe não vê as árvores como eu.

Ela esquece que, das raízes, vêm sementes, que as folhas mudam de cor, caem e se renovam, adubam o solo, voam ao vento, dão sombra, marcam lugares, como quando a gente diz: “Vai andando e vira naquela mangueira à direita”. E uma árvore centenária é uma guerreira vitoriosa. Conta histórias pra a gente, se você puser o ouvido no tronco e prestar bastante atenção. Tem coisa mais linda, poesia mais viva e divina que um ipê amarelo no meio do serrado? E a “maple” canadense, cuja folha vermelha tá até na bandeira nacional? As sakuras – cerejeiras japonesas – também são símbolo nacional. E as sequóias, o orgulho dos americanos. E os pinheiros, nos Alpes? E o nosso pau-brasil? Quem não sabe olhar uma árvore tem que aprender a olhar mais para o mundo, para si mesmo.

A minha árvore é estilizada, e vou tatuá-la na linha da nuca, descendo uns seis dedos. O tronco vai ser na linha da coluna vertebral, os galhos e folhas se ramificando pela nuca e costas, algumas folhas soltas ao vento. Tô louca pra fazer, mas a agenda do tatuador/compositor é lotada. Pensando bem, acho que a árvore é a coisa mais mutável e ao mesmo tempo consistente, que existe. E renovável, dentro das estações de um ano. É serena, na bonança, violenta ao vento de uma tempestade. Pode tanto dar abrigo quando carregar casas numa enxurrada. Um eucalipto gigante impediu meus pais de caírem numa pirambeira enorme quando eles tiveram um acidente, em 1995. Raízes de árvores são bons bancos pra a gente sentar, olhar para as folhas acima e sonhar.

Eu sou bem como uma árvore. Não tropical, admito, porque minhas folhas mudam de tom, caem e renascem, mas definitivamente, uma árvore. E essa vai ser minha tattoo. Para quando o meu filho de três anos me perguntar por que, eu dizer que agüentei tempestades, desfolhei, fiquei seca feito um juá da caatinga, quase tombei por causa de raízes enfraquecidas, mas dei muita sombra, flor e fruta, mais para os outros do que para mim mesma, porque talvez esta seja de fato minha natureza, vai saber. E quero que, quando eu não estiver mais aqui, a minha árvore, o tronco e as raízes, ainda estejam nele, com ele.

Flor da Idade


Eis que, na flor dos seus 18 anos, Alceo Rohen, já tendo passado alguns dias com seu irmão Alarico no então distrito de Mangueira, no Rio de Janeiro - e portanto, talvez, vislumbrado uma silhueta do que seria seu futuro - apaixona-se fulminantemente por Nilza, filha de sua tia Olindina, irmã de seu pai, José "Juca" Rohen. E eis que Nilza Rohen, fulminante e igualmente apaixonada, manda a razão às favas, cede aos chamados da aorta e passa a se encontrar com Alceo domingos seguidos numa várzea próxima à casa do amigo em comum da família, Nagibe, onde toda a molecada jogava futebol de manhã. E, sob uma frondosa mangueira, distantes um bocado da pelada, que acontecia diante dos olhos esgazeados dos enamorados, os primos seguravam-se as mãos trêmulas, ambos nervosos e sorridentes, esquivando-se dos olhares de parentes e conhecidos. E encontravam-se também, os dois, nas chamadas "surpresas", muito comuns nos idos de 1950 em São Félix.

Naquela época, muito antes do êxodo rural de 1970, a roça era povoada de casinhas, umas coladas às outras, e a gente abundava as estradinhas de saibro. Havia peões que disputavam o trabalho, homens fortes para capinar as muitas terras cultivadas, vendas para abastecer as casas e escolas para onde a molecada pudesse ir e aprender a escrever cartas de amor. E, aos sábados, havia as "surpresas". Um grupo mais animado, geralmente amigos mais chegados ou mesmo membros de uma mesma família, muniam-se de sanfonas, violas, pandeiros, gaitas e o que quer que fizesse barulho, muito barulho. Montados em seus cavalos, geralmente já passado o cair da tarde, iam passando pelas casinhas, avisando à toda a gente que, naquele dia, haveria uma "surpresa" na casa de "seu” João, Antônio, Pedro ou José. Era tudo uma grande surpresa, de fato, uma farra geral. Aí, então, os sorrisos abriam-se nas bocas dos peões, lavradores, mães com seus rebentos melequentos agarrados às saias, debulhadores, e, claro, em Alceo e Nilza; era dia de "surpresa", dia de encontro, ou melhor, noite de encontro.

Corre esse jovem apaixonado ao galpão onde dormia com seus irmãos. Olha-se no pequeno espelho pregado à parede. Procura sua melhor roupa, lava-se com esmero, ajeita os cabelos fartos, usa uma colônia comprada na cidade grande, sorri para sua imagem refletida. É forte e viril, está feliz, vai ver Nilza e tem apenas 18 anos de amor. Lá na casa de Olindina, Nilza deve estar colocando seu melhor vestido, escovando a cabeleira escura até brilhar, olhando-se no espelho da cômoda da mãe e beliscando as bochechas para ficarem coradas. Seus lábios nem precisam de batom; já são rosados feito uma goiaba madura, e sua pele é fresca e cheirosa como jambo. A moça sorri para o seu próprio reflexo no espelho. É linda, seus olhos brilham, a pele é lisa, os seios firmes, está apaixonada e tem apenas 15 anos de plenas possibilidades.

E assim, atrás da "caravana da surpresa", vai todo o povo de São Félix, explodindo em barulho, confusão e alegria. Antes mesmo de chegar à casa da "surpresa", a festa já começa. E, quando chegam, acordam o anfitrião, que já sonhava há horas porque deve se levantar cedo para tirar leite de suas vacas preciosas. Ele abre a porta assustado, os olhos piscando com a luz das lamparinas, os ouvidos zunindo com as sanfonas já tocando os primeiros acordes de forró. Corre a chamar sua mulher, que também dormia. Ela chega à porta, lenço na cabeça, amarrando um avental na cintura e diz: "É a surpresa, homem. Não se avexe, vou já na cozinha preparar uns quitutes para a moçada.

E entram todos na casa do sonolento anfitrião, algumas mulheres já se agrupando na cozinha para ajudar a esposa a preparar o bolo e fritar o angu. E com eles entram Nilza e Alceo, que já se dão as mãos e dançam sua primeira rodada de forró. Dançam e conversam a noite inteira. E riem, dão muita gargalhada juntos. Quantas surpresas não foram testemunhas dessa semente nova de amor...? Uma vez, depois de uma valsa mais lenta, Alceo leva Nilza para o terreiro de uma dessas "casas de surpresa". Os dois sentam-se na escada da porta dos fundos, uma escada de pedras antiga, a fazenda é toda muito antiga, como antigo é o querer do homem pela mulher. É julho, noite estrelada na roça, e a lua é tão imensa e clara que faz sombra no chão. Não se beijam. Nunca se beijaram. Só pegam as mãos uns do outro, olham-se nos olhos, riem feito bobos e conversam. Conversam, talvez, como jamais conversariam assim, em suas longas vidas. A noite é fria, eles se achegam mais perto, para esquentar, para encurtar distâncias. Ali, fazem promessas um ao outro. Já se vão muitos meses nesses encontros furtivos. Alceo sente vontade de casar com Nilza, como o sentem todos os jovens apaixonados de 18 anos; quer viver com essa morena linda, a prima de olhos amendoados, dentes branquinhos, corpinho de pomba, anquinhas largas e conversa fácil. Ele já nem se lembra mais da cidade grande, das moças elegantes e coquetes de lá; só quer Nilza e uma vida tranqüila com ela.

Na manhã seguinte, enche o peito de coragem, sela seu cavalo e vai à casa de Olindina. Fala de suas intenções primeiro à tia. Nilza fica na cozinha, não sai. Quer esperar o resultado de tudo, entocada em sua casinha. Em seguida, Alceo revela sua paixão a seu pai. Mas não foi tanto a paixão que botou medo no coração de Juca Rohen: "A gente sempre rabicha com uma prima, Alceo. Inda mais uma que nem essa. Rabicha e não esquece. Você vai com Massarico domingo pro Rio". Juca falava muito pouco. Alceo nem acreditou que, naquele momento, ele pudesse ter dito tanto. O amor do filho pela prima, de fato, não assustou aquele homem da terra garboso, com seu bigode fino, chapéu de palha sem um amassado, ternos sóbrios e coluna sempre ereta. A questão, ali, era outra; talvez ele já vislumbrasse, em sua cria, um futuro maior, bem maior do que um visto pelo buraco de uma agulha enferrujada de cozer fronhas. Para Alceo, ele via uma estrada com carros e prédios; para Nilza, uma outra, que levava ainda mais para dentro da mata.

E Alceo foi para o Rio. Ficou por lá alguns meses, tempo suficiente para o braseiro aceso em seu peito virar um monte de cinzas. Amargou o luto, a saudade de Nilza, de casa, dos carros-de-boi, dos pais e dos amigos, das “surpresas” e até do trabalho duro da roça. Sentiu o gosto ácido da perda de sua morena, do amor arrancado pela raiz. Viu-se transformado, em questão de horas, do filho predileto no capiau pobre na cidade grande, tentando se ajustar àquela gente elegante e cheia de palavrório difícil. Mas, sempre há de se seguir adiante. E ele seguiu.

E Nilza... Bem, Olindina logo lhe arrumou um casamento, para arrancar-lhe da mente a lembrança de Alceo. Mas fica na gente da época que soube daquela paixão a dúvida: será que tia Olindina conseguiu arrancar a lembrança do amor do coração, da alma da filha...? Quando voltou à roça, Alceo ainda procurou por Nilza. Encontrou-a casada, avental cinza preso à cintura, lenço cobrindo os vistosos cabelos pretos, fazendo as marmitas para os capinadores levarem em seus embornais. Não conversaram. Sorriram um para o outro, mas não como antes. Suas estradas não se cruzariam mais agora.

Mas Alceo ainda leva no peito a lembrança de Nilza, a memória marcada na carne daquele amor sentido ao máximo principalmente por ter sido vivenciado ao mínimo. Fotografou aquela mangueira e seus encontros felizes com Nilza na sombra fresca, as peladas de domingo que eles nem viam, as danças e conversas nas "surpresas", as promessas de amor na escada daquela fazenda velha. E, quando conta essa história, Alceo suspira, baixa os olhos e dá um riso velado, que ainda esconde emoções. Jura que Nilza foi a mulher mais linda que já conheceu. E que daria tudo para se encontrar com ela, ainda hoje, só uma vez, para "por a conversa em dia, ver como ela está", antes de o tempo deles passar nessa terra.

O Homem Que Sonhava Demais

Um

Ele era um lenhador. Aprendera seu ofício com o pai que, por sua vez, fora ensinado pelo pai de seu pai. Uma família inteira, mais de três gerações de homens cuja profissão consistia em cortar troncos de árvores em toras maciças e roliças que, fora da floresta, se transformariam em cadeiras, mesas, camas, armários e todas essas coisas muito úteis que a humanidade consegue, habilidosamente, fazer com as árvores.

O que mais impressionava os habitantes que conheciam aquela família era o fato de todos se parecerem, pelo menos no invólucro mesmo de cada um. Eram homens com braços e pernas compridos demais em relação ao tronco, a tez bronzeada, já curtida pelo sol a que eram expostos no trabalho, cabelos avermelhados e fartos, rostos finos, com o queixo comprido, e completamente cobertos por uma barba cerrada, que os fazia parecer mais sisudos do que poderiam ser de fato.

Todos, sem exceção, se casavam relativamente jovens. Cada lenhador daquela família precisava de mulheres fortes que lhes dessem filhos igualmente fortes e que, a medida que as calças começassem a lhes ficar curtas nos tornozelos, pudessem-nos ajudar na floresta. E todos, geração após geração, decidiam-se por morar ali mesmo, no coração da mata, ouvindo os rumores da madeira, escutando as histórias que cada uma daquelas árvores tinha para lhes contar, aprendendo a distinguir a madeira não apenas pela cor, mas também pelo aroma, pela aspereza da casca do tronco. Aos habitantes do vilarejo, a poucos quilômetros distante da mata, parecia que aqueles lenhadores optavam por morar dentro da floresta para fazer amizade com aquelas árvores, mesmo que esta fosse uma relação de curta duração e destino certo: a morte do amigo mais útil e, por isso, mais fraco. A cada quinze dias, os moradores já esperavam a visita dos lenhadores. Em bando, eles deixavam mulheres, casas e floresta e iam à cidade comprar provisões e mantimentos nas feiras locais. Todos se divertiam com aqueles homens compridos e barbudos, de cabeleira em chamas, machado às costas e um burburinho incompreensível entre si, procurando completar a lista de compras que traziam de suas esposas.

Todos esses hábitos, toda essa rotina, este lenhador em particular seguia à risca. Diziam até que, dentre os homens da família, era ele o mais parecido com um dos primeiros da linhagem, pelo menos aquele de quem se lembravam pelas histórias contadas à beira de fogueiras, as famílias emaranhadas feito filhotes de gato em torno das chamas para espantar um pouco do frio que fazia no coração da floresta. Sim, este lenhador era o que mais se assemelhava ao primeiro deles, aquele gigante vermelho que havia derrubado, sozinho, um jacarandá milenar, abrindo então uma clareira viva na mata. Não era por coincidência que, exatamente nesta clareira, celebravam-se todas as festas de casamento, a cantoria, a dança e também as eventuais rixas entre as esposas e primos. É curioso como a morte de uma árvore pode abrir tanto espaço no coração de um lenhador, de maneira a estabelecer, na nova clareira, um círculo de vidas.

Mas uma característica, e apenas esta, tornava nosso lenhador único não apenas entre os seus, mas dentre todos os ferreiros, padeiros, amas-de-leite, fazendeiros e marceneiros da região. Esse lenhador, também ele de braços fortes e pernas compridas, cabelos fartos e uma jovem esposa de bochechas coradas e avental preso à cintura, este homem sonhava demais. Mas seus sonhos não eram destes que a gente tem já ao finalzinho da noite e nem se lembra mais ao raiar do sol. Os sonhos desse lenhador, veja bem, eram reais. E quem testemunhava esse fato insólito era sua própria esposa, uma camponesa, filha de um comprador vizinho, a mulher que dividia com ele a cama de cerejeira no centro do quarto.

Pois eis que, na calada da noite, já pega em sono alto, a moça era subitamente despertada pelo tilintar de uma xícara, isso mesmo, uma xícara da mesma altura e tamanho de seu marido, “deitada” meio de banda a seu lado, e respirando, por todos os santos! Era o lenhador que, provavelmente sonhando com um lauto café da manhã, transforma-se num objeto onírico a cada noite.

Certa vez a camponesa, acostumada a hábitos mais civilizados na casa de seus pais, sentiu-lhe o coração quase saltar do peito pela boca afora, ao se deparar com um enorme pé de bota de couro, ressonando ao seu lado. O pior era que os cadarços da bota pareciam de fato estender-se para ela, como a querer abraçá-la, o que lhe causava mais pânico e indignação. E qual não fora seu susto ao ser acordada pelo leve roçar de um galho de ipê amarelo em flor, tocando suas bochechas com as flores ainda ungidas de orvalho? Uma noite, horrorizada, viu seu marido em pleno sono, tão igual a tantos outros lenhadores na aparência, transformar-se num enorme jarro de barro, os braços invaginando-se para dentro do barro, as pernas encolhendo lentamente, até que o homem era apenas um jarro redondo, macio e quente, que lhe parecia rolar em sua direção, como que a querer contê-la por inteiro. Outras noites, quiçá perdido em seus sonhos com uma viagem à cidade, ele se transformava numa grande mala forrada de feltro. Ou numa mesinha de centro, com as pernas meio ajambradas. Até em girassol seu marido já havia se transformado, e tudo isso em sonhos, protegido pelos braços cálidos de Morfeu, completamente inconsciente de suas bizarras transformações.

Nessas noites, a mulher encolhia-se toda no canto mais distante da cama, puxava as cobertas até a altura das orelhas e ficava espiando de esguelha aquele seu marido meio homem, meio coisa, até o amanhecer, quando enfim seu sonho terminava e ele se transformava em homem novamente. E é desnecessário dizer, já que se pode concluir pela perturbação e terror daquela esposa, que suas noites eram insones. Completamente.

E, com a insônia, vinha o mau humor, a irritabilidade, uma preguiça matinal que nada parecia vencer. Nem as galinhas ela alimentava mais, o que dirá os porcos, com seus grunhidos estridentes. As tetas das vacas inchavam e doíam porque ela não as ordenhava, mas também, mergulhada num poço de amargura, não permitia que os bezerros mamassem de suas mães. Nem filhos ela pudera conceber até aquele momento. E a alma daquela mulher era tomada de dúvidas e rancor. Ela fora destinada a se casar com um lenhador daquela família, assim como suas outras duas irmãs, e ele era tão igual aos outros... Então, por que, em nome de Deus, ele haveria de sonhar...? Porque tudo o que ela precisava fazer era cuidar da criação, ter filhos, alimentá-los e torná-los lenhadores e, à noite, dormir. Sem sonhos. O sono negro e amnésico dos normais.

O nó dessa história, como toda história tem um nó, assim como todo tronco de árvore é cheio de nós, e também nossos dedos os são, é que, em meio à infelicidade da esposa, aquele lenhador transbordava de alegria, principalmente ao amanhecer. Depois de trabalhar até o por de sol, rachando lenha e emudecendo árvores com mil histórias que jamais seriam ouvidas, ele voltava exausto para casa, tomava a sopa rala de lentilhas que a esposa lhe preparava e deitava-se, louco para sonhar. E, em seus sonhos, ele viajava dentro de si mesmo, sem se afastar um milímetro de sua cama e de sua casa, e não era mais um lenhador, mais uma ovelha idêntica às outras. Em seus sonhos, ele podia ser o que quisesse, dizer o que pretendesse, ir para aonde mais amasse e, claro, plantar mudas infinitas de árvores, só para, em sonhos, vê-las brotar, crescer, amadurecer, florescer e dar frutos à terra fértil de sua imaginação.

O nó dessa história é que, ao raiar o sol, o lenhador despertava revigorado, prenhe de sonhos, e sua mulher acordava azeda, repleta de olheiras, assustada e sentindo-se traída, enciumada das coisas que ele virava quando sonhava. E se, uma noite, ela se deparasse com outra camponesa na cama, que não ela...? E, o que mais lhe doía, ela mesma não sonhava. Nem para dentro de si mesma, e muito menos para fora. E, escondendo as lágrimas raivosas que teimavam em escapar de seus olhos escuros, ela via o marido sair para o trabalho assoviando, esticando cada músculo de seu corpo como se aquela fosse a primeira vez que o utilizasse, um sorriso colorido estampando-lhe a cara. Esperava que ele virasse ao terceiro juá à direita e voltava para debaixo das cobertas, sentindo-se vazia, velha, videira morta no tempo e no espaço.

Mas ela não precisou compartilhar seu amargor com o marido. Em pouco tempo, ele percebeu o vazio nos olhos da mulher, sua falta de desejo por ele e de vitalidade por si mesma. Ela havia se tornado uma árvore seca e sem brotos, no meio da floresta. Mais uma árvore muda e cega.

E então ela lhe contou que ele se transformava nas coisas com as quais sonhava. E confessou ter medo daquilo, quase asco. O lenhador baixou os olhos e suspirou, repleto de resignação e frustração. Ela fora um dia tão linda, risonha e carinhosa, ou era apenas sua imaginação pregando-lhe uma peça? Além do mais, era filha de um mercador, uma camponesa de certa posição social. E, em três anos, eles ainda não haviam gerado nenhum filho para dar continuidade a seu tronco. Algo havia de ser feito. Ou, do contrário, o que ele diria aos primos e irmãos? E ela, às comadres e cunhadas?

Foram então, juntos, ao médico do vilarejo, um velho de barbas e cabelos brancos e compridos, e um olho leitoso pela catarata. Ele não parecia olhar para o casal, mas farejá-lo, com seu nariz bulboso que ostentava, orgulhoso, uma verruga marrom na ponta. Ouviu as queixas da mulher atentamente, balançando a cabeça de um lado para o outro de quando em vez. Quis saber a opinião do lenhador, mas este preferiu guardar silêncio e manter os olhos fixos nos potes de vidro coloridos que o velho tinha espalhado pela cabana. Eles continham todo tipo de substâncias: líquidos amarelados, breu, resinas de aroma fortíssimo, raízes que o lenhador desconhecia completamente.

O velho médico olhou-os com seus olhos brancos e farejou-os uma última vez. A única pergunta que fez, antes de se dirigir a uma estante bem aos fundos da cabana foi: “Então, vocês querem permanecer juntos?”. Nenhum deles disse que sim, nem que não. Apenas menearam a cabeça, o que velho não viu, pois estava de costas para os dois.

Um minuto depois, ele voltou da estante com um vidro redondo, cor de âmbar, cheio de umas pílulas azuis e translúcidas. Quando o lenhador observou o conteúdo mais atentamente, notou que cada pílula era recheada de um vapor, tal qual fumaça ou nevoeiro, que ficava pairando em espiral dentro da pílula. “Toma, lenhador. São tuas. Hás de tomar uma destas a cada noite, antes de te deitares”, o velho disse, sem olhar diretamente para nenhum deles. “E o que acontecerá quando meu marido as tomar, Senhor?”, a esposa perguntou, já possessa de ansiedade, curiosidade e esperança. Talvez.

O velho suspirou. Pegou as mãos da mulher e, em seguida, segurou o lenhador pelos ombros. Agora, olhava fixo para o chão de terra batida de sua casa. “Os sonhos não são o problema? Então, teu marido não mais sonhará.”. E a esposa não pôde conter um gritinho agudo de vitória, alívio, quase vingança. Aquele, talvez, tenha sido um momento decisivo para que o lenhador percebesse que não passava de mais um membro de iguais, mais um daqueles pequenos arbustos espalhados pela floresta e que, nem mesmo aos olhos mais experientes de um dos seus, destacava-se.

Juntos, a esposa e o marido seguiram para casa, sob a luz amarelada e cálida do poente. O lenhador sentia a mão suada da mulher agarrada à sua e, por mais que pusesse sua cabeça para pensar e seu coração para bater, realmente não conseguia compreender como ela podia ter tanta alegria guardada dentro de si, para demonstrá-la agora, se houvera sido tão triste durante tanto tempo.

Naquela primeira noite, a sopa foi mais quente e temperada, e havia velas sobre a mesa de jacarandá. A mulher, mesmo ainda insone, conversou com o lenhador como há muito não o fazia. Acabaram a refeição e ela mesma colocou o pote de vidro cor de âmbar a sua frente. O homem tirou de lá uma daquelas pílulas misteriosas, perguntando-se se nelas poderia residir seu destino. Mas desconhecia a resposta. Sentia-se cansado, podado até a parte mais profunda de sua alma. Entretanto, tudo aquilo era em prol de algo maior do que ele; a continuidade da família, a manutenção de bons laços de convivência com o sogro, um fim aos falatórios que já varriam o vilarejo. Com o resto de água de seu copo, tomou a pílula em um só gole. Ela tinha gosto de vazio.

E, naquela noite, a esposa dormiu tranqüila, ainda na parte mais distante da cama, como havia se habituado, mas sem pânico a afligi-la porque, em momento algum, seu marido se transformou em qualquer coisa diferente do lenhador de braços e pernas compridos, cabelo vermelho e barba farta que era. Ele não tivera um único sonho sequer. Muito pelo contrário, seu sono fora negro como a mata mais fechada em dia sem luar.

Naquela manhã, o lenhador se sentia cansado e abatido, e seus companheiros, reparando-lhe a mudança de comportamento, perguntaram se ele tinha passado a noite em claro. Não, ao contrário. Dormira como uma pedra. Mas não como uma árvore...

No segundo dia de sono farto e nenhum sonho, o marido já apresentava olheiras escuras sob os olhos. Seus braços mal conseguiam levantar o machado para rachar a lenha. Até seu apetite desaparecera por completo.

Em casa, a mulher voltou a cuidar das galinhas e dos porcos, e ordenhou a vaca. Considerou até a possibilidade de comprar uma cabra, caso tivesse um bebê e pudesse também alimentá-lo com esse leite. Ela cantarolava enquanto o marido emudecia a cada dia. As poucas esposas que, observando as mudanças naquela casa, fossem corajosas ou estúpidas o bastante para tentar aconselhar a mulher, eram imediatamente postas para fora da propriedade. Mas saltava aos olhos o descompasso daquele casal, o mesmo de antes, ainda mais triste agora porque um deles estava coscientemente feliz.

No terceiro dia, o lenhador sentiu que sua língua colava-se ao céu da boca, sem saliva. Era como se ele, por inteiro, não tivesse seiva alguma a dar-lhe vida e movimento. Naquela manhã, a mulher teve que pô-lo para fora da cama aos gritos, puxando-o com os próprios braços. Na clareira da floresta, tudo o que ele conseguiu fazer, enquanto seus tios, irmãos e primos lenhavam, foi se sentar a uma raiz, encostar a cabeça no tronco do ipê e, pela primeira vez em sua vida, sentir-se miserável por ser um lenhador sem sonhos, sem ambições, sem questionamentos.

No quarto dia, ele simplesmente não conseguiu levantar-se da cama. Era como se cada osso de seu corpo estivesse enrijecido, feito um tronco após uma queimada cruel. Ele sentia seus músculos sem tônus algum, amolecidos e murchos, feito folhas caídas para adubar o solo.

Demorou muito pouco para a mulher do lenhador se enfurecer com aquela situação. O marido não trabalhava, não falava, não comia e não tentava dar-lhe o filho de que a comunidade precisava. O falatório no vilarejo, dessa maneira, não tardaria a começar. O marido fazia um esforço imenso para levantar os olhos para o rosto da mulher, mas nada saía de sua boca, nenhuma palavra. Sua mente estava oca, vazia como troncos de aveleira que serviam de moradia para esquilos.

Ele estendeu a mão emagrecida para o pote de pílulas que ficava sobre a mesa e balançou a cabeça, num sinal negativo. A mulher estatelou os olhos, suas pupilas dilataram-se de ódio e seu grito preencheu cada espaço vazio daquela casa: “Não! Jamais quero que sonhes novamente. Jamais me deitarei contigo, a te transformares nas coisas mais absurdas desse mundo! Quero uma vida normal, tu não queres também?”.

Sim, ele queria. E assim o fez. Juntou suas poucas roupas num bornal velho, o antigo machado que havia herdado de seu pai, deu uma última olhada na casa, na propriedade e na criação, olhou suas mulher nos olhos e rumou estrada a fora, para longe da floresta, para um caminho desconhecido, mas certamente não mais desconhecido e sem sentido do que sua vida havia se tornado. Antes de virar a última curva da estrada, deu uma olhada derradeira para a casa. Seu sogro, o marceneiro e antigo comprador, já segurava a filha pelos ombros, o bigode preto muito bem aparado, as sobrancelhas cerradas em sinal de claro protesto. Aquela era sua deixa: não havia mais lugar para ele ali. Não com seus sonhos e sua estranha e louca maneira de sonhar. Não com as pílulas translúcidas recheadas de ar.

Dois

Sua primeira impressão do vilarejo, como morador, foi a de qualquer estrangeiro numa localidade distante e inóspita. Não, o vilarejo não era distante da mata, e sim, ele já havia estado tantas vezes naquele lugar... Mas, quando a realidade muda, o olhar muda, o sentido da pele muda e o local se transforma num universo completamente diferente.

A princípio, ele passou um bom tempo sem encontrar trabalho. Afinal, todos os lenhadores da região eram de sua família e já estavam estabelecidos na floresta e, além do mais, lenhar era tudo o que ele sabia fazer em sua vida. Nas primeiras semanas, ele comia o que velhas senhoras lhe doavam, bebia muito pouca água e sonhava todas as noites. Não era mais tão forte como outrora, mas recuperava aos poucos sua identidade, sua essência de sonhador. Mas agora, escaldado pelo assombro da mulher, tomava o cuidado de passar as noites num celeiro abandonado do vilarejo. Assim, ninguém o veria se transformar durante o sono.

E, na contramão do destino, algumas semanas depois, ele encontrou uma pequena propriedade onde se plantavam hortaliças, flores e mudas de pequenas árvores. O dono, um senhor calvo e de olhos macios, da cor de caramelo, não se opôs em empregar um antigo lenhador como agricultor. Assim, o lenhador, agora apenas mais um homem da cidade, passou a semear mudas de várias plantas, muitas das quais já conhecia, outras completamente novas para ele. Apaixonou-se pelo aroma do alecrim, pelo verde dos pés de alface, pelos pimentões que ele jamais imaginara que pudessem existir também em amarelo e vermelho, pelos girassóis e rosas do campo, pelo louro e pelo cheiro verde. Plantar, regar, deixar crescer e, delicadamente, colher, fazia-lhe sentir que podar árvores por tanto tempo fora, no mínimo, um contra-senso.

O nó dessa segunda história – pois sempre há de haver uma história dentro de outra e, com ela, mais nós, era que ali trabalhava também uma jovem loura, de cabelos lisos e compridos, que lhe chegavam à cintura, e olhos da cor do alecrim que ele aprendera a amar. Era esguia e frágil, e quase não falava. Ele ouvira sua voz apenas uma vez, quando ela lhe dissera: “Não regue tanto as hortaliças. Assim, elas não chegam a brotar”.

E o nó que lhe apertava a boca do estômago quando estavam juntos, na plantação, era o nó do amor, feito semente, começando a brotar em seu coração, tomando-lhe o território por completo. Não custou muito para ele passar a cortejá-la, colher as flores mais frescas para lhe presentear, acompanhá-la até a feira para expor as frutas e os legumes, caminhar com ela pelas ruelas enlameadas do vilarejo, assistir com ela ao por do sol. Mas, no entanto, respeitava sempre seu silêncio. Eram companheiros de poucas palavras e muitos gestos.

Num entardecer, ele a chamou para se sentar com ele à sombra de uma mangueira enorme, que ficava no topo de uma ladeira. Olhou para os galhos, o sol se escondendo por entre a folhagem espessa, refletindo no dourado bonito dos cabelos da moça. Ele não resistiu àquela brincadeira de luz nos fios sedosos e os tocou. A moça retraiu-se com medo, quase vergonha, embora tudo em seus olhos dissesse ao homem que sim, ela o desejava também. “Por que não?”, ele perguntou, sem mais uma palavra a acrescentar.

“Tu não me aceitarias”, ela respondeu, sua voz mais baixa que um murmúrio. “Eu não sou normal, entendes?”. A moça virou o rosto para ele, olhando-o direto nos olhos: “Eu sonho, lenhador. Eu sonho demais”. O coração daquele homem disparou, pulou três ou quatro batidas, e algo dentro dele pareceu efervescer, retumbar. Ele quis contar para ela que também sonhava demais, que também não era normal, mas, se já eram dois assim, talvez não fossem a aberração que se consideravam.

Ele tomou-lhe as mãos entre as suas, ajudou-a a se levantar. Seus braços compridos envolveram todo o corpo da moça, e ela tremeu feito uma vara verde. Beijou-lhe primeiro as pálpebras, em seguida cada uma de suas bochechas macias, a ponta do nariz aquilino e, por último, selou-lhe os lábios rosados num beijo que mais parecia o leve roçar do vento de primavera no bambuzal. “Vem dormir comigo essa noite, Estela. Sei que também te escondes em algum celeiro da cidade. Vem passar a noite comigo para veres que não és a única a sonhar neste mundo pequeno que conhecemos.”

Ela relutou, mas por pouco tempo. A curiosidade juvenil, a promessa de um sonho, tudo isso falou-lhe mais alto à alma e ela se foi com ele. Para a primeira noite.

Três

E, naquela noite, no celeiro abandonado do vilarejo, Carvalho e Estela deitaram-se lado a lado, como há muito não faziam em suas vidas de sonhadores rejeitados. Conta-se, até hoje na vila, que um menino que passava por ali, um diabrete de canelas finas e língua comprida, resolveu espiar por uma fresta da parede de madeira. E o que ele viu foi mágica, um sonho em tempo real. Porque, quando em seu sono profundo, Carvalho sonhava ser uma xícara, Estela transforma-se num pires enorme a contê-lo. Quando ele era uma bota de couro, ela virava um pé a calçá-lo e se aquecer. Ao se transformar em grossos galhos de ipê, ela logo desabrochava em flores amarelas a cobrir-lhe a pele. Quando ele era o jarro, ela era o suco a preenchê-lo. Carvalho se transformava em mala forrada de feltro, e ela, em mudas de roupa recém-lavadas. Se ele era a mesinha de centro, ela era o bibelô de cristal a enfeitá-lo. E, quando ele sonhava com girassóis, ela ora sonhava com borboletas azuis a rodeá-lo, ora com abelhas a colher-lhe o pólen. Tudo para semearem, juntos, mais uma noite de sonhos, realidade e compasso.