29 de março de 2011

obsolescer

"Sebastião Marat", por Vik Muniz

Não há prosa mais fácil, abnegada e revigorante do que o papo com um taxista. Fácil porque, no espaço confinado de um carro, é natural que um indivíduo puxe conversa com o outro; abnegada, pois é completamente desprovida de interesse retórico legítimo de ambas as partes; e revigorante porque, num trajeto delimitado entre dois pontos, você pode abordar praticamente qualquer assunto sem o peso da responsabilidade de um reencontro. A conversa de táxi é uma das poucas formas de colóquio que possui, obrigatoriamente, começo, meio e fim, sem pretensões filosóficas ou embates morais. Tudo começa com um aceno para o motorista. Os movimentos seguintes são automáticos: você entra no carro, diz "bom dia", "boa tarde" ou "boa noite" e informa o destino e a preferência da rota a seguir, hábito que, por sinal, é novidade na praça, garantem os motoristas no tom injuriado do padre que ouve sermão do fiel antes da missa.

O diálogo é conseqüência; normalmente o motorista começa a conversa. Em Belo Horizonte é comum quebrar o gelo, falando sobre o tempo, as nuvens que se acumulam sobre a Serra do Curral e como toda mineira dá, menos a loteria. No Rio de Janeiro fala-se de futebol, atos heróicos envolvendo o Choque de Ordem e a Parada Gay e como os flanelinhas infernizam a vida dos cidadãos motorizados. Em São Paulo até os taxistas fazem networking e, para variar, é sobre negócios e dinheiro que se dialoga. As outras capitais também têm taxistas e eles não perdem por esperar minha visita. Todo bom taxista tem sempre um caso para contar, uma piada de trinta segundos e um resumo explicativo da política local, além de ser um bom ouvinte, se o passageiro for um interlocutor participativo.

Claro que tudo isso é opinião minha. Deve haver muita gente que abomina trocar mais do que meia dúzia de palavras essenciais com um taxista. Eu, ao contrário, sou uma entusiasta do papo de táxi; com motoristas de praça já desabafei segredos que nem um analista seria capaz de ouvir e, deles, já ouvi histórias que valeriam uma antologia. Aliás, alguém já deve ter publicado algo parecido, provavelmente intitulado "Memórias de Adilson, o Rei da Barão de Mesquita", mas devo ter perdido a tarde de autógrafos na Travessa. Digressões e futuros-fracassos literários a parte, jogar conversa fiada fora com um taxista compensa os dez reais mínimos de uma corrida ligeira. Se você for do tipo ausente, fechado e monossilábico ou simplesmente não curtir trocar uma idéia de passageiro para motorista, vai pagar pela corrida com o sentimento cívico insuperável de serviço prestado com discrição e impessoalidade. Se for do tipo comunicativo e não fizer distinção de ouvinte, há de pagar a idêntica quantia e ter o mesmo sentimento urbanóide de serviço prestado, mas, no entremeio, vai se divertir.

Às vezes a prosa engrena de tal maneira que dá pena de chegar ao destino. Foi assim nesse sábado, entre a Gávea e o Leblon, doze reais e oitenta centavos - o chefe fez por doze - e um Santana 2000 com bancos de couro. Puxei o assunto; perguntei se procedia essa história de "fazer diferença" para o passageiro o fato de o taxista estar dirigindo um Santana. De acordo com a SMTR, Secretaria Municipal de Transportes da cidade do Rio de Janeiro, em publicação de janeiro desse ano, os três modelos mais utilizados pela categoria são o Meriva Joy, o Corsa Sedan e o Zafira, todos da Chevrolet.  Há dez anos, a mesma lista era encabeçada pelo Volkswagen Santana, seguido do Astra Sedan (Chevrolet) e do Palio Weekend (Fiat). Quando um modelo de carro "emplaca" como táxi, as revendedoras se preparam para uma queda natural nas vendas desse modelo como carro de passeio. É compreensível; se você vai investir num carro zero quilômetro que sai da concessionária com uma depreciação de mercado que pode chegar até 25% ao final do primeiro ano, é melhor que esse carro tenha um pouco da sua "personalidade" e não seja confundido com um táxi:


As fotos do blog "Bizarrices Automotivas", que você confere no site acima, são auto-explicativas com relação a isso.  O problema com o Santana é que, além de ter caído na antipatia do público como "táxi de rodoviária", agora se transformou numa espécie de "espanta-passageiro" para os taxistas que ainda não trocaram seus velhos sedans por carros mais atraentes, modernos, confortáveis e populares entre os clientes. Isso quem me contou foi o taxista da Gávea, credenciado há oito anos e dono de um Santana. O fenômeno aqui é de natureza sócio-cultural, e não financeira ou técnica. Para um taxista dono de um carro mecânica e visualmente conservado e com a manutenção em dia, dirigir um Santana ano 2000 e um Meriva Joy 2010 não faz diferença no retorno financeiro ao final do dia. O que afeta diretamente o lucro líquido de um taxista não é o modelo, nem o ano do carro que dirige, mas o número de corridas efetuadas menos os gastos com combustível, impostos, manutenção e a desvalorização do próprio carro no mercado.

Imagine que você tenha acabado de adquirir uma concessão da Prefeitura para atuar como taxista. Seu primeiro investimento de capital será no veículo, instrumento do seu trabalho. Se optar por comprar um carro zero, que tem o maior valor de depreciação de um bem no mercado, já sairá da concessionária com um prejuízo de até 20% no investimento inicial até o primeiro ano do carro, sem mencionar os gastos extras com seguro, impostos e regularização do automóvel. Por outro lado, se já tiver um carro regularizado ou resolver comprar um usado, que além de ser mais barato, tem valores de seguro e IPVA igualmente menores, seu investimento não sofrerá tanta desvalorização no mercado. Isso acontece porque a partir do quinto ano de uso do automóvel, a desvalorização sofre uma queda, a menos de 10% ao ano, cuja mola central é a alta demanda por veículos usados, graças aos preços mais acessíveis e à conseqüente valorização dos mesmos.

Agora imagine que você esteja na situação do taxista com quem conversei. Ele é dono de um Santana de ano 2000, em bom estado de conservação, regularizado e recém-vistoriado, exerce essa profissão há oito anos e, agora, vem perdendo passageiros porque, em suas palavras, "os clientes rejeitam Santana na praça". Ele admite que alguns colegas contribuem para a má fama do carro, circulando com o mínimo exigido pela SMTR em termos de documentação legal e pouca ou quase nenhuma manutenção mecânica. "Mas são poucos", afirma; carros nesse estado não passam pela vistoria anual do Detran e são rejeitados pelas Cooperativas e Associações. Molas saltando do estofamento, barulhos internos, ar condicionado funcionando mal - ou não funcionando de maneira alguma - escapamento estourado e bancos cedendo sob o peso dos passageiros são pré-requisitos para o chefe mudar de carro, qualquer que seja o carro, Santana ou não.

"Quando chove, passageiro não quer saber que carro você está dirigindo. Pode ser um Fusca ou uma Brasília caindo aos pedaços; debaixo d'água, qualquer carro tá valendo", contou-me o taxista dessa história. Ele foi obrigado a dispensar uma cliente de Ipanema semana passada. A mulher entrou e, ainda há quilômetros do destino, começou a fazer as seguintes perguntas retóricas: "Esse seu banco é meio baixo, não é?"; "Esse carro é ultrapassado, você não acha?"; "Bom mesmo é andar de Meriva". Meu amigo não pensou duas vezes; parou o Santana, pediu para a mulher descer, não cobrou a corrida e ainda se permitiu trocar alguns desaforos com a ex-passageira e recém-adquirida inimiga. Achei digno.

De acordo com o portal da Receita Federal na internet, "a depreciação de bens do ativo imobilizado corresponde à diminuição do valor dos elementos ali classificáveis, resultante do desgaste pelo uso, ação da natureza ou obsolescência normal". Define-se como obsoleto tudo que é ultrapassado, arcaico, antiquado e fora de moda. O Santana obsolesceu; ainda é um carro confiável, do tipo que, se bem cuidado, não deixa o motorista na mão. Foi tão popular há alguns anos que caiu no clichê e daí rolou ladeira abaixo no gosto e na simpatia do público. Ainda que, tecnicamente, possua uma baixa quota de depreciação no mercado, o carro virou um rótulo, uma metonímia: "santanão" é carro de taxista, de velho, de gente obsoleta como ele.

Meu pai começou a me ensinar a dirigir numa Caravan verde; eu tinha onze anos. Naquela época podia-se tudo, só não podia qualquer coisa. Um dia embaracei-me com as marchas, olhei para o câmbio e estourei um pneu no meio-fio. Então, passamos a praticar num Fusca, que era menor, mais fácil e mais barato. Aos 16 anos, ele me deixou dirigir seu Santana GLS champagne, em que ele e minha mãe sofreram um acidente que mudou o rumo de nossas vidas. Classificar os carros dessa forma também ficou obsoleto e GLS, hoje, aponta para a orientação sexual dos indivíduos. Depois deste, houve outros Santanas, de cores, anos e momentos de vida diferentes. Eu tive dois. O primeiro, azul, teve um fim trágico num outro acidente em que um amigo da família dirigia. O outro, verde, foi furtado três vezes; recuperei-o nas primeiras duas ocasiões. Na terceira, o ladrão levou a melhor. Depois disso, minha mãe ficou cheia de melindres com o carro e disse que ele era "amaldiçoado" na família. Sua superstição não impediu que meu pai comprasse outro Santana, em 2000; não vende nem troca por carro algum e não dá a mínima se há modelos mais modernos e arrojados. Porque meu pai, como o carro e a época em que se podia tudo, também é obsoleto. E é bom que o seja porque, dessa forma, ecoa lembranças de um tempo que ficou nas brumas, preenchendo espaços vazios do presente.

A palavra "obsoleto" casa com a palavra "nostalgia". É nostálgico quem sente saudades de algo relacionado ao passado, ou seja, do obsoleto. Mas o passado, por definição e lógica, não existe. O que subsiste são os laços tênues em que nos agarramos para não dar um adeus final ao tempo que amamos e que, subjetivamente, ainda vive na memória. Esta é a metafísica da obsolescência. Tudo que existe há de cair em desuso e, posteriormente, no esquecimento: carros, computadores, fotografias, cartas manuscritas, livros, roupas, maneirismos, canções, profissões, pessoas, conceitos. Temos plena consciência da fugacidade do tempo e da inexorável superação de um elemento sobre outro, mas não podemos evitar o olhar melancólico para trás. Memória e nostalgia andam de mãos dadas, com a sombra da obsolescência a lhes obscurecer o caminho. Frágeis são os laços do passado, mas eles existem e são perpetuados por escolhas que tomamos, palavras que dizemos, músicas que ouvimos, roupas que vestimos, ideais que defendemos, carros que dirigimos.

Tem gente que nasce obsoleto e vive com uma comichão incômoda de não pertencer, não progredir, não se adequar. Meu amigo taxista comprou um Meriva. O carro novo chega em duas semanas. Ele se cansou de perder clientes que torcem o nariz para o seu Santana amarelo e antiquado, principalmente a galera mais jovem, exigente e moderna. Disse para ele que eu vou na contramão desses: quando preciso tomar um táxi, procuro um Santana. O taxista não verteu lágrimas quando ouviu a minha declaração porque, afinal, é um taxista carioca, "mermão", tá pensando o que? Quando a corrida acabou, ele olhou pelo retrovisor, encontrou os meus olhos e segredou: "tô vendendo meu Santana com o coração partido". Para negar a obsolescência das coisas, das pessoas e da vida, prefiro o "santanão" metonímico que, diferentemente de qualquer outro carro, vem com lembranças intransferíveis de fábrica.

3 comentários:

  1. Alberto Lacerda29.3.11

    Seus textos são sempre emocionantes,mas esse, especialmente,mexeu mais comigo.Em 1984 quando o Santana foi lançado,colocaram "um" em exposição aqui na minha cidade, eu era uma criança ainda,e fiquei apaixonado pelo carro.Quando adulto realizei meu sonho de criança.Mas como voce mesma disse,ficou obsoleto, e tive que troca-lo.Mas depois dele já tive um Bora e atualmente um Passat importado.Acho que o sonho daquele menino de 1984 ainda vive, vc não acha?

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  2. Sonho é uma coisa que não morre, Alberto. A gente tenta enterrar, a coisa fica soterrada pelos entulhos do que pensamos ser adequado à realidade, mas, quando nos permitimos espiar por uma fresta da janela, ele acaba emergindo, rebrotando, florescendo a mente do sonhador. Em 1984 eu tinha seis anos e muitos dos meus sonhos então ainda são os mesmos; a questão não é saber se eles vivem ou não, mas decidir continuar insistindo neles ou fingir-se mudo. Que bom que você comenta aqui. Obrigadíssima! Abraço do tamanho do Passat (...rs).

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  3. O táxi da foto não foi o que eu peguei.

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