26 de setembro de 2010

Pequena Grande Cidade


A cidade onde eu moro é pequena. Não sei ao certo quais critérios o IBGE, ou sabe-se lá qual órgão do governo utilizam para alocar as cidades em compartimentos específicos, como municípios, distritos, cidades pequenas, médias, megalópoles, etc. Certamente o número de habitantes e o PIB são alguns desses critérios. Mas não é sobre esse tipo de chatices que eu quero escrever aqui.

Reza a lenda – e eu digo isso porque tenho pretensões literárias, e não históricas – que a minha cidade era uma grande e importantíssima fazenda do Vale do Café, a Fazenda Santa Cruz. Vai ver esse é, de fato, um dado histórico, porque até alguns anos atrás, vários comércios eram chamados assim. Era um tal de Padaria Santa Cruz para cá, Posto Santa Cruz para lá, Farmácia Santa Cruz, Avenida Santa Cruz, você pode imaginar. Até festa de Santa Cruz, com direito a feriado municipal e tudo o mais, tem na minha cidade. Como a Fazenda Santa Cruz era propriedade de uns coronéis de sobrenome Mendes, a localidade acabou entrando para o rol dos municípios com esse nome.

Mas o fato é que a minha é uma cidade pequena. E tem todas as mazelas e bênçãos que uma cidadezinha pode oferecer. Havia até, imagine você, uma lista que era impressa anualmente, não se sabe por quem, nem onde, indicando as esposas e maridos traídos até aquele dado momento. Conta-se que a tal lista era afixada em portas dos comércios, distribuídas à revelia, mas, como em cidade pequena tudo é muito pouco científico e a coisa anda mesmo à boca miúda, não dá para dizer se a lista existiu mesmo. Bem, eu nunca pus os olhos em uma, mas posso garantir que, com ou sem lista, todo mundo daqui sabe quem usa ou não o tal chapéu viking na cabeça.

Por outro lado, quando as avenidas e ruas não são tão compridas e você acaba esbarrando em um conhecido a cada dois metros, a sensação esmagadora de que você nasceu sozinho e vai morrer sozinho é menor. E todo mundo cumprimenta todo mundo, a não ser que sejam inimigos declarados. Nesse caso, você atravessa a rua, para não ter que cumprimentar. Até hoje, quando eu vou à capital, me pego cumprimentando desconhecidos, automaticamente. Nem preciso dizer que eles me olham com cara de vírgula e não me cumprimentam de volta. As amizades são mais sólidas, também, talvez porque elas nasçam na rua, continuem nos colégios e, daí, sigam por esse mundão de Deus afora.

Outra dádiva da cidade pequena: você pode sempre deixar para pagar um real de pão amanhã, se não tiver um puto no bolso. E comprar fiado mensalmente, lógico: na padaria, no restaurante, na mercearia, na farmácia. Cidade pequena sem fiado não é cidade pequena. E, em qualquer lugar que você precise abrir uma ficha para cadastro – digamos, na locadora, por exemplo – é totalmente desnecessário que você decore seu número. Afinal, o vendedor já te conhece e, em alguns casos, ele mesmo sabe o seu número de cor. Nesse caso específico de locadoras, há uma confusão bem intencionada já estabelecida. Como o dono promete reservar o mesmo filme para umas trinta pessoas, às vezes um cinéfilo pode ficar a ver navios.

E, claro, numa emergência médica, dificilmente um velhinho solitário vai ser encontrado morto em sua antiga casa apenas dali a três, quatro semanas. Porque se você precisa de ajuda, encontra. E rápido. E todo velhinho que mora sozinho deixa a chave de sua casa com um vizinho mais próximo exatamente para prevenir uma fatalidade como essa.

Na minha cidade, interfone existe só para enfeitar a entrada dos prédios. Porque, no final e ao cabo, ninguém sabe o número do apartamento de ninguém, e vai tocando aleatoriamente até encontrar a pessoa com quem quer falar. E as casas comerciais não são conhecidas pela razão social, coisa muito fina e organizada, do tipo “Casas Bahia” ou “Lojas Americanas”. Aqui, a coisa está mais para “Mercearia do Daniel”, “Posto do Zeca” e “Padaria da Jurema”. Raramente inquilinos e locatários se relacionam através de uma imobiliária; acaba-se alugando um imóvel mesmo é para o tio do primo do irmão do cunhado do “seu” José, gente de muita procedência.

Por falar em procedência, cidade pequena é uma coisa surreal quando se trata de SPC e Serasa. Se você mora numa cidade grande, sabe que o anonimato, coisa que o Max Webber já falava há anos, é um privilégio da metrópole, que garante a individualidade e, assim, a liberdade do cidadão. Por isso a burocracia existe, e SPC e Serasa são entidades mágicas que permitem ao vendedor, discretamente, consultar a procedência de crédito de um possível cliente.

Mas, numa cidade pequena como a minha, dificilmente um neto de caloteiros não vai estar no SPC ou no Serasa. Porque, como se diz por aqui, inadimplência está no sangue, faz parte dos cromossomos do cara, sabe como é. E, claro, você vai ser sempre “filho de fulano”, e não apenas o “fulano”. E a coisa não para por aí, porque você é sempre “filho de fulano”, certo? Mas, que “fulano”? Ah, sim, aquele, que é “tio do Cicrano”. É tudo uma grande família, realmente.

Na minha cidade, a cidade inteira sabe quando alguém morreu. E, nesse quesito em particular, não dá para eu ser imparcial. Sabe objeção estética? Pois é. É o que eu sinto quando passa por toda rua, avenida, beco e esquina, o carro de som anunciando a “Nota de Falecimento” e o horário e local do “féretro” do defunto. Que diabos, eu nem sabia o que era “féretro” antes de voltar para cidade onde eu nasci! E o mais original nisso tudo é que a minha cidade só tem um locutor para esses anúncios – não só os de falecimento, claro, mas também as promoções do dia do restaurante, a derrota do time X para o time Z, uma eventual propaganda política... E todo mundo conhece o cara, que é gente boa demais. Eu mesma sou fã dele, mas, quando imagino a locução para a minha eventual nota de falecimento: “Comunicamos com pesar infinito a morte de Roberta, filha do Alceo da farmácia”, Jesus toma conta! Eu juro que cada pêlo do meu corpo se arrepia e eu fico feito o Charlie Brown, da Turma do Snooppy, que ouvia a professora dele só assim: “Blah, blah, blah...”.

Isso é o que eu chamo, carinhosamente, de “estado geléia de ser”. Os psiquiatras dizem que é anomia, basicamente algo como não sentir nada. Mas, honestamente, a sensação que dá é a de que você está tentando andar, falar, escutar e ver dentro de um gigantesco pote de gelatina de limão. Tente mentalizar alguém anunciando o horário e o local do seu féretro que, com certeza, você vai se sentir na mesma geléia que eu.

Em cidade pequena, ninguém chama a polícia para briga de marido e mulher, mesmo que seja a mil decibéis e depois da meia-noite. Bom, na eminência de tiros, aí sim, a coisa pode ser diferente e o vizinho talvez venha a cumprir com seu dever cívico e ligar para o 190. Porque, afinal, quem não vai querer ficar escutando a discussão inteirinha, até o final, para ter o que contar durante a semana inteira? E se, por outro lado, o casal vive em eterna lua de mel e, depois da meia-noite, o marido resolve solicitar os serviços da esposa e esta, de natureza italiana, faz uma barulhada dos infernos, aí então a fofoca é ainda mais quente.

Numa cidade como a minha, todo mundo conhece o carro e as motos de todo mundo, alguns superdotados até pelas placas. E não são apenas os veículos, não, mas os itinerários também. Isso quer dizer que, se o Fusca azul do “seu” Manoel, que, depois das 19 horas, segue diariamente em direção norte, foi visto, numa certa ocasião, uma hora depois estacionado na zona leste, vai dar galho. Para o “seu” Manoel, claro. A não ser que o Fusca estivesse com a correia arrebentada e o “seu” Manoel o tivesse levado ao mecânico. Mas, mecânico, depois das oito da noite, e para aquelas bandas...? Ah. Esqueci de mencionar que os superdotados, os que sabem as placas dos carros de cor, costumam jogar no bicho com os tais números. E ganham bons trinta reais de vez em quando.

Na minha cidade não tem semáforo, de verdade. Mas tem um bocado de guardas de trânsito, todos muito “chegados” da galera da cidade. E, aqui, se você for visitante, não se sabe exatamente que sinais a pessoa emite, que tipo de ondas eletromagnéticas ficam rondando o sujeito, mas a gente logo sabe que é “gente de fora”. Incrível, isso, porque minha cidade tem quase trinta mil habitantes.

Mas o mais interessante da cidade pequena são os malucos. Fica parecendo que não tem maluco no Rio e em São Paulo, por exemplo, só mendigo e/ou andarilho, mas tem sim. Só que, evidentemente, quanto menor o espaço físico, mais fácil é detectar o que se difere, o que se destaca. Os malucos da minha cidade são adoráveis, de verdade. E todos são malucos do bem, para não dizer malucos-beleza. São malucos que embelezam a cidade, fazem a gente rir mesmo nos dias em que tudo o que a gente quer fazer é chorar ou matar alguém.

Tem um que acha que é guarda de trânsito, tem até um uniforme com quepe e tudo mais – evidentemente não um uniforme oficial, porque, aí então, maluco seria o prefeito, acho. Ele é uma graça. Em pleno domingo, cinco gatos-pingados na praça, meia dúzia de automóveis vagarosos percorrendo a avenida principal e ele lá, apitando horrores, fazendo mil gestos de “siga”, “pare” e sabe-se lá mais o que. Ele tem uma namorada que, coincidentemente ou não, também é doidinha, doidinha. Eles se amam de verdade. A especialidade dela é comprar esmaltes – sua paixão – e dançar no meio da rua em dias de festa, Carnaval ou quando uma banda cover qualquer vem tocar por aqui. Só vi esses dois brigarem uma vez na minha vida: ela, dançando em frenesi num cruzamento, atrapalhando o trânsito, e ele, furibundo, apitando para a namorada liberar a passagem.

Tem também um maluco que adora andar correndo pelas calçadas, esbarrando nos outros de propósito e entrando nas lojas comerciais, mexendo em absolutamente tudo. Mas, isso, ele só faz quando está muito atacado. Em dias melhores – e eles sempre vêm – ele gosta de encostar ao balcão e falar de coisas que ninguém entende, porque ele fala baixinho pra burro. Aí, antes de ir embora, ele olha bem dentro da sua cara e diz: “Tô de olho em você”.

Às vezes, até para nós, moradores da cidadela, fica difícil distinguir um maluco do bem de um andarilho. Acho que uma coisa é condição sinequanom para a outra. Porque, de malucos mesmo, eles não têm é nada. Estão sempre felizes, vivem como querem e sabem que é melhor andar por aí do que ficar parado e criar lodo. Um maluco/andarilho da minha cidade vive pedalando, adora decorar bambus com fitas coloridas e diz que, no verão, a melhor coisa para a saúde – e ele diz isso porque faz isso – é se cobrir todinho, dos pés à cabeça, com um cobertor bem quente, para suar bastante. Estranhamente – ou não, já que estou partindo do pressuposto de que ele é doido – ele só toma banho gelado. E tenho que confessar: o danado nunca pegou uma gripe na vida.

O meu maluco favorito varre a rua da casa onde mora há anos o dia inteiro, vai à missa todo domingo e ama a “Ave Maria” que a igreja toca diariamente às seis da tarde. Ele deve ter pouco mais de um metro e meio de altura, é um negro forte e trabalhador e vive sorrindo. Acho que é a pessoa mais feliz – ou doida – que eu já conheci na minha vida. Ele me conhece desde bebê e, quando me vê, grita lá do alto da escadaria de sua casa: “Ei, querida! A Adelaidinha, olha lá a Adelaidinha”. É que minha mãe chama Adelaide, e o doido só me chama pelo improvável diminutivo do nome dela. Eu, sim, que sou maluca de pedra, e vivo feito cão e gato com a minha mãe, tenho crises homéricas de identidade quando o escuto me chamando de “Adelaidinha”.

Hoje, o sorriso perene dele é de dentadura. Conta-se que ele tinha dentes perfeitos, mas, por ter quebrado apenas um, há ninguém sabe quantos anos, um dentista doido arrancou todos os dentes dele. Ouvi dizer que isso era de praxe, na época. Mas, no fundo, no fundo, eu acho que isso já era influência da loucura no metiê médico. Esse meu maluco favorito tem verdadeiro horror de ficar com cabelos brancos; então, ele gasta o que pode e o que não pode em tinta Fleury preta. Compra um monte delas, mistura tudo num balde e besunta os poucos fios encaracolados que têm. Dia sim, dia não. E a paixão dele, como a de todo doido, dizem, é um radinho de pilhas. Então, quando ele não compra tinta Fleury, compra pilhas Amarelinhas, tamanho AA. Muitas. Acho que, quando não está varrendo, nem pintando os cabelos, ele fica ouvindo rádio o tempo inteiro.

Eu, numa antiga crise de loucura clínica, com direito a ansiolíticos, antidepressivos, terapia freudiana e o escambau, prometi para ele que vou ensiná-lo a dirigir e me casar com ele depois. Agora, sempre que me vê, ele me cobra as promessas. E fica sério quando eu mudo de assunto. Coisas de cidade pequena...

2 comentários:

  1. o melhor das cidades pequenas são os frutos surpreendentes que ela dá, tipo você. =)

    eu sei disso tudinho que vc contou aí, miguelense feelings...!

    keep on writing. whenever. about whatever.

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  2. Música para o texto:
    http://www.youtube.com/watch?v=64nZOk9OSkQ

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