27 de setembro de 2010

Ao Menestrel, Sem Rótulos

Justiça seja feita, eu devo os royalties de chamá-lo de “Montenegrume” ao Lucas, pai do meu filho. O apelido surgiu quando ele teve contato, se não diário, a cada três dias no mínimo, com as letras e arranjos melancólicos do cantor e, como era um bom trocadilho, acabou pegando. Mas o fato é que o Oswaldo Montenegro, ou melhor, as músicas dele, fazem parte da minha vida há mais de 15 anos. Eu devia ter uns doze anos quando – imagine você – peguei um disco do barbudo na única locadora de CD’s da cidade. Naquela época não havia internet, 4-Shared, MP3, pirataria ou nada dessas comodidades altamente antiéticas para as gravadoras e os artistas (com exceção do Lobão, que promove a pirataria áudio-visual na tora). Eu vivia com o CD em casa, gastando os tubos com locações. A primeira música que ouvi dele foi “História Estranha” que, anos depois, eu viria saber que é de um musical chamado “Léo e Bia”. Foi “paixão à primeira ouvida”. Eu alugava o tal CD tantas vezes, que o dono da locadora acabou se apiedando daquela pré-adolescente esquisita e o vendeu para mim. Até hoje o álbum, “Vida de Artista”, está comigo. E, até hoje, “História Estranha” é uma das minhas preferidas.

Minha afinidade com o Montenegrume se deve a muitos fatores, dentre eles o fato de o próprio se autodenominar “flor de obsessão, que a vida plantou”. Depois vêm as letras melancólicas, da época dos Grandes Festivais da década de 80, letras que eu ouço e penso assim: “Puxa, por que não fui eu que escrevi isso?”. E, claro, os violões, violas e a flauta doce da Madalena Salles, companheira dele desde os tempos em Brasília.

O Montenegro é o mesmo hippie sujo de 30 anos atrás, que é o tempo que ele tem de carreira. Mesmo corte de cabelo, mesma barba, mesmo jeans e camiseta preta, a mesma Coca-Cola durante os shows e um charuto fedorento pra burro. Show do Montenegrume? Pode apostar que vai tocar “Bandolins”, “Intuição” e “Lua e Flor” – que foi tema do personagem Sassá Mutema, que o Lima Duarte interpretava numa novela em que ele, um capiau a dar com pau, no sentido bíblico, era apaixonado pela professora da cidade. Essa você deve conhecer. Certas coisas não mudam nunca. Oswaldo Montenegro é uma delas.

Talvez por isso, um cara chamado Bussunda, que já morreu há um tempo e fazia o programa “Casseta e Planeta”, tenha resolvido apelidar o Oswaldo de chato. Desde então, admitir ser fã do Montenegro equivale, numa escala talvez um pouco menor, a admitir ser membro da Ku Klux Klan ou dos Neonazistas Redskins da zona norte paulistana. E isso, sim, é que é muito chato. Porque eu aposto meu mindinho que nenhum daqueles caras do “Casseta” jamais ouviu uma música do Oswaldo. Na falta de uma figura política evidente na época, eles acharam por bem encarnar um cantor nacional. Sobrou para o Montenegrume. Azar de nós, fãs, porque ele não deu à mínima, e ainda fez uma música de rolar de rir, chamada “O Chato”.

Mas, pensando bem, por que azar de nós, fãs? Porque se você quiser ser “cool” e bancar o descolado no último grau, é só ter resposta pronta, na ponta da língua, para a fatídica pergunta: “E aí? Que tipo de música você curte?”. Então, meu amigo, você estufa o peito, dá uma baforada no seu Dunhill e responde, na lata, com sotaque de quem fez dez anos de Cultura Inglesa: “Pink Floyd, The Cure, Rolling Stones, Men at Work, Metallica, The Beatles...” Uau. Se você citar que curte os Beatles de montão, pode crer, vai sair super bem na fita. É incrível. Parece até mágica.

Agora, imagine um outro cenário. Você, seu interlocutor e a mesma perguntinha cretina. Daí você faz aquela cara de Sassá Mutema, dá uma baforada ou não no seu Free e responde de peito aberto: “Puxa, cara, eu adoro o Montenegro”. E, se for fã de carteirinha mesmo, ainda cantarola um “como fosse um par, que nessa valsa triste, se desenvolvesse ao som dos bandolins, lembra?”. Bem, isso já me aconteceu algumas vezes e, acredite, foi exatamente proporcional ao número de paqueras e/ou amigos que eu perdi. É incrível. Parece até macumba.

Ser descolado ou não ser descolado, eis a questão. Isso não acontece muito com literatura. Ao contrário, se numa rodinha de pseudo-intelectuais você disser que seu livro de cabeceira é o dificílimo “Grande Sertão: Veredas”, ou qualquer exemplar do Saramago, pronto. A coisa, aqui, é o inverso: quanto mais hermético o autor, quanto mais grosso o livro e quanto mais chata a história – pronto, falei – mais popular você é entre os “amigos”. Com filme é do mesmo jeito. Quer abafar? Declare que a-do-ra Almodóvar, David Lean e/ou Lars Von Trier e... Pluft! Você acabou de entrar para o rol dos “entendedores de cinema”. Agora, se você estiver num dia péssimo, super a fim de solidão e quiser perder sua paquera, é só responder que se amarra na trilogia do “Missão Impossível” e nos não sei mais quantos “Velozes e Furiosos”.

Com música é que a coisa se inverte. Para ser popular e aceito nesse processo dificílimo que é a socialização, você PRECISA curtir rock da antiga, saber o nome das bandas, de preferência inglesas, e as categorias às quais elas se encaixam no período histórico musical. Ai, que tédio... Se, por outro lado, você ousar pronunciar a blasfêmia “MPB”, danou-se. Vão achar que você gosta mesmo é de funk, pagode e sertanejo. A não ser que você queira pagar de fino e disser que tem toda a coletânea, original, do João Gilberto, e acha o máximo ele parar um show porque alguém fez “cof, cof” na platéia.

Sabe qual é o perigo da socialização? Os rótulos. Somos rotulados o tempo inteiro, às vezes percebemos e aceitamos isso, outras vezes nem notamos e, em alguns casos, nos recusamos a virar garrafa de uísque. Rodinha de amigos? Cerveja. Música boa? Rock inglês. Virgindade? Hã? “Cuma”? Daí que, se você não gostar de cevada com álcool e preferir água tônica ou café, fica difícil acompanhar uma roda de “amigos” até mais tarde do que onze da noite. E se assumir seu verdadeiro gosto musical, literário ou cinematográfico, corre o sério risco de ser zoado para o resto da sua vida.

Porque eu nunca admiti ser rotulada, acabei sendo taxada de anti-social, o que não deixa de ser um rótulo. Durante a adolescência, a fase em que normalmente se escolhe a “tribo” em que se vai entrar, eu não bebia, já escutava Montenegrume, música clássica e outras “chatices”, lia um bando de livros bizarros e curtia horrores passar as férias na roça. O que isso quer dizer? Suicídio social, claro. Eu, que sempre fui muito Charlie Brown, que puxa...

Hoje isso já não me faz queimar a mufa, como antigamente. Como eu disse, certas coisas não mudam nunca. Se alguém me faz as tais perguntas fatídicas: música, livro, filme – e há mais duas, que não mencionei, religião e política – depende muito do interlocutor e do meu grau de tolerância para responder a sério. Se o céu estiver azul – porque eu não sou da noite – e a companhia valer uma amizade, eu respondo claramente: “Música brasileira velha, filmes que já saíram de cartaz há décadas e romance histórico”. Não dá para entrar em detalhes numa primeira conversa, dá? Ah, sim, religião e política. Nessas, sou taxativa: eu só justifico meus votos porque sempre viajo em dia de eleição e, para mim, o ateu é tão religiosamente fanático quanto um protestante, já que ambos querem provar a existência ou a não existência do divino a todo custo. Só de pensar num papo desse grau, me dá uma preguiça indescritível.

Ninguém é uma ilha, é verdade. Então, há de se socializar sempre, mas rotular-se, jamais! (Tenho certeza de que o Che se revirou puto da vida em seu túmulo agora). Todo mundo é o que é, gosta do que gosta e deveria, assim penso, assumir essas posições. Eu posso começar: meu super herói favorito é o Clark Kent, não esse pseudo Kal-El de Smallville, mas o de Christopher Reeve, a paixão da minha vida. Tenho um Box com a coleção completa do Superman. Assisto de vez em quando. E ainda acho que, um dia, ele vai entrar pela janela e me levar para dar um passeio. Voando, é claro.

Não curto cerveja, mas sou viciada em Coca-Cola. Topo uma rodada de amigos, até gosto e preciso disso, mas quando a galera entrar no estágio “bêbado chato e/ou agressivo”, eu volto para casa para ler ou escrever. Gosto de muito filme velho, mas tem filme antigo que é tão chato que não dá nem para fingir e dizer que gosta. E Hollywood ainda produz muita coisa boa. O negócio do filme é muito simples: ele tem que atender ao propósito a que veio. Se for para ser um blockbuster com motocas alucinadas, que seja. Se for para ser uma coisa mais densa, para fritar os miolos da gente no Cine Mark, que seja. O que não desce é filme pretensioso, algo como um blockbuster para fritar os miolos da gente, entende?

A gente tem é que fugir dos rótulos, antes que eles virem tatuagem e a gente se esqueça de quem é e do que gosta realmente. Se para se ter amigos e ser descolado você tiver que fazer coisas das quais não gosta ou se anular por completo, veja a coisa por outro ângulo: esses não são amigos para você e nada lhe garante que o que eles fazem seja descolado. Você pode também optar por radicalizar. Ter um amigo só, publicar no jornal local que sua música favorita é “Nuvem de Lágrimas” e que João Gilberto é um mal-educado. Mas eu não daria esse conselho ao meu filho daqui a uns dez anos, então...

O negócio é ser mesmo o que se é, doa a quem doer. E o problema é que, na maioria das vezes, dói muito mais na gente do que nos outros e, por isso mesmo, acabamos usando fantasias, falsas personae para transitar em sociedade. Isso, sim, é chato. Hakuna Matata, companheiro. Ah! Já ia me esquecendo: adoro animações da Disney. E não, não curto “Os Besouros”. Pronto. Falei. E a minha fidelidade ao Montenegrume é canina; não tem jeito. Acabo sempre falando que sou fã dele até morrer. Se perder a paquera ou um amigo por isso, é porque nem um, nem outro valeriam à pena.


Um comentário:

  1. Revolução Autenticidade!!

    ____
    sobre o brog:
    eu gostei de tudo aqui.
    eu gosto muito da autora.
    e gosto mais ainda dessa sensação melancólica de ter um porto seguro e de saber algo da vida quando reconheço nesses textos uma Roberta de 15, 16 anos. me sinto tão próxima de vc de novo, que bom.

    tô tão grata a quem teve essa idéia de criar blog, poutz!

    bjo grandão

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