25 de setembro de 2010

O Homem Que Sonhava Demais

Um

Ele era um lenhador. Aprendera seu ofício com o pai que, por sua vez, fora ensinado pelo pai de seu pai. Uma família inteira, mais de três gerações de homens cuja profissão consistia em cortar troncos de árvores em toras maciças e roliças que, fora da floresta, se transformariam em cadeiras, mesas, camas, armários e todas essas coisas muito úteis que a humanidade consegue, habilidosamente, fazer com as árvores.

O que mais impressionava os habitantes que conheciam aquela família era o fato de todos se parecerem, pelo menos no invólucro mesmo de cada um. Eram homens com braços e pernas compridos demais em relação ao tronco, a tez bronzeada, já curtida pelo sol a que eram expostos no trabalho, cabelos avermelhados e fartos, rostos finos, com o queixo comprido, e completamente cobertos por uma barba cerrada, que os fazia parecer mais sisudos do que poderiam ser de fato.

Todos, sem exceção, se casavam relativamente jovens. Cada lenhador daquela família precisava de mulheres fortes que lhes dessem filhos igualmente fortes e que, a medida que as calças começassem a lhes ficar curtas nos tornozelos, pudessem-nos ajudar na floresta. E todos, geração após geração, decidiam-se por morar ali mesmo, no coração da mata, ouvindo os rumores da madeira, escutando as histórias que cada uma daquelas árvores tinha para lhes contar, aprendendo a distinguir a madeira não apenas pela cor, mas também pelo aroma, pela aspereza da casca do tronco. Aos habitantes do vilarejo, a poucos quilômetros distante da mata, parecia que aqueles lenhadores optavam por morar dentro da floresta para fazer amizade com aquelas árvores, mesmo que esta fosse uma relação de curta duração e destino certo: a morte do amigo mais útil e, por isso, mais fraco. A cada quinze dias, os moradores já esperavam a visita dos lenhadores. Em bando, eles deixavam mulheres, casas e floresta e iam à cidade comprar provisões e mantimentos nas feiras locais. Todos se divertiam com aqueles homens compridos e barbudos, de cabeleira em chamas, machado às costas e um burburinho incompreensível entre si, procurando completar a lista de compras que traziam de suas esposas.

Todos esses hábitos, toda essa rotina, este lenhador em particular seguia à risca. Diziam até que, dentre os homens da família, era ele o mais parecido com um dos primeiros da linhagem, pelo menos aquele de quem se lembravam pelas histórias contadas à beira de fogueiras, as famílias emaranhadas feito filhotes de gato em torno das chamas para espantar um pouco do frio que fazia no coração da floresta. Sim, este lenhador era o que mais se assemelhava ao primeiro deles, aquele gigante vermelho que havia derrubado, sozinho, um jacarandá milenar, abrindo então uma clareira viva na mata. Não era por coincidência que, exatamente nesta clareira, celebravam-se todas as festas de casamento, a cantoria, a dança e também as eventuais rixas entre as esposas e primos. É curioso como a morte de uma árvore pode abrir tanto espaço no coração de um lenhador, de maneira a estabelecer, na nova clareira, um círculo de vidas.

Mas uma característica, e apenas esta, tornava nosso lenhador único não apenas entre os seus, mas dentre todos os ferreiros, padeiros, amas-de-leite, fazendeiros e marceneiros da região. Esse lenhador, também ele de braços fortes e pernas compridas, cabelos fartos e uma jovem esposa de bochechas coradas e avental preso à cintura, este homem sonhava demais. Mas seus sonhos não eram destes que a gente tem já ao finalzinho da noite e nem se lembra mais ao raiar do sol. Os sonhos desse lenhador, veja bem, eram reais. E quem testemunhava esse fato insólito era sua própria esposa, uma camponesa, filha de um comprador vizinho, a mulher que dividia com ele a cama de cerejeira no centro do quarto.

Pois eis que, na calada da noite, já pega em sono alto, a moça era subitamente despertada pelo tilintar de uma xícara, isso mesmo, uma xícara da mesma altura e tamanho de seu marido, “deitada” meio de banda a seu lado, e respirando, por todos os santos! Era o lenhador que, provavelmente sonhando com um lauto café da manhã, transforma-se num objeto onírico a cada noite.

Certa vez a camponesa, acostumada a hábitos mais civilizados na casa de seus pais, sentiu-lhe o coração quase saltar do peito pela boca afora, ao se deparar com um enorme pé de bota de couro, ressonando ao seu lado. O pior era que os cadarços da bota pareciam de fato estender-se para ela, como a querer abraçá-la, o que lhe causava mais pânico e indignação. E qual não fora seu susto ao ser acordada pelo leve roçar de um galho de ipê amarelo em flor, tocando suas bochechas com as flores ainda ungidas de orvalho? Uma noite, horrorizada, viu seu marido em pleno sono, tão igual a tantos outros lenhadores na aparência, transformar-se num enorme jarro de barro, os braços invaginando-se para dentro do barro, as pernas encolhendo lentamente, até que o homem era apenas um jarro redondo, macio e quente, que lhe parecia rolar em sua direção, como que a querer contê-la por inteiro. Outras noites, quiçá perdido em seus sonhos com uma viagem à cidade, ele se transformava numa grande mala forrada de feltro. Ou numa mesinha de centro, com as pernas meio ajambradas. Até em girassol seu marido já havia se transformado, e tudo isso em sonhos, protegido pelos braços cálidos de Morfeu, completamente inconsciente de suas bizarras transformações.

Nessas noites, a mulher encolhia-se toda no canto mais distante da cama, puxava as cobertas até a altura das orelhas e ficava espiando de esguelha aquele seu marido meio homem, meio coisa, até o amanhecer, quando enfim seu sonho terminava e ele se transformava em homem novamente. E é desnecessário dizer, já que se pode concluir pela perturbação e terror daquela esposa, que suas noites eram insones. Completamente.

E, com a insônia, vinha o mau humor, a irritabilidade, uma preguiça matinal que nada parecia vencer. Nem as galinhas ela alimentava mais, o que dirá os porcos, com seus grunhidos estridentes. As tetas das vacas inchavam e doíam porque ela não as ordenhava, mas também, mergulhada num poço de amargura, não permitia que os bezerros mamassem de suas mães. Nem filhos ela pudera conceber até aquele momento. E a alma daquela mulher era tomada de dúvidas e rancor. Ela fora destinada a se casar com um lenhador daquela família, assim como suas outras duas irmãs, e ele era tão igual aos outros... Então, por que, em nome de Deus, ele haveria de sonhar...? Porque tudo o que ela precisava fazer era cuidar da criação, ter filhos, alimentá-los e torná-los lenhadores e, à noite, dormir. Sem sonhos. O sono negro e amnésico dos normais.

O nó dessa história, como toda história tem um nó, assim como todo tronco de árvore é cheio de nós, e também nossos dedos os são, é que, em meio à infelicidade da esposa, aquele lenhador transbordava de alegria, principalmente ao amanhecer. Depois de trabalhar até o por de sol, rachando lenha e emudecendo árvores com mil histórias que jamais seriam ouvidas, ele voltava exausto para casa, tomava a sopa rala de lentilhas que a esposa lhe preparava e deitava-se, louco para sonhar. E, em seus sonhos, ele viajava dentro de si mesmo, sem se afastar um milímetro de sua cama e de sua casa, e não era mais um lenhador, mais uma ovelha idêntica às outras. Em seus sonhos, ele podia ser o que quisesse, dizer o que pretendesse, ir para aonde mais amasse e, claro, plantar mudas infinitas de árvores, só para, em sonhos, vê-las brotar, crescer, amadurecer, florescer e dar frutos à terra fértil de sua imaginação.

O nó dessa história é que, ao raiar o sol, o lenhador despertava revigorado, prenhe de sonhos, e sua mulher acordava azeda, repleta de olheiras, assustada e sentindo-se traída, enciumada das coisas que ele virava quando sonhava. E se, uma noite, ela se deparasse com outra camponesa na cama, que não ela...? E, o que mais lhe doía, ela mesma não sonhava. Nem para dentro de si mesma, e muito menos para fora. E, escondendo as lágrimas raivosas que teimavam em escapar de seus olhos escuros, ela via o marido sair para o trabalho assoviando, esticando cada músculo de seu corpo como se aquela fosse a primeira vez que o utilizasse, um sorriso colorido estampando-lhe a cara. Esperava que ele virasse ao terceiro juá à direita e voltava para debaixo das cobertas, sentindo-se vazia, velha, videira morta no tempo e no espaço.

Mas ela não precisou compartilhar seu amargor com o marido. Em pouco tempo, ele percebeu o vazio nos olhos da mulher, sua falta de desejo por ele e de vitalidade por si mesma. Ela havia se tornado uma árvore seca e sem brotos, no meio da floresta. Mais uma árvore muda e cega.

E então ela lhe contou que ele se transformava nas coisas com as quais sonhava. E confessou ter medo daquilo, quase asco. O lenhador baixou os olhos e suspirou, repleto de resignação e frustração. Ela fora um dia tão linda, risonha e carinhosa, ou era apenas sua imaginação pregando-lhe uma peça? Além do mais, era filha de um mercador, uma camponesa de certa posição social. E, em três anos, eles ainda não haviam gerado nenhum filho para dar continuidade a seu tronco. Algo havia de ser feito. Ou, do contrário, o que ele diria aos primos e irmãos? E ela, às comadres e cunhadas?

Foram então, juntos, ao médico do vilarejo, um velho de barbas e cabelos brancos e compridos, e um olho leitoso pela catarata. Ele não parecia olhar para o casal, mas farejá-lo, com seu nariz bulboso que ostentava, orgulhoso, uma verruga marrom na ponta. Ouviu as queixas da mulher atentamente, balançando a cabeça de um lado para o outro de quando em vez. Quis saber a opinião do lenhador, mas este preferiu guardar silêncio e manter os olhos fixos nos potes de vidro coloridos que o velho tinha espalhado pela cabana. Eles continham todo tipo de substâncias: líquidos amarelados, breu, resinas de aroma fortíssimo, raízes que o lenhador desconhecia completamente.

O velho médico olhou-os com seus olhos brancos e farejou-os uma última vez. A única pergunta que fez, antes de se dirigir a uma estante bem aos fundos da cabana foi: “Então, vocês querem permanecer juntos?”. Nenhum deles disse que sim, nem que não. Apenas menearam a cabeça, o que velho não viu, pois estava de costas para os dois.

Um minuto depois, ele voltou da estante com um vidro redondo, cor de âmbar, cheio de umas pílulas azuis e translúcidas. Quando o lenhador observou o conteúdo mais atentamente, notou que cada pílula era recheada de um vapor, tal qual fumaça ou nevoeiro, que ficava pairando em espiral dentro da pílula. “Toma, lenhador. São tuas. Hás de tomar uma destas a cada noite, antes de te deitares”, o velho disse, sem olhar diretamente para nenhum deles. “E o que acontecerá quando meu marido as tomar, Senhor?”, a esposa perguntou, já possessa de ansiedade, curiosidade e esperança. Talvez.

O velho suspirou. Pegou as mãos da mulher e, em seguida, segurou o lenhador pelos ombros. Agora, olhava fixo para o chão de terra batida de sua casa. “Os sonhos não são o problema? Então, teu marido não mais sonhará.”. E a esposa não pôde conter um gritinho agudo de vitória, alívio, quase vingança. Aquele, talvez, tenha sido um momento decisivo para que o lenhador percebesse que não passava de mais um membro de iguais, mais um daqueles pequenos arbustos espalhados pela floresta e que, nem mesmo aos olhos mais experientes de um dos seus, destacava-se.

Juntos, a esposa e o marido seguiram para casa, sob a luz amarelada e cálida do poente. O lenhador sentia a mão suada da mulher agarrada à sua e, por mais que pusesse sua cabeça para pensar e seu coração para bater, realmente não conseguia compreender como ela podia ter tanta alegria guardada dentro de si, para demonstrá-la agora, se houvera sido tão triste durante tanto tempo.

Naquela primeira noite, a sopa foi mais quente e temperada, e havia velas sobre a mesa de jacarandá. A mulher, mesmo ainda insone, conversou com o lenhador como há muito não o fazia. Acabaram a refeição e ela mesma colocou o pote de vidro cor de âmbar a sua frente. O homem tirou de lá uma daquelas pílulas misteriosas, perguntando-se se nelas poderia residir seu destino. Mas desconhecia a resposta. Sentia-se cansado, podado até a parte mais profunda de sua alma. Entretanto, tudo aquilo era em prol de algo maior do que ele; a continuidade da família, a manutenção de bons laços de convivência com o sogro, um fim aos falatórios que já varriam o vilarejo. Com o resto de água de seu copo, tomou a pílula em um só gole. Ela tinha gosto de vazio.

E, naquela noite, a esposa dormiu tranqüila, ainda na parte mais distante da cama, como havia se habituado, mas sem pânico a afligi-la porque, em momento algum, seu marido se transformou em qualquer coisa diferente do lenhador de braços e pernas compridos, cabelo vermelho e barba farta que era. Ele não tivera um único sonho sequer. Muito pelo contrário, seu sono fora negro como a mata mais fechada em dia sem luar.

Naquela manhã, o lenhador se sentia cansado e abatido, e seus companheiros, reparando-lhe a mudança de comportamento, perguntaram se ele tinha passado a noite em claro. Não, ao contrário. Dormira como uma pedra. Mas não como uma árvore...

No segundo dia de sono farto e nenhum sonho, o marido já apresentava olheiras escuras sob os olhos. Seus braços mal conseguiam levantar o machado para rachar a lenha. Até seu apetite desaparecera por completo.

Em casa, a mulher voltou a cuidar das galinhas e dos porcos, e ordenhou a vaca. Considerou até a possibilidade de comprar uma cabra, caso tivesse um bebê e pudesse também alimentá-lo com esse leite. Ela cantarolava enquanto o marido emudecia a cada dia. As poucas esposas que, observando as mudanças naquela casa, fossem corajosas ou estúpidas o bastante para tentar aconselhar a mulher, eram imediatamente postas para fora da propriedade. Mas saltava aos olhos o descompasso daquele casal, o mesmo de antes, ainda mais triste agora porque um deles estava coscientemente feliz.

No terceiro dia, o lenhador sentiu que sua língua colava-se ao céu da boca, sem saliva. Era como se ele, por inteiro, não tivesse seiva alguma a dar-lhe vida e movimento. Naquela manhã, a mulher teve que pô-lo para fora da cama aos gritos, puxando-o com os próprios braços. Na clareira da floresta, tudo o que ele conseguiu fazer, enquanto seus tios, irmãos e primos lenhavam, foi se sentar a uma raiz, encostar a cabeça no tronco do ipê e, pela primeira vez em sua vida, sentir-se miserável por ser um lenhador sem sonhos, sem ambições, sem questionamentos.

No quarto dia, ele simplesmente não conseguiu levantar-se da cama. Era como se cada osso de seu corpo estivesse enrijecido, feito um tronco após uma queimada cruel. Ele sentia seus músculos sem tônus algum, amolecidos e murchos, feito folhas caídas para adubar o solo.

Demorou muito pouco para a mulher do lenhador se enfurecer com aquela situação. O marido não trabalhava, não falava, não comia e não tentava dar-lhe o filho de que a comunidade precisava. O falatório no vilarejo, dessa maneira, não tardaria a começar. O marido fazia um esforço imenso para levantar os olhos para o rosto da mulher, mas nada saía de sua boca, nenhuma palavra. Sua mente estava oca, vazia como troncos de aveleira que serviam de moradia para esquilos.

Ele estendeu a mão emagrecida para o pote de pílulas que ficava sobre a mesa e balançou a cabeça, num sinal negativo. A mulher estatelou os olhos, suas pupilas dilataram-se de ódio e seu grito preencheu cada espaço vazio daquela casa: “Não! Jamais quero que sonhes novamente. Jamais me deitarei contigo, a te transformares nas coisas mais absurdas desse mundo! Quero uma vida normal, tu não queres também?”.

Sim, ele queria. E assim o fez. Juntou suas poucas roupas num bornal velho, o antigo machado que havia herdado de seu pai, deu uma última olhada na casa, na propriedade e na criação, olhou suas mulher nos olhos e rumou estrada a fora, para longe da floresta, para um caminho desconhecido, mas certamente não mais desconhecido e sem sentido do que sua vida havia se tornado. Antes de virar a última curva da estrada, deu uma olhada derradeira para a casa. Seu sogro, o marceneiro e antigo comprador, já segurava a filha pelos ombros, o bigode preto muito bem aparado, as sobrancelhas cerradas em sinal de claro protesto. Aquela era sua deixa: não havia mais lugar para ele ali. Não com seus sonhos e sua estranha e louca maneira de sonhar. Não com as pílulas translúcidas recheadas de ar.

Dois

Sua primeira impressão do vilarejo, como morador, foi a de qualquer estrangeiro numa localidade distante e inóspita. Não, o vilarejo não era distante da mata, e sim, ele já havia estado tantas vezes naquele lugar... Mas, quando a realidade muda, o olhar muda, o sentido da pele muda e o local se transforma num universo completamente diferente.

A princípio, ele passou um bom tempo sem encontrar trabalho. Afinal, todos os lenhadores da região eram de sua família e já estavam estabelecidos na floresta e, além do mais, lenhar era tudo o que ele sabia fazer em sua vida. Nas primeiras semanas, ele comia o que velhas senhoras lhe doavam, bebia muito pouca água e sonhava todas as noites. Não era mais tão forte como outrora, mas recuperava aos poucos sua identidade, sua essência de sonhador. Mas agora, escaldado pelo assombro da mulher, tomava o cuidado de passar as noites num celeiro abandonado do vilarejo. Assim, ninguém o veria se transformar durante o sono.

E, na contramão do destino, algumas semanas depois, ele encontrou uma pequena propriedade onde se plantavam hortaliças, flores e mudas de pequenas árvores. O dono, um senhor calvo e de olhos macios, da cor de caramelo, não se opôs em empregar um antigo lenhador como agricultor. Assim, o lenhador, agora apenas mais um homem da cidade, passou a semear mudas de várias plantas, muitas das quais já conhecia, outras completamente novas para ele. Apaixonou-se pelo aroma do alecrim, pelo verde dos pés de alface, pelos pimentões que ele jamais imaginara que pudessem existir também em amarelo e vermelho, pelos girassóis e rosas do campo, pelo louro e pelo cheiro verde. Plantar, regar, deixar crescer e, delicadamente, colher, fazia-lhe sentir que podar árvores por tanto tempo fora, no mínimo, um contra-senso.

O nó dessa segunda história – pois sempre há de haver uma história dentro de outra e, com ela, mais nós, era que ali trabalhava também uma jovem loura, de cabelos lisos e compridos, que lhe chegavam à cintura, e olhos da cor do alecrim que ele aprendera a amar. Era esguia e frágil, e quase não falava. Ele ouvira sua voz apenas uma vez, quando ela lhe dissera: “Não regue tanto as hortaliças. Assim, elas não chegam a brotar”.

E o nó que lhe apertava a boca do estômago quando estavam juntos, na plantação, era o nó do amor, feito semente, começando a brotar em seu coração, tomando-lhe o território por completo. Não custou muito para ele passar a cortejá-la, colher as flores mais frescas para lhe presentear, acompanhá-la até a feira para expor as frutas e os legumes, caminhar com ela pelas ruelas enlameadas do vilarejo, assistir com ela ao por do sol. Mas, no entanto, respeitava sempre seu silêncio. Eram companheiros de poucas palavras e muitos gestos.

Num entardecer, ele a chamou para se sentar com ele à sombra de uma mangueira enorme, que ficava no topo de uma ladeira. Olhou para os galhos, o sol se escondendo por entre a folhagem espessa, refletindo no dourado bonito dos cabelos da moça. Ele não resistiu àquela brincadeira de luz nos fios sedosos e os tocou. A moça retraiu-se com medo, quase vergonha, embora tudo em seus olhos dissesse ao homem que sim, ela o desejava também. “Por que não?”, ele perguntou, sem mais uma palavra a acrescentar.

“Tu não me aceitarias”, ela respondeu, sua voz mais baixa que um murmúrio. “Eu não sou normal, entendes?”. A moça virou o rosto para ele, olhando-o direto nos olhos: “Eu sonho, lenhador. Eu sonho demais”. O coração daquele homem disparou, pulou três ou quatro batidas, e algo dentro dele pareceu efervescer, retumbar. Ele quis contar para ela que também sonhava demais, que também não era normal, mas, se já eram dois assim, talvez não fossem a aberração que se consideravam.

Ele tomou-lhe as mãos entre as suas, ajudou-a a se levantar. Seus braços compridos envolveram todo o corpo da moça, e ela tremeu feito uma vara verde. Beijou-lhe primeiro as pálpebras, em seguida cada uma de suas bochechas macias, a ponta do nariz aquilino e, por último, selou-lhe os lábios rosados num beijo que mais parecia o leve roçar do vento de primavera no bambuzal. “Vem dormir comigo essa noite, Estela. Sei que também te escondes em algum celeiro da cidade. Vem passar a noite comigo para veres que não és a única a sonhar neste mundo pequeno que conhecemos.”

Ela relutou, mas por pouco tempo. A curiosidade juvenil, a promessa de um sonho, tudo isso falou-lhe mais alto à alma e ela se foi com ele. Para a primeira noite.

Três

E, naquela noite, no celeiro abandonado do vilarejo, Carvalho e Estela deitaram-se lado a lado, como há muito não faziam em suas vidas de sonhadores rejeitados. Conta-se, até hoje na vila, que um menino que passava por ali, um diabrete de canelas finas e língua comprida, resolveu espiar por uma fresta da parede de madeira. E o que ele viu foi mágica, um sonho em tempo real. Porque, quando em seu sono profundo, Carvalho sonhava ser uma xícara, Estela transforma-se num pires enorme a contê-lo. Quando ele era uma bota de couro, ela virava um pé a calçá-lo e se aquecer. Ao se transformar em grossos galhos de ipê, ela logo desabrochava em flores amarelas a cobrir-lhe a pele. Quando ele era o jarro, ela era o suco a preenchê-lo. Carvalho se transformava em mala forrada de feltro, e ela, em mudas de roupa recém-lavadas. Se ele era a mesinha de centro, ela era o bibelô de cristal a enfeitá-lo. E, quando ele sonhava com girassóis, ela ora sonhava com borboletas azuis a rodeá-lo, ora com abelhas a colher-lhe o pólen. Tudo para semearem, juntos, mais uma noite de sonhos, realidade e compasso.


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