25 de setembro de 2010

Flor da Idade


Eis que, na flor dos seus 18 anos, Alceo Rohen, já tendo passado alguns dias com seu irmão Alarico no então distrito de Mangueira, no Rio de Janeiro - e portanto, talvez, vislumbrado uma silhueta do que seria seu futuro - apaixona-se fulminantemente por Nilza, filha de sua tia Olindina, irmã de seu pai, José "Juca" Rohen. E eis que Nilza Rohen, fulminante e igualmente apaixonada, manda a razão às favas, cede aos chamados da aorta e passa a se encontrar com Alceo domingos seguidos numa várzea próxima à casa do amigo em comum da família, Nagibe, onde toda a molecada jogava futebol de manhã. E, sob uma frondosa mangueira, distantes um bocado da pelada, que acontecia diante dos olhos esgazeados dos enamorados, os primos seguravam-se as mãos trêmulas, ambos nervosos e sorridentes, esquivando-se dos olhares de parentes e conhecidos. E encontravam-se também, os dois, nas chamadas "surpresas", muito comuns nos idos de 1950 em São Félix.

Naquela época, muito antes do êxodo rural de 1970, a roça era povoada de casinhas, umas coladas às outras, e a gente abundava as estradinhas de saibro. Havia peões que disputavam o trabalho, homens fortes para capinar as muitas terras cultivadas, vendas para abastecer as casas e escolas para onde a molecada pudesse ir e aprender a escrever cartas de amor. E, aos sábados, havia as "surpresas". Um grupo mais animado, geralmente amigos mais chegados ou mesmo membros de uma mesma família, muniam-se de sanfonas, violas, pandeiros, gaitas e o que quer que fizesse barulho, muito barulho. Montados em seus cavalos, geralmente já passado o cair da tarde, iam passando pelas casinhas, avisando à toda a gente que, naquele dia, haveria uma "surpresa" na casa de "seu” João, Antônio, Pedro ou José. Era tudo uma grande surpresa, de fato, uma farra geral. Aí, então, os sorrisos abriam-se nas bocas dos peões, lavradores, mães com seus rebentos melequentos agarrados às saias, debulhadores, e, claro, em Alceo e Nilza; era dia de "surpresa", dia de encontro, ou melhor, noite de encontro.

Corre esse jovem apaixonado ao galpão onde dormia com seus irmãos. Olha-se no pequeno espelho pregado à parede. Procura sua melhor roupa, lava-se com esmero, ajeita os cabelos fartos, usa uma colônia comprada na cidade grande, sorri para sua imagem refletida. É forte e viril, está feliz, vai ver Nilza e tem apenas 18 anos de amor. Lá na casa de Olindina, Nilza deve estar colocando seu melhor vestido, escovando a cabeleira escura até brilhar, olhando-se no espelho da cômoda da mãe e beliscando as bochechas para ficarem coradas. Seus lábios nem precisam de batom; já são rosados feito uma goiaba madura, e sua pele é fresca e cheirosa como jambo. A moça sorri para o seu próprio reflexo no espelho. É linda, seus olhos brilham, a pele é lisa, os seios firmes, está apaixonada e tem apenas 15 anos de plenas possibilidades.

E assim, atrás da "caravana da surpresa", vai todo o povo de São Félix, explodindo em barulho, confusão e alegria. Antes mesmo de chegar à casa da "surpresa", a festa já começa. E, quando chegam, acordam o anfitrião, que já sonhava há horas porque deve se levantar cedo para tirar leite de suas vacas preciosas. Ele abre a porta assustado, os olhos piscando com a luz das lamparinas, os ouvidos zunindo com as sanfonas já tocando os primeiros acordes de forró. Corre a chamar sua mulher, que também dormia. Ela chega à porta, lenço na cabeça, amarrando um avental na cintura e diz: "É a surpresa, homem. Não se avexe, vou já na cozinha preparar uns quitutes para a moçada.

E entram todos na casa do sonolento anfitrião, algumas mulheres já se agrupando na cozinha para ajudar a esposa a preparar o bolo e fritar o angu. E com eles entram Nilza e Alceo, que já se dão as mãos e dançam sua primeira rodada de forró. Dançam e conversam a noite inteira. E riem, dão muita gargalhada juntos. Quantas surpresas não foram testemunhas dessa semente nova de amor...? Uma vez, depois de uma valsa mais lenta, Alceo leva Nilza para o terreiro de uma dessas "casas de surpresa". Os dois sentam-se na escada da porta dos fundos, uma escada de pedras antiga, a fazenda é toda muito antiga, como antigo é o querer do homem pela mulher. É julho, noite estrelada na roça, e a lua é tão imensa e clara que faz sombra no chão. Não se beijam. Nunca se beijaram. Só pegam as mãos uns do outro, olham-se nos olhos, riem feito bobos e conversam. Conversam, talvez, como jamais conversariam assim, em suas longas vidas. A noite é fria, eles se achegam mais perto, para esquentar, para encurtar distâncias. Ali, fazem promessas um ao outro. Já se vão muitos meses nesses encontros furtivos. Alceo sente vontade de casar com Nilza, como o sentem todos os jovens apaixonados de 18 anos; quer viver com essa morena linda, a prima de olhos amendoados, dentes branquinhos, corpinho de pomba, anquinhas largas e conversa fácil. Ele já nem se lembra mais da cidade grande, das moças elegantes e coquetes de lá; só quer Nilza e uma vida tranqüila com ela.

Na manhã seguinte, enche o peito de coragem, sela seu cavalo e vai à casa de Olindina. Fala de suas intenções primeiro à tia. Nilza fica na cozinha, não sai. Quer esperar o resultado de tudo, entocada em sua casinha. Em seguida, Alceo revela sua paixão a seu pai. Mas não foi tanto a paixão que botou medo no coração de Juca Rohen: "A gente sempre rabicha com uma prima, Alceo. Inda mais uma que nem essa. Rabicha e não esquece. Você vai com Massarico domingo pro Rio". Juca falava muito pouco. Alceo nem acreditou que, naquele momento, ele pudesse ter dito tanto. O amor do filho pela prima, de fato, não assustou aquele homem da terra garboso, com seu bigode fino, chapéu de palha sem um amassado, ternos sóbrios e coluna sempre ereta. A questão, ali, era outra; talvez ele já vislumbrasse, em sua cria, um futuro maior, bem maior do que um visto pelo buraco de uma agulha enferrujada de cozer fronhas. Para Alceo, ele via uma estrada com carros e prédios; para Nilza, uma outra, que levava ainda mais para dentro da mata.

E Alceo foi para o Rio. Ficou por lá alguns meses, tempo suficiente para o braseiro aceso em seu peito virar um monte de cinzas. Amargou o luto, a saudade de Nilza, de casa, dos carros-de-boi, dos pais e dos amigos, das “surpresas” e até do trabalho duro da roça. Sentiu o gosto ácido da perda de sua morena, do amor arrancado pela raiz. Viu-se transformado, em questão de horas, do filho predileto no capiau pobre na cidade grande, tentando se ajustar àquela gente elegante e cheia de palavrório difícil. Mas, sempre há de se seguir adiante. E ele seguiu.

E Nilza... Bem, Olindina logo lhe arrumou um casamento, para arrancar-lhe da mente a lembrança de Alceo. Mas fica na gente da época que soube daquela paixão a dúvida: será que tia Olindina conseguiu arrancar a lembrança do amor do coração, da alma da filha...? Quando voltou à roça, Alceo ainda procurou por Nilza. Encontrou-a casada, avental cinza preso à cintura, lenço cobrindo os vistosos cabelos pretos, fazendo as marmitas para os capinadores levarem em seus embornais. Não conversaram. Sorriram um para o outro, mas não como antes. Suas estradas não se cruzariam mais agora.

Mas Alceo ainda leva no peito a lembrança de Nilza, a memória marcada na carne daquele amor sentido ao máximo principalmente por ter sido vivenciado ao mínimo. Fotografou aquela mangueira e seus encontros felizes com Nilza na sombra fresca, as peladas de domingo que eles nem viam, as danças e conversas nas "surpresas", as promessas de amor na escada daquela fazenda velha. E, quando conta essa história, Alceo suspira, baixa os olhos e dá um riso velado, que ainda esconde emoções. Jura que Nilza foi a mulher mais linda que já conheceu. E que daria tudo para se encontrar com ela, ainda hoje, só uma vez, para "por a conversa em dia, ver como ela está", antes de o tempo deles passar nessa terra.

Um comentário:

  1. hey, moça, vc ainda vai ficar mto famosa por esse modo emocionante de escrever. =]

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