26 de setembro de 2010

Pais e Filhos: Versão 32.1


"Hoje é domingo, pé de cachimbo! Cachimbo é de barro, bate no jarro!". Hoje é domingo e eu não me sinto em nada como um touro, o que dirá valente. Outro dia desses, e não era num domingo, alguém me perguntou porque eu escrevo tanto. Acredito que, no meu caso, a escrita seja uma espécie de catarse, uma fuga. Antes de qualquer coisa, uma fuga para dentro de mim mesma, quando o mundo cá fora está demasiado grande, ele um gigante e, eu, um anão. Fuga, também, da solidão. Quando você tem seu dia de vampiro e não vê seu reflexo em espelho algum, nem mesmo no olho de um amigo. Solidão dessas em nada do que você diz reproduz eco. Então, escrevo em páginas amigas, que ecoam, que refletem, que me recolocam em meu centro. Afinal, todo mundo tem seu dia de Narciso...

Hoje é um domingo chuvoso, de um céu cinza medonho e nuvens tão gordas que parecem poder cair a qualquer momento. E não importa, meu amigo, que já seja oficialmente primavera. Um vento frio e úmido sopra do sul, enregelando os dedos da mão, e as flores amarelas do ipê do "seu" Ítalo caíram todas. Não sei se é porque é domingo, ou se porque o azul do céu se escondeu ou se é apenas meu olhar - o olhar da minha alma - mas nunca vi aquele ipê tão nu como hoje.

E quem imaginaria que tudo começou com um abrir de janelas da minha varanda. Nesse ínterim, essa história precisa de uns parênteses. Desde muito jovem, eu sempre orbitei em torno de meus pais, feito um satélite pequenino, girando em círculos e que, a cada volta completa, vislumbrava na linha do horizonte um destino, uma identidade única. Não é à toa que esta tenha sido sempre minha Odisseia pessoal: a busca por identidade.

Eu poderia fechar esses parênteses de muitas maneiras, até mesmo com fatos datados e detalhes sórdidos de uma vida de idas e vindas. Mas, além de isso ser tedioso à beça, não tenho a menor inclinação para biografista. Então, para resumir, vou usar aqui um dito popular: "Quando a árvore é grande demais, a sombra não permite que os arbustos menores ao redor floresçam". Para ser sincera, às vezes me pergunto se não uso essa coisa de pais grandes demais, filho único e satélite como um pretexto para os meus próprios fracassos pessoais. Mas isso eu só saberia em muitos anos de divã, no mínimo. Então, num domingo macambúzio e solitário como esse, usar aquela frase batida do Sigmund: "a culpa é sempre dos pais", não vem a ser nenhum crime hediondo, embora, sim, seja uma justificativa lamentável.

O fato é que meu grande pai, o totem supremo do meu universo - imagine algo como o Marlon Brando interpretando o Jor-El - entra às oito e meia desse domingo miserável em minha casa e escancara as janelas da varanda. OK, ele é meu pai, certo? Mi casa su casa. E vai por aí a questão: ele tem a prerrogativa - talvez porque eu o tenha permitido - de escancarar as cortinas e janelas da minha vida, mas, veja bem companheiro, essa não é uma via de mão dupla. Quando sua alma não tem portas nem janelas para os seus pais, fica muito mais confortável para eles lançar lá dentro todas as expectativas que têm sobre você, quiçá até mesmo um sonho ou outro deles, como se você pudesse realizá-lo em seu lugar.

Hoje eu não sou apenas filha, mas mãe também. E toda noite, feito um mantra poderoso, fico repetindo e prometendo para mim mesma que não vou criar expectativas - reais ou irreais - sobre meu filho, nem desejar que ele realize sonhos meus que já viraram poeira na estrada há tempos, e muito menos pensar ou acreditar que ele deva seguir minhas pegadas e dar continuidade aos meus legados, mesmo que isso fosse o mais lógico e fácil para ele, já que vai encontrar as porteiras abertas. Eu mesma não as encontrei...? 

E é por isso que eu morro, me borro mesmo de medo da Elis Regina quando ela canta: "Minha dor é perceber que apesar de termos feito tudo o que fizemos, ainda somos os mesmos e vivemos, ainda somos os mesmos e vivemos como nossos pais". Às vezes aquele meu lado masoquista fala mais alto do que meu incipiente otimismo e eu ponho essa faixa para tocar no volume máximo. Porque, afinal, eu adoro essa música, vá lá. Mas, não tem como negar, irmão. Se você tem pais e é pai também, a vontade que dá ao ouvir "Como Nossos Pais" é se esconder de baixo da cama e ficar por lá uns bons três dias; ou pelo menos o tempo suficiente para o seu subconsciente esquecer a letra e a gritaria da Elis no final da música. 

O fato é que é do ser humano esperar, ter expectativas sobre o outro. Se não fosse desse jeito, penso eu, seríamos todos um bando de pedras, milhares de famílias Stonehenge espalhadas pelo mundo. O problema é que ninguém muda a essência de ninguém e, se mudar, não mudou de fato, apenas a ocultou e fez do outro uma sombra do que já fora, um indivíduo anulado. E essa hecatombe pessoal não acontece apenas com pais e filhos; acontece entre casais, amigos, amantes, soldados em guerra e seus coronéis, patrões e funcionários, cidadãos e o governo. E, de uma expectativa frustrada a outra, sofre quem espera e nunca alcança, e quem está na berlinda, sentindo-se sempre aquém do que é. Na pior das hipóteses, expectativas podem gerar um medo tão grande na gente que se acaba ficando parado, empacado na estrada feito mula com medo de cobra. E deixa-se de trilhar caminhos, fazer opções, experimentar o novo, dizer "não" sem machucar, tomar rumos diferentes daqueles pré-traçados, voar mais alto, viver com leveza, enfim, ver a vida além de um buraco de agulha.

Tem dias de céu azul em que eu realmente queria ser mais como meu pai, ter a força, a liderança e a disciplina dele. Outras vezes eu realmente queria ser mais como minha mãe que, mesmo abatida e no chão, se levanta em segundos, sacode a poeira e ainda te dá uma rasteira. Eu queria ser, também, uma mãe mais presente para o meu filho porque ele, ainda tão pequeno, já tem suas próprias expectativas. Aí, então, nessa balada, vou me perdendo e me esquecendo de quem fui, de quem sou, de quem eu poderia ser. Então, eu escrevo. E fico pensando em me mudar para outra cidade, começar do zero, ser aquela que eu já fui, mas nem me lembro mais, para ser sincera. Ou faço pequenas revoluções, como sair num domingo sozinha e não dar satisfação para ninguém. O pior é que meu celular nem toca...

Meus pais dizem que eu "filosofo" demais. Vai ver têm razão, vai saber... Mas é impossível não filosofar num domingo tão cinzento como esse. Mas nessa minha muito vã e fajuta filosofia, eu guardo uma crença perene em meus pensamentos, na minha conduta. Expectativas a gente só pode, e deve, ter sobre si mesmo. Mais ou menos como se fôssemos todos nadadores profissionais; eles treinam competindo consigo mesmos, para bater seus próprios recordes. Dessa maneira, a gente evolui, caminha,  se auto-analisa, olha um retrato antigo e o reflexo do espelho para ver qual dos dois é mais fiel ao presente. Quem não espera nada de si mesmo vira estátua de sal. Mas esperar do outro um destino nosso, uma atitude que teríamos, como se o outro fosse não mais que um espelho, e não um indivíduo completo, repleto de idiossincrasias, bem, isso é neurótico, doloroso e, em alguns casos, até cruel (acabei de me lembrar do caso do Michael Jackson e seu pai. Mas essa é outra história...).  

Para terminar, cito Arthur Schopenhauer, cujo pai, à propósito, queria que ele fosse comerciante, assim como ele próprio. O pai dele, Heinrich, o mandou, com apenas 12 anos de idade, numa excursão pelas cidades mais influentes da Europa, só para futuros empresários e comerciantes. Tudo que Arthur fez de mais importante nessas viagens foi escrever uma série de textos pessimistas sobre a miséria da condição humana. Foi preciso que seu pai morresse para Arthur ingressar na universidade e se tornar o filósofo que influenciou gerações após a dele. Ele diz assim: "Uma pessoa é tanto mais amada quanto mais moderar as suas expectativas em relação ao espírito e ao coração dos outros; e tudo isso a sério, sem fingimento, e não apenas devido à indulgência enraizada no desprezo.

Um comentário:

  1. filho é um projeto muito cuidadoso, dá uma obra uma muito demorada, impossível não pensar em como vai ficar a fachada, em como vai ser a divisão interior, se vai resistir a intempéries, se vai ser bonito...
    impossível não ter expectativas...
    eu espero não esperar nada, e olhe, que ironia. ;]

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