28 de abril de 2011

sobre odisséias e pontes

Na RJ-102, no trecho de estrada que liga a cidade de Cabo Frio ao município vizinho de Arraial do Cabo, há uma ponte de ferro e cimento, abandonada sobre uma colina à direita de quem chega em Arraial. Não é tanto o estado desamparado da estrutura que prende o olhar do motorista, nem o céu chapado e sem nuvens, de um anil ofuscante. O que merece atenção, aqui, é um clichê que toma forma, ganha contornos reais e salta aos olhos, literalmente: uma ponte que liga o nada a lugar nenhum.


Qualquer metáfora sugestionada pela idéia de uma ponte como a de Arraial do Cabo é alusiva e trivial demais para que se divague sobre o tema. Entretanto, contra fatos não há argumentos; um dia essa ponte uniu um lugar específico a outro, quando a rodovia principal não existia e o mato ainda não tinha tomado conta do local. De certo os veranistas não perdem tempo procurando saber porque a Prefeitura da cidade não demoliu a ponte por completo, ou a razão pela qual começara a demoli-la. É muito provável que, diante da inutilidade de uma ponte, o projeto inicial tenha sido apagá-la do mapa, mas então as verbas do município escassearam e resolveram deixar a obra inacabada. De qualquer forma, é uma visão pitoresca em meio à paisagem litorânea da Região dos Lagos; uma ponte nunca deixa de ser uma ponte, ainda que desprovida de sua finalidade principal.

Os povos de origem anglo-saxã devem gostar muito de pontes porque, em sua língua, o vocábulo não apresenta apenas a função de substantivo, como em português, mas também a de verbo, com o significado de "construir uma ponte sobre algo". Pode-se dizer em inglês, por exemplo, que "the valley was originally bridged by the Roman founders". Esse é o tipo de especificidade lingüística da qual apenas povos sucintos podem usufruir. Brasileiros, prolixos em sua descendência, precisam do dobro de palavras para dizer a mesma coisa: "o vale foi originalmente fundado por romanos, que construíram uma ponte sobre ele".

Os falantes de língua inglesa possuem ditados curiosos com essa palavra. Veja "bridge the gap", por exemplo. Aqui, "bridge" exerce a função de verbo e significa, ao pé da letra, "construir uma ponte sobre um espaço". Ocorre que tradução literal é sempre uma temeridade lingüística e, por isso, o intérprete precisa de bom senso para não fazer feio numa conferência. Imagine que você foi convidado para a festa de 15 anos de uma prima no interior de Goiás. Lá, acomoda-se entre a sua tia-avó de oitenta e três anos e um amigo de infância, que veio para lhe fazer companhia. Entre vocês existe um "generation gap", um abismo de diferença de idades que certamente causará desconforto na comunicação. Para evitar um silêncio sepulcral à mesa e garantir uma conversa razoável, você deverá "bridge the generation gap", ou seja, construir uma ponte que nivele as diferenças e ligue você e seu amigo, através do oceano do tempo, à sua tia-avó sorridente e já um pouco surda. Lingüistas, poetas e engenheiros gostam desse tipo de ditado, cada um por razões específicas e compreensíveis.

Outro exemplo é a expressão "burn your bridges", que significa "queimar as suas pontes". O conceito imagético é interessante: você utiliza uma ponte para chegar ao outro lado e a destrói em seguida, o que o impossibilita de voltar. Imagine que você pretende pedir demissão do seu emprego; se tiver um bom amigo americano, é provável que ele o aconselhe a pensar bem antes de se demitir, já que você pode acabar "queimando as suas pontes", ou seja, tomando uma atitude irreversível. E ninguém quer ter, na vida real, uma ponte destruída e inútil como a de Arraial do Cabo; pontes são, por definição, vias de acesso, e não portas lacradas ou estradas inacabadas.

Ocorre que atravessar pontes é algo perigoso; pode-se esquecer o caminho de volta e perder-se no vão de universos intercambiáveis. É possível transitar por ambientes diversos entre si e preservar a identidade e uma trajetória única porque existem pontes para conectar esses mundos. O sujeito nasce numa cidade; seus pais mudam-se algumas vezes; ele freqüenta diferentes escolas; decide se mudar para uma cidade maior; começa uma Faculdade; desiste; faz um curso técnico; arranja um emprego; é demitido; arranja outro; demiti-se; abre o próprio negócio; dá com os burros n'água; volta ao primeiro emprego; casa-se; divorcia-se; casa-se novamente; tem filhos; volta à cidade natal; viaja para o exterior; decepciona-se; muda para o campo; abre uma loja de artesanato; faz terapia; apaixona-se; toma bondes; perde outros. Cada incursão por um território inexplorado é uma ponte que se cruza. Cabe ao viajante decidir "queimá-la" ou manter o portal de conexão aberto.

Reencontrei uma amiga de infância no feriado de Páscoa. Não a via há quase vinte anos. Confesso que o mérito foi dela, que me telefonou e não me permitiu evitar o encontro. Há pessoas que mantém uma relação sadomasoquista com o passado; ao mesmo tempo em que o celebram e mitigam, temem resgatá-lo. Se você queimar as pontes que o conduzem de um universo para o outro, pagará um preço alto por isso. Na verdade, estará em dívida com o seu presente, como se houvesse um pedágio na entrada de cada ponte e você nunca possuísse a quantia suficiente para o caminho de volta. O problema é que todas as pontes queimadas voltam para assombrar o viajante, tal como o passado, fazendo as vezes do condutor, e não do passageiro.

Milan Kundera fala sobre pontes de mão-dupla no livro "A Ignorância", de 2000. Os personagens Josef e Irena se reencontram por acaso após vinte anos, numa viagem de regresso ao seu país natal. Vislumbram, então, a possibilidade de retomar uma história de amor, interrompida há duas décadas. Tudo é estranhamente familiar e, ainda assim, completamente estrangeiro; o "gap" dos anos e da distância é abissal demais para que consigam construir uma ponte que os una à pátria, um ao outro e a si mesmos. "A Ignorância" é, sobretudo, um romance sobre memória e anoranza – palavra espanhola que compartilha a raiz etimológica latina do verbo ignorare – e que é utilizada como equivalente à saudade.

No livro, a nostalgia é causada por reminiscências do passado, onde o pathos (sofrimento) provém da ignorância: o ser amado e a pátria-mãe estão distantes e os personagens ignoram o que acontece com eles. Sofrem porque desconhecem o presente; tornam-se nostálgicos porque é no passado que ainda encontram eco daquilo que já não existe mais. No entanto, Josef e Irena não queimaram suas pontes; a eles é permitido pagar a taxa de pedágio e fazer o caminho de volta. À imagem de Ulisses, que abdica do presente idílico com Calipso em nome da lembrança vaga de um amor ideal por Penélope, os personagens de Kundera também ingressam numa odisséia de retorno, onde imperam frustração e vulnerabilidade. Josef e Irena, tal como o Odisseu de Homero, agarram-se a lembranças tão voláteis e fugazes quanto miragens.

Eu jamais deveria ter lido esse livro. Seria injusto e improvável culpar o escritor tcheco pelo hábito tolo que adquiri de interditar as pontes e fechar as cancelas da minha vida. Se "A Ignorância" não representou motivo suficiente para isso, pelo menos corroborou o meu temor de cruzar uma ponte no sentido contrário, de percorrer o caminho de volta a um universo envolto em brumas, outrora abandonado. Ulisses não deveria ter retornado a Ítaca; afinal, o único a reconhecê-lo após uma eternidade de ausência foi Argos, o seu cão fiel, que morreu logo depois de lamber a mão do dono. Irena e Josef não deveriam ter retornado à República Tcheca, nem poderiam ter tentado resgatar um amor soterrado há vinte anos. Nenhum deles foi capaz de "brigde the gap" para cruzar o precipício que o tempo e a distância cavam no peito e na memória. No retorno, a Ítaca idealizada por Ulisses era-lhe tão inóspita e estrangeira quanto a paixão e a Tchecoslováquia revisitadas pelos personagens de Kundera. Partir é difícil; mas fazer o caminho de volta é mais perigoso.

A nostalgia é minha velha companheira; abraço-a de peito aberto. Cruzar uma ponte, olhar para trás e espiar o outro lado de longe é confortável. À distância o passado é sempre suavizado, envelopado por uma aura de empatia e glamour que o presente jamais poderia ter. De longe, o sofrimento adquire proporções heróicas e românticas; as guerras deixam de ser catastróficas barbáries para virar História; a dor é bela; a alegria é mais vivaz; as paixões, mais reais. Em sépia, o bom parece melhor e o ruim, não tão mau assim. Então, não satisfeita com a fotografia do passado, a nostalgia invade-nos os sentidos e infla-nos a alma de desejo de retornar, revisitar, rever. E aí... Pluft! Desfazem-se a magia, a beleza e o élan que apenas a distância do passado é capaz de imprimir às lembranças.

A imagem da ponte abandonada na RJ-102, a caminho de Arraial do Cabo, ainda me assombra. Sou uma entusiasta de pontes, tanto no sentido literal quanto no figurado. Sem elas, distâncias aparentemente intransponíveis e universos em princípio paralelos jamais se uniriam. Cruzá-las já é um desafio considerável para mim e talvez por essa razão eu as queime em seguida. Mas, sobretudo, é o amor à nostalgia em si mesma, mais do que ao próprio passado, que me faz temer atravessá-las de volta. Olhar de longe e mitigar o pretérito não faz mal; mas retornar a ele com as mesmas expectativas de outrora pode dar muito errado. Talvez o prefeito de Arraial pense dessa forma e, por isso, tenha demolido a ponte pela metade, unindo um trecho desolado de mato ao espaço vazio. Assim, ninguém mais consegue cruzá-la; nem na ida e muito menos na volta.

27 de abril de 2011

da páscoa

O texto a seguir prescreveu. Comecei a escrever antes do feriado, fechei para balanço na crença de que renderia algo mais e, no entanto, rolou abandonado pelo acostamento na estrada. Ao menos fica aqui o registro de um pensamento, ainda que natimorto, sobre o domingo dos chocolates. 

Hoje acordei meio pagã. Pagã e soturna. Deve ser a aproximação da Páscoa, que faz nascer em mim desejos de embrenhar mata adentro para espiar a chegada da estação da fertilidade, embora o outono esteja batendo às portas tupiniquins. Meu filho de quatro anos pinta ovos de isopor no jardim de infância; usa tintas guache vermelha, azul, amarela e lilás, que acredita serem as preferidas do coelhinho, "de olhos vermelhos e pelo macio". A prática ancestral de pintar ovos de lebres, e não os de coelhos fêmeas, galinhas, codornas e isopor, foi convenientemente substituída pelas guloseimas de cacau, que vêm não apenas no formato de ovos, mas de corações, colombas, anjos e os indefectíveis roedores peludos. Não seria conveniente a adultos manchar os dedos de tinta e bancar os anti-imperialistas quando é tão mais prático comprar uma caixa de língua de gato na Kopenhagen.

Enquanto isso, no mundo encantado da pré-escola, a criançada se diverte com os pincéis, marcando os ovos de mentira com a sua obra de arte incipiente. O feriado cristão do domingo de Páscoa e a ressurreição do nazareno não atuam efetivamente na vida dos pagãos, a não ser que haja um feriado prolongado e a palavra "viagem" venha encabeçar prontamente o seu léxico; ovos de chocolate são tão pouco práticos para comer como o é uma manga para chupar; e, ademais, não é o desejo de ninguém rechear suas células adiposas com as calorias extras do açúcar refinado e da gordura hidrogenada do chocolate. Se estes motivos não são suficientes para acampar na Floresta da Tijuca, fingir-se de nórdico e celebrar o festival de Eostre, ao menos bastam para que eu prefira ovos pintados à guache; neles, ao menos, há pessoalidade.   

16 de abril de 2011

ah, o tempo...



Há 14 anos, na montanhosa cidade de Belo Horizonte, conheci uma garota que viria a ser uma grande amiga, talvez a única que me conheça tanto a ponto de rir e chorar comigo e, ainda assim, cobrir-me de sermões. Martha usa o mesmo corte de cabelo até hoje, caindo-lhe pelos ombros numa cascata de mogno natural. Também manteve os mesmos princípios e, ainda que tenha viajado pelo mundo e conhecido o melhor e o pior dele, ela nos revela o mesmo sorriso, a mesma risada irônica, o mesmo sotaque mineiro. Enquanto eu tingia os cabelos de loiro, cobre e negro, subia e descia a Avenida do Contorno como numa montanha-russa e incorria em erros banais, Martha representava constância e segurança. Quando pareadas, sou maior que ela (Martha é do tipo mignon, um filé, como diria o seu noivo italiano). Mas porque tamanho não conta, ainda que com pernas mais curtas, é Martha a adulta entre nós, a capricorniana racional, que utiliza o bom senso para tomar suas decisões e pensa mil e quinhentas vezes antes de pular.

Há cinco anos escrevi-lhe uma carta e postei-a no Orkut, a extinta rede social para a qual, à propósito, entrei por convite de Martha. O depoimento, como o chamávamos então, jazia na página azul-calcinha do perfil-fantasma da minha amiga, que trabalhava três turnos por dia, viajava para a Rússia, estudava aos sábados e mal acessava o seu email, o que dirá um site com nome de Danoninho. Há muito já havia perdido as esperanças de que ela me respondesse. Escritor órfão e/ou falido tem dessas coisas: dedica testamentos às pessoas que preza, rabisca bilhetes e cartas de amor, compõe emails elaborados, mas nem sempre, ou quase nunca, é correspondido. Hoje, cinco anos depois, Martha respondeu. E sua resposta foi ainda mais especial porque veio no envelope de uma mulher madura, que repensou a vida, sopesou valores, pingou os "is" e definiu a própria identidade. Ninguém mais poderia fazê-lo por ela, porque Martha é do tipo de gente que só segue caminhos por ela mesma traçados e remenda sonetos apenas por ela escritos. Abaixo, minha carta e, em seguida, a resposta de Martha. É bom saber que, na vida, algumas coisas mudam. Mas é ótimo ter certeza de que outras simplesmente permanecem as mesmas. 

"Lembro-me da primeira vez que vi Martha, há dez anos. Eu era só mais uma garota que acabara de se mudar para o pensionato da mãe dela que, sempre muito cortês, "convocou" a filhota para conhecer a nova moradora. Martha desceu as escadas com o cabelo molhado e solto, moletom azul e uma cara de sono inesquecível, de pouquíssimos amigos. Eu, que naquela época tinha certa vocação para "lobo solitário", logo me encantei por ela e sua reserva e discrição mineiras. Sou uma criatura bastante cética, mas, com relação à Martha, devo admitir: alguma conjunção cósmica ou uma carta escondida na manga dos deuses devem ter vindo à tona para que eu quisesse tanto aquela adolescente arrogante e calada na minha vida. Ao invés de fazer amizade com as outras moças que dividiam a casa comigo, eu passava a maior parte do tempo no andar de cima, ou melhor, no quarto da Martha, e com os seus pais e irmãos. No entanto, aceitava que eu entrasse em sua vida aos pontapés não por acaso.

Com sua sensibilidade trancada a sete chaves num coração que, já sabia ela, precisava ser protegido, logo percebeu que uma moça solitária como eu precisava de alguém forte e decidida como ela; além disso, acho que aos poucos fui mesmo "conquistando" Martha, apagando de sua alma cicatrizes deixadas por pessoas que ela julgava serem amigas; mostrando a ela o quanto confiava em seu caráter; contando-lhe todo e qualquer percalço da minha vida; ouvindo seus problemas e fazendo-a acreditar que, não, ela não era diferente, os outros é que eram muito iguais; penteando seus cabelos compridos antes que ela caísse no sono; indo com ela a bares e boates que eu odiava, só para fazê-la ter certeza de que aquilo simbolizava uma concessão à amiga que eu já prezava tanto; passando natais, anos-novos e carnavais sobrenaturais em lugares ainda mais alienígenas com ela; defendendo-a até as últimas conseqüências e, o mais importante, sempre abraçando-a apertado, mesmo quando ela se esquivava de mim.

Falando assim, até parece que era eu quem cedia sempre. Esta não poderia ser uma mentira mais injusta. Martha pulava comigo em cada abismo que, ela insistia, eu me "permita cair"; ouvia atenta às minhas elucubrações e, ao final, ponderava tudo, sempre me mostrando saídas que, sem ela, jamais encontraria; consertava minhas mancadas e me salvava de enrascadas em que nem meus pais topariam se meter; encapava meus cem mil livros com papel contact, ainda tendo que me ouvir perguntar, obsessivamente: "tem certeza que não tá dando bolha?". Martha esteve presente nas maiores encruzilhadas e decisões da minha vida: mudança de curso na Faculdade, inícios e términos de relacionamentos, entradas e saídas do mercado de trabalho, brigas com os pais, depressões, euforias loucas, batidas de carro, roubos de carro, gargalhadas alucinantes e lágrimas. Quantas lágrimas... Mesmo assim, com o passar dos anos, eu ainda nutria uma sensação estranha de que Martha era como a Lua para mim: sempre velando uma face, escondendo-se.

E, novamente, estava enganada. Porque eu sempre expressei todo pensamento e sentimento aos borbotões, achava que a sua reserva em relação ao mundo e a estranhos que pudessem feri-la se estendia a mim. O que levei dez anos para entender é que a Martha sempre se preservou, mas nunca se afastando; a diferença é que ela é mais discreta para mostrar os sentimentos, não faz tanto barulho quanto eu. E hoje as poucas reservas que ela ainda poderia ter caíram por terra. Com tanta distância a nos separar e reviravoltas da vida, Martha e eu ainda somos como irmãs. Consegui fazê-la acreditar que nem todo "forasteiro" chega para conquistar e, em seguida, desaparece ou puxa o seu tapete. No fundo, somos amigas de infância".
por Roberta Rohen, no falecido Orkut, há cinco anos.


β

"Umazinha que apareceu lá em casa, às 7:00 da matina, com a mãe a tiracolo. A anterior tinha ido embora aos prantos e às pressas por me roubar o namoradinho sem graça e de inteligência duvidosa. Esta tinha recomendação divina, fora indicação das freiras do Sacré-Coeur de Marie. Seria boa moça, com certeza. Eu com meu moletom azul, que depois foi dela e talvez ainda o tenha até hoje. Será? A simpatia com que as recebi foi a mesma que se recebe um ursinho de pelúcia no 12 de junho. Mas o sorriso amarelo apareceu na tentativa forçada de fazê-las acreditar que tirar alguém da cama na madrugada de um sábado era algo aceitável e quase prazeroso. Acho que foi daí que ela tirou a inspiração 'sorrisos amarelos'.

A visita se estendeu por um tour pelos cômodos da casa onde a candidata a hóspede pudesse familiarizar-se com os ambientes e conhecer as outras estudantes que dividiriam com ela os próximos meses. Eu, que naquela época já era convicta de que a solidão é caminho certeiro para a auto-realização e o sucesso deixei claro que ali não haveria brecha de entrada. Talvez por isso mesmo tenha causado tanta vontade por parte daquela de querer fazer-se notar.

A indiferença que lhe dedicara não tinha intenção de magoar. Apenas era recado de que a mim bastava o mesmo e tudo estaria resolvido com educados “bom dia”, “boa tarde”, “boa noite”. As estripulias dela também não me impressionavam como aos outros, apenas parecia a mim imaturidade pura, natural de uma adolescente de 18 anos, numa mente que pretendia fazer-se de adulta. A inteligência, porém, chamava a atenção. E tinha mais cultura que toda a fila de carinhas redondas e espinhentas juntas, elevada à quarta potência.

Acumulou algumas tentativas frustradas de aproximação, que lhe renderam, no máximo, pães de queijo quentinhos assados por minha mãe para o lanche da família. Por vezes cogitei que a presença constante se fazia mesmo pelos lanches. Fato que caiu por terra em pouco tempo, já que ela trazia das visitas aos pais, caixas de alimentos os mais variados, com produtos que não cabiam nos supermercados de qualquer família. Depois comecei a achar que era pela companhia, talvez saudade de casa ou até necessidade de participar da desordem e discursos confusos e pouco fundamentados – e por isso mesmo divertidos – próprios dos ambientes familiares. Isso eu poderia fazer. Emprestar-lhe a minha família, quando ela assim o desejasse, para passar o tempo, entre conversas jogadas fora, escárnio e pães de queijo.

A troca de indiferença por amizade aconteceu de graça, de uma forma pouco convencional, como era de se esperar. Vê-la sozinha, imersa em lágrimas e ensurdecida pela altura da música que saía dos alto-falantes do carrão quatro portas, zero quilômetro, que o pai lhe presenteara pela aprovação no vestibular de Engenharia Mecatrônica, me partiu o coração e me fez perceber que diante de mim havia apenas uma adolescente com medo de ser gente grande. A causa de tanto sofrimento era o espírito de escritora precoce e sentimental que já aflorara mesmo antes da vinda para Minas e que proporciona a estes enxergar dor onde ela não existe de fato. Ali tive a minha primeira aula de música. Depois vieram as aulas de literatura, cinema, psicologia... E uma inversão de papéis entre professor e aluno, já que eu era a mais velha. O máximo que eu conseguia ensinar a ela era como organizar calcinhas e meias nas gavetas, atividade, aliás, que faço com perfeição até hoje.

Foi a minha primeira referência feminina. Apresentou-me a maquiagem sob um ponto de vista que eu desconhecia; o do prazer. Encheu a minha necessaire (que não por acaso também foi presente dela) de batons, blushes, rímels, bases sólidas, líquidas, pós compactos, sombras e tantos outros produtos que eu sequer sabia que existiam, no intuito de me forçar em algumas viagens nesse universo distante e estranho.

Depois vieram as aventuras e as furadas em que nos dispusemos a cair, as histórias, os tropeços, as escolhas e a falta delas que acabaram nos direcionando a caminhos opostos, mas não definitivos. E enquanto eles vão seguindo seus rumos, nós os vamos seguindo, na expectativa que logo ali (como dizem os mineiros), a estrada faça uma curva."
por Martha Bueno, em Bolsa de Viagem, cinco anos depois.

de cordeiros e lobos

Para Ricardo Ramos


"Todo mundo é lobo por dentro
ninguém é lobo mau pra sempre
tem gente que nasce lobo
responda você...
Você me disse que eu sou petulante, né?
acho que sou sim, viu...
como a água que desce a cachoeira
e não pergunta se pode passar
você me disse que o meu olho é duro como faca
acho que é sim, viu...
como é duro o tronco da mangueira
onde você precisa recostar
você me disse que eu destruo sempre
a sua mais romântica ilusão
e que destruo sempre com minha palavra
o que me incomodou
acho que é sim
como fere e faz barulho o bicho que se machucou,viu..."


Viver não é fácil porque existem opções e caminhos diversos a seguir, além de bifurcações, atalhos, desvios e encruzilhadas na estrada. Não é como receita de bolo, que se segue à risca porque não há muito o que inventar; um bolo contém farinha, água, ovos e açúcar, mas não livre-arbítrio. É a liberdade de escolha que faz a massa sovar. Entretanto, a receita da vida, por mais torta (trocadilhos à parte) que esta se apresente, é bastante simples. Imagine dois pontos, "A" e "B", dispostos no espaço. A menor distância entre esses dois pontos, aprende-se no colegial, é uma reta. Agora imagine que o ponto "A" representa o momento em que a vida começa, como a partir de um riscar de fósforo num salão mergulhado em breu; na outra extremidade do salão está o ponto "B", o instante em que o fósforo, plenamente consumido pela combustão, apaga-se. Unir o ponto "A" ao ponto "B" é a receita da vida. E todos sabemos que a maneira mais prática de fazê-lo é através de uma reta.

Colocada assim a coisa toda parece muito simplória e talvez o seja, de fato. Segundo a máxima popular dos pára-choques de caminhão, "a vida é bela, a gente é que dana com ela". Tem gente que nasce para ser retilíneo, para caminhar direito, para unir os pontos "A" e "B" com uma reta. Estes, possivelmente, não "danam" com a vida. Por "danar" entenda-se perder o rumo e o chão, investir e não obter retorno, dar murro em ponta de faca, crer no inverossímil, acertar algumas vezes e errar tantas outras. Quem "dana" com a vida nasceu para ser torto, para caminhar trôpego e para unir os pontos tal qual um rabisco de criança em pré-alfabetização. O torto é gauche na vida, chega atrasado no ponto, sai de cena quando a peça já está fora de cartaz, toma os atalhos errados, perde os desvios e erra o caminho. Alguns têm sorte suficiente para chegar ao ponto "B" e, ao olhar para trás, reconhecer-se por inteiro, ainda que torto, ainda que remendado. Outros não são tão afortunados; perdem-se no torvelinho das lágrimas e nos novelos dos sorrisos, não encontram o fio da meada e passam a vida a tentar desembaraçar os nós. O torto é como a Rapunzel acastelada, de pés e mãos atadas pelos cabelos que ela mesma falha em cortar.

Sou amante incondicional das histórias que as pessoas têm para contar. Para mim, a vida de cada torto que conheço daria um romance. Se procede a máxima de que atraímos os nossos iguais, e não os opostos, sou irremediavelmente torta e tortos são todos os que uma vez desejaram olhar-me de perto. Faz mais sentido assim; do contrário, há muito mais tortos nos caminhos sinuosos da vida do que direitos nas retas entre o ponto "A" e o ponto "B". Talvez os chineses estivessem certos desde o princípio, quando conceberam a filosofia do Yin-yang, segundo a qual a dualidade do mundo resulta em equilíbrio. Dessa forma, haveria quantos tortos para tantos direitos e, visto de cima, o padrão de retas e curvas desenhado pelos humanos seria harmonioso e belo.

Há tortos que, contrariando a sabedoria popular, tentam se endireitar. Afinal, ter um norte legítimo para seguir é o marco zero da auto-descoberta. E, a bem da verdade, não é o sonho de ninguém passar a existência correndo atrás do próprio rabo, marcando passo e cabeceando no escuro. Porém, a faceta mais intrigante da trajetória de um torto rumo à reta é a fase em que ele percebe que perdeu. Perdeu tempo, oportunidades, apostas, amores, amigos, identidade. O torto cai em si e resolve recuperar o tempo perdido, buscar novas oportunidades, apostar mais uma vez, amar de maneira diferente, fazer amizades sólidas e reconstruir sua identidade. Essa fase é intrigante porque cada torto recupera-se das derrotas à sua maneira.

Tem torto que nasce cordeiro. Não há metáfora mais feliz do que aquela que compara os inocentes a cordeiros. Tudo nesse animal remete à candura: seu pêlo macio, o balido frágil, que é quase um queixume, seu andar cadenciado e pacífico e o olhar ovino, translúcido e órfão. Quando um torto que é cordeiro por dentro percebe que perdeu demais e quer se endireitar, ele cisma em maquiar-se de lobo: insurgi-se contra os padrões que o levaram à ruína, distancia-se das origens, torna-se um marginal. Porque o torto é, por definição, contraditório e, na busca do reto, resvala pela encosta do bom senso e cai no ostracismo. Lembro-me do conselho que um pai, reto, deu a seu filho torto: "se quiser endireitar-se na vida, deve ser uma pessoa comum, como todas as outras". O cordeiro perdedor, assim, veste a pele do lobo vitorioso para dançar conforme a música e ajustar suas medidas tortas às formas rígidas do mundo.

Tem gente que nasce lobo, torto ou direito, tanto faz. Maniqueísmo nunca foi o meu forte, mas às vezes sucumbo ao conforto da imagem do "lobo mau" em contraste com a do "inocente cordeiro". A vida, além de difícil, é muito estranha; há lobos por essência que são retos por excelência e, devorando os espaços, conquistam impérios de sucesso. Há lobos tortos que, nos dédalos da estrada, perdem-se feito ovelhas desgarradas. E há também os cordeiros retos, que traçam a menor distância entre os pontos "A" e "B", não devoram ninguém e ainda plantam uma árvore. Desse tipo já ouvi falar, mas nunca cruzei com um. Em meu habitat viceja a incongruência: cordeiros fingindo-se de lobos e vice-versa; tortos que desejam ser retos e, nessa busca, tornam-se ainda mais tortuosos; retos que obtiveram êxito em tudo o que fizeram e, apáticos e entediados, começam a dar os seus primeiros passos trôpegos; desnorteados temerosos de acender a luz e iluminados que se enclausuram em bolhas e observam a vida passar pela janela.

Viver é difícil e dói, mesmo com tantos caminhos a seguir e papéis para escolher representar. Ou talvez exatamente por isso. Bichos machucados, ferimos outros, fazemos barulho, recolhemo-nos e, conseqüência inafastável, ficamos desgarrados do bando, perdidos, nus e tortos. Então viramos lobos ou cordeiros, o que de fato não faz muita diferença porque, ao final, todos buscamos o direito, o farol, o norte. Confesso que, na trajetória entre o riscar do fósforo e o seu apagar, por vezes sinto-me abatida, consumida pela inércia que a melancolia traz, essa saudade vã do que já se perdeu, do que já foi meu. Mas então pouso os olhos no horizonte e percebo que existem caminhos que ainda podem ser meus, contanto que consiga livrar-me da poeira inútil do passado, desembaraçar os nós e imbuir-me de coragem para a conquista. No entanto, meu sonho não é ser lobo, nem cordeiro; reto, nem torto. Eu queria mesmo era ser balão de gás, para flutuar sobre os melindres do mundo, conversar com as gaivotas, fazer amizade com o vento e ver a terra encontrar com o mar.

15 de abril de 2011

ao leitor

O Expresso começou a rodar em 25 de setembro de 2010. Quando surgiu, chamava-se "Trens e Balões", uma tentativa quixotesca de reunir no mesmo vagão as características mais paradoxais de um indivíduo: a capacidade de ganhar altitude e sobrevoar além do horizonte perceptível e a necessidade de enraizar a vida em linhas paralelas, seguras e mundanas. Então o "Trens e Balões", por razões mais pessoais do que mercadológicas, pesou mais para o lado das locomotivas, separou-se do ar quente que lhe inflava e alçava ao etéreo anil e inconstante e virou expresso. Desde então este comboio fez 175 viagens em 203 dias, 42 delas apenas no mês de outubro de 2010; já teve três maquinistas e, hoje, conduz 39 passageiros cativos, que se registraram como seguidores. De acordo com relatório do Google Analytics, o Expresso recebeu, no período entre 13 de março e 14 de abril de 2011,  660 visitas, com uma média de 2,4 páginas por visita.

Mas a cereja do bolo são os comentários dos leitores: 409 até o momento em que estas linhas são redigidas. O filósofo francês Roland Barthes afirmava que um escritor não tem passado porque nasce com o texto. Ele execrava a idéia de um "autor-Deus", auto-suficiente, que se bastasse em si mesmo; assim, entende-se que os horizontes interpretativos de um texto devem estar abertos para o leitor ativo. O ensaísta argentino Jorge Luís Borges ia mais longe: para ele, um escritor sem leitores é inexistente na medida que nasce e morre encarcerado pelos próprios limites, numa implosão de vazio e ausência de eco.

Publicar um romance ou uma antologia de crônicas e contos nunca fora uma meta para mim. Um sonho, certamente; afinal, não escrevo apenas para o meu deleite pessoal e manutenção psíquica. Escrevo para que minhas palavras tenham sentido completo em seu destino primordial: a compreensão e a interpretação do leitor. A megalomania não me cabe de fato, mas o eco é um desejo perene e pulsante da faceta que abarca o meu eu literato.

Aos leitores do Expresso, esse trem cujas viagens reforçaram-me os contornos da identidade, abriram portas há muito lacradas e mantiveram-me o ego preservado em meio a intempéries, meus agradecimentos jamais seriam suficientes. Esta locomotiva gira por mim, mas é para vocês e em vocês que o seu destino ganha significado e cresce em importância. Imagino que assim fica mais fácil para que entendam porque 409 comentários seus são como braçadas de louro para mim, o espelho das palavras do leitor através do qual enxergo melhor a mim mesma e ao outro, a realização máxima do trabalho de espiar a vida e (re)escrevê-la depois. Obrigada, amigos. Por visitar, seguir, cadastrar-se e comentar no Expresso. A gente se encontra na próxima viagem, nas paradas de cada nova estação.

14 de abril de 2011

da necessidade de se apaixonar

Para Matheus Mendes 

E assim meu amigo disse, às duas e meia da manhã: "preciso me apaixonar para sempre de novo, mesmo que seja só até a semana que vem". Vamos aos fatos, que fatos sempre dão credibilidade ao escritor. Ele não disse isso no meio da madrugada. Meu amigo está solitário e mudo, mergulhado na penumbra do apartamento onde mora no Buritis. Seu estômago vazio reclama por uma tigela de caldo de feijão e ele tenta conter o desejo de fumar um cigarro na varanda. É nesse cenário que se entrega ao hábito antigo, tantas vezes maléfico, de consumir-se em pensamentos, planos e questões sem resposta.

Mas às duas e meia da madrugada, quando a mente caminha na corda bamba que liga o passado ao presente e o coração galopa em pelo no peito, é preciso falar. Ele tem essa urgência dorida de dizer o que sente, mesmo sabendo que ninguém irá ouvi-lo de fato. Então escreve ao léu, no muro azul e já meio desolado da rede social mais badalada do momento. As palavras escritas, ao contrário do que se pensa, têm som e cor; as de meu amigo gritavam em plenos pulmões, ecoando do vazio de seu quarto para os dedos trêmulos e, daí, para a noite silente do mundo. Palavras clamadas em azul-petróleo, escuras, pegajosas e enregeladas. Ocorre que na contramão da alvorada e na outra extremidade da solidão pode haver uma alma insone, inimiga de Morfeu, para ler o que um rapaz melancólico tem a dizer. E do silêncio fez-se o eco.

"Preciso me apaixonar para sempre de novo, mesmo que seja só até a semana que vem".

Já ouvi algumas vezes que sou do tipo que precisa sentir-se apaixonada para viver plenamente. Concordo. Mas tenho uma ressalva a fazer: não somos apenas meu amigo e eu que temos essa necessidade de se apaixonar; todos temos. Antes que o leitor torça o nariz e desista do texto, explico-me. Apaixonar-se não remete apenas ao ato de cair de amores por alguém. Quem se interessa vivamente por alguma coisa, um livro, por exemplo, está apaixonado; o indivíduo que se dedica ao trabalho com entusiasmo renovado está apaixonado; a camponesa que pára a colheita de tulipas para assistir ao por do sol é apaixonada; o engenheiro que projeta prédios por quarenta anos, aposenta-se e passa a pintar aquarelas, acaba de se apaixonar. Dessa forma, a palavra "paixão" tem significados mais abrangentes do que a atração física e a afeição pelo outro.

A etimologia, pedra no sapato do poeta, não poderia discordar mais dessa concepção de "apaixonar-se". O radical da palavra paixão, derivada do grego antigo, vem de pathos, que a rigor significa excesso, passividade, sofrimento e submissão, daí o termo "Paixão de Cristo". Do mesmo radical pathos derivaram-se as palavras "paixão" e "patologia"; por esse motivo alguns psicólogos afirmam que a paixão é o estado febril, delirante e patológico do amor. A bem da verdade essa diferenciação entre amor e paixão, que tanto consome a moderna literatura psicanalítica e o tempo de estudiosos do ramo, sempre me causou um penoso estado de letargia. É tedioso categorizar sentimentos humanos e estúpido tentá-los diferenciar com base na intensidade e na duração dos mesmos. "Você a ama ou está apenas apaixonado por ela?"; "Severino foi o grande amor da minha vida, mas já tive muitas paixões"; "Se a paixão fosse realmente um bálsamo, o mundo não pareceria tão equivocado". É muita dúvida e complicação para algo tão natural e inerente ao ser humano.

Esperto mesmo era o Luís de Camões, que no século XVI escreveu sobre o sentimento da paixão e, num golpe de mestre, nomeou-o "amor". Em um dos seus sonetos mais populares, o poeta português manda a etimologia e a filosofia às favas e se contorce em seu túmulo de tanto gargalhar dos acadêmicos que, quinhentos anos depois, debateriam sobre amor platônico, amor romântico, amor pragmático, paixão e perda de individualidade, paixão e entrega, paixão e patologia e sabe-se lá quais outras denominações obtusas para algo tão abrangente.  

"Amor é fogo que arde sem se ver
É ferida que dói e não se sente
É um contentamento descontente
É dor que desatina sem doer

É um não querer mais que bem querer
É solitário andar por entre a gente
É nunca contentar-se de contente
É cuidar que se ganha em se perder

É querer estar preso por vontade
É servir a quem vence, o vencedor
É ter com quem nos mata lealdade (...)"

Sigmund Freud, aquele para quem um charuto às vezes é apenas um charuto e pai da psicanálise, cunhou o termo libido para a pós-modernidade. Aviso aos navegantes: para Freud, às vezes um charuto pode ser um kibe e libido não designa apenas desejo sexual; é a energia necessária para que o homem movimente seus instintos de vida. Em outras palavras, libido é vitalidade, transformação, preservação e evolução. Na ausência da libido, o indivíduo é desprovido de energia vital para preservar sua espécie e buscar qualidade de vida; é um espectro. Aqui, não se discute paixão e amor como sentimentos antagônicos; nesta seara, os opostos extremos são a libido e o instinto de morte. No livro “Além do Princípio do Prazer”, Freud utiliza, no lugar de "libido", o conceito de eros como sinônimo daquele, que descreve como sendo a energia que impulsiona a vida. Na obra “Psicologia de Grupo e Análise do Ego”, definiu a libido como sendo a "energia de tais instintos, que tem a ver com tudo o que pode ser resumido com o amor."

"Preciso me apaixonar para sempre de novo, mesmo que seja só até a semana que vem".

Apaixonar-se é sair do estado de torpor e inatividade ao qual a rotina, as decepções e as frustrações nos acorrentam; é abrir os olhos, aguçar os pensamentos, sair da sombra e brotar ao sol; é transformar-se, reconstruir-se, reescrever-se; é sentir fluir na alma e na carne a tal energia vital que Freud mencionava; é entregar-se a eros, à libido, ao amor. À paixão. Meu amigo diz que precisa se apaixonar para sempre; vou além. Ele, você e eu precisamos estar sempre apaixonados. Ocorre que o mercado de musas inspiradoras, trabalhos adoráveis e felicidades plenas é escasso e nada generoso. Então é preciso que escavemos do peito inspiração, admiração e, se não felicidade, ao menos ausência de sofrimento. O Vinicius rogava que o amor - "amor", cara-pálida, não "paixão" - fosse eterno enquanto durasse. Esta plenitude atemporal, suspensa no espaço-tempo como um satélite no vácuo, é o desejo do meu amigo. E o de Vinicius e de Camões. E o de Freud. Com você e comigo não haveria de ser diferente.

romântica? eu?

Para Alberto Lacerda, Priscila Rohem, Eduardo Sumares e Marcelo Akstein

Em conversa com um amigo deparei-me com a seguinte pergunta: "Você é uma mulher romântica?" Bem, é preciso contextualizar a situação para a história não correr o risco de cair no abismo do absurdo e do nonsense existencial. A prosa acontecia no confortável, mítico, esterilizado e igualmente nonsense reino do virtual: o MSN. Confortável e esterilizado porque você pode, por exemplo, debater política e filosofia ou simplesmente flertar com o seu interlocutor em trajes sumários e protegido pelo imaculado monitor de LCD do seu computador. Conheço uma mulher - iria dizer "amiga", mas, às vezes, meu bom senso funciona e lembro-me de que não escrevo sob um pseudônimo - que só vai ao banheiro com o notebook em mãos. Pondero se a amiga, digo, conhecida em questão, teria manias de grandeza ou, para ser mais específica, manias de majestade; ela diz que não há atividade mais libertadora do que bater papo confortavelmente sentada ao "trono". Por essas e outras é que sociólogos ainda detém lugar cativo no hall dos intelectuais de voz ativa; afinal tudo pode ser relativo, até mesmo uma conversa virtual à mais que real latrina. E, se houver hackers de plantão, o chat na privada, de relativo, passa a público num piscar de algoritmos.

O caráter mítico e nonsense das relações pessoais através da internet é auto-explicativo. Em matéria publicada pela revista "Veja" em 6 de abril, a repórter Bruna Stuppiello afirma que "as chances de achar uma paixão na internet são 42% maiores do que as de encontrá-la num bar ou numa festa". A reportagem é recheada de estatísticas e opiniões de especialistas, mas o tom mítico está nos depoimentos de casais que se conheceram no mundo paralelo dos três dáblius, encontraram-se pessoalmente em seguida, enamoraram-se, casaram e passam muito bem, obrigada. Mostrei a reportagem para algumas pessoas que mal têm acesso à internet, todas compromissadas à moda antiga, leia-se, conheceram seus parceiros e parceiras na escola, no trabalho ou na comunidade em que vivem. Bar? Festa? "Todo mundo sabe que esses lugares não rendem namoro, só farra", foi o que me disseram. Para essas pessoas, "achar uma paixão na internet", com 42% de chances a mais de sucesso é, no mínimo, algo fora de sua realidade e, obviamente, uma prática nonsense das mais elaboradas.

Meu amigo e eu nunca nos encontramos pessoalmente, mas posso afirmar que nossa relação de amizade é sólida, ainda que virtual. Ele teclava de seu escritório; eu, da escrivaninha do quarto, detalhes que nos salvam do hábito sui generis de bater papo na "casinha". E tec-tec daqui, tec-tec de lá, ele me pergunta se sou romântica. Esse é o tipo de pergunta que suscita reflexão; a mente vagueia para o passado e ilumina cantos escuros da memória, que se julgava abandonados há muito. Como eu demorava para responder - postei-me diante do monitor, as mãos sob o queixo, balançando os pés e com as sobrancelhas franzidas em concentração - meu amigo decidiu reformular a questão: "Você é mais prática ou mais sensível?" Desta vez a resposta veio automática; praticidade e sensibilidade não se opõem, não são características antagônicas em si mesmas. Ou seja, uma pessoa prática não é necessariamente insensível e vice-versa. Ainda evadindo o terreno do romance, completei minha idéia afirmando que senso prático nunca fora o meu forte; é na intuição e na passionalidade que tenho mais espaço para respirar e para sair à luz do dia sem as máscaras pesadas do bom senso.

"Romance in Red", Alfred Gockel

O escudo do espaço virtual, embalsamado pela distância física real e pelo ostracismo auto-infligido, é mais que confortável; é conveniente. Imagino meu amigo, do outro lado do monitor, do outro lado do Estado, do outro lado da minha realidade, perguntando-se porque diabos eu não respondia a uma pergunta tão simples. Se estivéssemos frente a frente num café, num banco de praça ou na praia, não seria tão fácil para mim sofismar. Fiquei olhando para a tela, pensando que desviar do assunto daquela maneira poderia ser impróprio. Não que eu tenha evocado um código de ética para internautas tagarelas, até porque "ética" e "internet" não constituem universos intercambiáveis. O fato é que fugir do assunto cheira-me à ilegitimidade, seja no plano virtual ou no real. Não refletir, não responder e tomar o caminho mais fácil; nada disso sou eu.

Cabe aqui o registro de uma conversa - esta, plenamente real, ao vivo, em carne e em cores - que presenciei entre amigos. Ela, uma jovem doce, determinada e corajosa, diz que é importante que as mulheres sejam emocionalmente fortes, que não encarnem o papel da fêmea frágil, insegura, ciumenta e dependente. Ele, um homem de opiniões fortes, difícil de dobrar, concorda com ela, mas faz uma ressalva: a mulher precisa ser segura de si, dona de uma vida própria, mas não deve se permitir ser afetivamente independente. Ela aprendeu na prática que a auto suficiência é o caminho para a sobrevivência e para a realização pessoal. Ele aprendeu na teoria e através da observação que a auto suficiência afetiva rima com introspecção e incapacidade de se envolver. Eu e um quarto amigo ouvíamos calados, resguardando nossos apostos para quando chegasse a hora de abrir outra garrafa de vinho. E no entremeio, perguntava-me onde, nessa ciranda de independência, afeto e entrega, poderia ter se escondido o romance.

Ao meu amigo virtual respondi que personalidade romântica é relativo. Se me conhecesse melhor, ele detectaria de imediato minha pior manobra retórica: dizer que algo é relativo. Venhamos e convenhamos, sociólogos e noves fora, nada é relativo, tudo é absoluto e relativizar é uma maneira bacana e acadêmica de tapar o sol com a peneira. A pergunta "você é romântica?" levou-me a pensar se a moça da conversa que relatei é romântica; se o seu interlocutor alguma vez já se permitira ser romântico; se o namorado dela, um jovem que ama cozinhar e tocar piano, é romântico; se eu, uma criatura passional e emotiva, sou romântica. Mas, afinal de contas, o que significa ser romântico?

(ro.mân.ti.co) 
adj.
1. Relativo a romance;
2. Que tem alguma coisa de fantástico como o que se descreve nos poemas e nos romances;
3. Próprio para as cenas amorosas ou romanescas;
4. Sonhador, devaneador, fantasioso;
5. Diz-se de pessoa de modos cavalheirescos ou poéticos, que se eleva acima da realidade prosaica;
6. Diz-se dos escritores ou artistas cujas obras se afastam do estilo clássico;
7. Diz-se das obras desses escritores ou artistas;
8. Diz-se do que evoca o estilo ou os temas característicos do romantismo;
9. Pejorativo. Piegas, excessivamente sentimental.


Se você esperava que o vernáculo definisse "romântico" com algumas características do personagem de Richard Gere no filme "Uma Linda Mulher", de 1990, caiu do cavalo. As definições de número 4 e 9, pessoalmente, doeram para ler. Quando e por que ser romântico tornou-se piegas e sinônimo de fantasioso? Será que é tudo culpa do Wando, das brochuras "Sabrina" e de Hollywood? Falando do diabo, acaba de me ocorrer um exemplo que ilustra essa "ser ou não romântico: eis a questão". O filme "O Espelho Tem Duas Faces", dirigido e estrelado por Barbra Streisand, em 1996.


Rose Morgan (Streisand) e Gregory Larkin (Jeff Bridges) são professores da Universidade de Columbia e ambos compartilham uma visão cética do amor e do romance. Entretanto, há uma diferença entre eles: Rose, mestre em Literatura Inglesa, é otimista e esperançosa; Gregory, o nerd da Matemática cansado de ter sua vida prática importunada pelas subjetividades do amor, acredita que a única forma de manter um relacionamento verdadeiro e duradouro é através da amizade, excluindo-se o romance, o sexo e a entrega passional. O professor vê em Rose, uma mulher inteligente, generosa e sensível, cuja auto-estima é dilacerada pelo relacionamento débil com a mãe (Lauren Bacall) e a irmã (Mimi Rogers), a companheira perfeita. "O Espelho Tem Duas Faces" é, bem, um filme romântico, dirigido por uma mulher e, para quem se sente confortável com rótulos e categorias, ainda que vãs, um filme para mulheres. Entretanto, o enredo aborda, sobretudo, a quebra de paradigmas pessoais e de certezas absolutas. Não demora muito para que Rose se canse de interpretar o papel da mulher rejeitada e auto-piedosa, que come vorazmente para cimentar buracos em sua identidade. Ela se apaixona por Gregory que, cego em suas convicções e temeroso de se entregar ao "romance", insiste em manter uma relação de distante e polida amizade com a esposa. Mas Rose quer mais. Quer romance, paixão, suor, loucura, entrega apaixonada; quer o pacote inteiro.

Mas, o que é o pacote inteiro? Surpreender a amada com uma centena de rosas, balões de hélio em forma de coração, ursos de pelúcia e caixas de bombom? Vestir uma fantasia de pin-up e dançar à luz de velas no Dia dos Namorados? Escrever bilhetes apaixonados e escondê-los pela casa, até que o(a) amado(a) os encontre? Fazer declarações de amor inflamadas diante de trinta colegas de trabalho mais descrentes que São Tomé? Fechar uma Tiffany e pedir que ela escolha o solitário de brilhante que desejar? Brigar às vésperas do Natal, deixá-la partir e, arrependido e miserável, tomar um táxi até o aeroporto, antes que ela embarque, só para dizer que a ama? Escrever "você é o meu docinho de coco" em outdoors pela cidade? Alugar um carro de som com mensagens, músicas do Lionel Richie, cornetas e chuva de prata no aniversário dele? Não sei ao certo. Todos os exemplos acima já apareceram em pelo menos dez filmes do gênero. Ocorre que eu tendo a desconfiar de tudo que pertence a um certo gênero, que é agrilhoado por rótulos e despersonificado por categorias. E talvez porque o "romance" esteja já tão rotulado e vazio de significados próprios, seja tão difícil pensar o que é romance para mim, para os meus amigos, para você.

Sou do time da moça que acredita que a mulher deve ser independente e que não vence o jogo mostrando fragilidade emocional. Mas penso, assim como ela, que por mais forte e intrépida que uma mulher seja, haverá sempre momentos em que o cuidado, a companhia e a dedicação de um homem serão insubstituíveis. Cartas de amor me apetecem. Ao Fernando Pessoa também, tanto que ele achava ainda mais ridículo que uma carta de amor aquele que jamais escrevera uma. Flores em ramalhetes e bouquets não me enchem os olhos, a não ser que estejam vivas e que possam ser vistas num passeio pelo campo, de mãos dadas. Ler a dois, compartilhar uma refeição, assistir a um filme e dividir a mesma cama, seja no inverno ou no verão, são o supra-sumo do romantismo para mim. Cavalheirismo também; afinal, não custa nada abrir a porta do carro e do elevador e puxar uma cadeira para as "românticas". Romântico é o simples, o espontâneo e o gratuito. Para iniciar uma descarga de adrenalina no sangue, outra de serotonina e dopamina no cérebro e fazer as mãos suar frio, ninguém precisa encenar o último ato de "Romeu e Julieta" na sala de jantar. O romance nasce da legitimidade dos atos de quem tem coragem suficiente para revelar que ama ou que está apaixonado. Piegas é engolir o sentimento a seco e, por medo de virar estatística, deixar de expressar o amor, a paixão, o desejo e as expectativas pelo outro. E já que tenho mais medo de almas penadas do que de rótulos banais, termino com o Lulu: "(...) talvez eu seja o último romântico dos litorais desse Oceano Atlântico. Só falta reunir a zona norte à zona sul; iluminar a vida, já que a morte cai do azul (...)".

13 de abril de 2011

perder-se

Na metade do caminho entre a partida e a chegada
Perdi-me de mim; escapou-me aos olhos o horizonte
Flâmula  remota, pontilhada de contornos baços
Mar dos destinos onde a íris anseia por desaguar

No desencontro de mim evadiram-se as lentes
Com que, vexado, disfarçava minha indulgente miopia 
Cegueira nívea de quem toma os bondes errados
Para perder de vista o norte, a altitude e a origem

Em vertigem e alarido despejo-me do trem
O solo sufoca-me os pulmões, recolhe-me inerte
Tronco alquebrado pelo abraço de chumbo dos cipós

Míope, extraviado, inativo e árido
Nego o vicejo de brotos e o vento de galhos
Eu, que me perdi de mim e afundei-me raiz

8 de abril de 2011

o seqüestro (parte 1)

O pai guiava o carro na estrada sinuosa lentamente. A mãe, no banco do carona, olhava distraída a paisagem pela janela. Uma bossa tocava baixinho no rádio, enquanto pai e mãe deixavam-se boiar na maré dos próprios pensamentos, submersos num silêncio de torpor. O inverno ainda não havia começado, mas o vento já soprava frio nas copas das amendoeiras e jaqueiras nas alamedas. No banco de trás, olhos trigueiros e redondos feito bolebas pretas, o menino espichava pescoço e canelas, sua atenção voltada para as lojinhas coloridas de artesanato que margeavam a rodovia. Vezenquando ele colava o rosto na janela para ver as crianças que caminhavam em fila pelo acostamento. Os menores iam de mãos dadas com os mais velhos e levavam sacos plásticos com biscoitos e pipoca-doce. Um garoto ruivo, de pernas compridas, com calças curtas que mal lhe cobriam os tornozelos, liderava a molecada; nas mãos, uma bola de futebol, o couro puído desfiando nos contornos de tinta. Era o meio da manhã de um sábado, e o sol derramava uma luz amarelada sobre as colinas verdes de Petrópolis. O pai decidira vir na noite anterior, para evitar o trânsito pesado de final de semana na subida da serra. Chegaram à casa tarde, o carro coberto de sereno, mas não descarregaram as malas; o menino cabeceava de sono e a mãe, entediada da viagem e sôfrega por um cigarro, não faria questão de subir a escadaria com malas feitas à maneira militar pelo marido. Que ficassem para a manhã do dia seguinte.

classificados

"Troco altruísmo zero-a-zero por uma porção de egoísmo um-a-um. Se você, egoísta de nascença, acha este um bom negócio, favor entrar em contato com altruísta cansado de ver a vida passar pela janela". Está aí um anúncio que sempre quis publicar nos classificados de "O Globo", partindo-se do pressuposto de que, no jornal, haveria uma seção filosófica-analítica para desnorteados, arrependidos e elucubradores de plantão. A chamada é de uma nostalgia de tal forma opressiva que só poderia mesmo ser publicada em periódico impresso; nada dessa coisa moderna de jornal online e muito menos eBay. Na situação hipotética, o leitor interessado precisaria sentar-se à mesa da sala de jantar, ou num banquinho de praça, folhear página por página, separar a seção de Cultura para a esposa e a de Esportes para o filho adolescente, circular os anúncios pertinentes com caneta bic, ficar com os dedos manchados da tinta escura do papel e, só então, deparar-se com o meu anúncio, a prova cabal de que a linha que separa o altruísmo do fracasso pessoal é tênue e enganosa.

O leite volúvel das encruzilhadas em que me permito cair azedou, talhou e virou um agridoce nauseento. Tem gente que vai às compras quando azeda; outros trovejam e fecham o tempo para si e para quem mais estiver sob sua mira. Já conheci azedumes que se escondem sob cobertores pesados, fazendo as vezes de um avestruz; e outros que, para adoçar a vida, enchem as burras de massa folhada portuguesa. Eu, para variar, escrevo quando azedo. O que me leva a confessar que entreguei-me à total inatividade literária há dez dias. Nem só de dúvidas existenciais produz um escritor; até as incertezas e os becos sem saída entram na morosidade inerte do pensamento e cegam inspiração e disciplina com o branco ofuscante do vazio. Seria muita hipocrisia da parte de quem escreve sobre a realidade que o cerca dizer que o belo, o alegre e o harmônico incitam à produtividade. Hipocrisia e uma falácia. Não há encorajamento literário maior do que a melancolia, a revolta e a feiúra. E, sobretudo, o leite azedo, que faz a alma espumar, a mente ferver e as palavras voltar à tabula rasa da imaginação.

Ao longo de dez dias o acetoso da vida veio roubar-me a gulosice na forma de revolta contra o altruísmo, esta que já considerei uma das mais veneráveis de minhas virtudes e, hoje, é tão contestável quanto ambígua. Quando penso em abnegação, vêm-me imagens de "Dogville", filme do diretor Lars von Trier, de 2003.


A película do cineasta dinamarquês segue um roteiro, em princípio, tão cru e minimalista quanto os cenários, ou melhor, a ausência de cenários de seus filmes inspirados no movimento Dogma 95, pelo qual ficou conhecido como um dos fundadores. Grace Mulligan, interpretada por Nicole Kidman, é uma fugitiva de gângsters que chega à isolada e inóspita cidade de Dogville. Tom Edison (Paul Bettany), o porta-voz da comunidade, convence os moradores a esconder o segredo de Grace e dar-lhe abrigo. Em troca, a bela e frágil fugitiva da cidade grande deve realizar trabalhos para os habitantes de Dogville, desde varrer um quintal, lavar as louças, cuidar de lojas e de bebês e auxiliar na coleta de frutas até, eventualmente, conceder prazeres sexuais a um marido bronco de outra mulher. Não demora muito para Grace ser acorrentada - tal como o único cão que dá nome à cidade - explorada pelas mulheres e violentada por todos os homens, mesmo sendo pura abnegação e doçura, pleno altruísmo e zero de revolta e empáfia.

"Mesmo sendo pura abnegação", eu disse. Mas a conjunção apropriada aqui não é "mesmo", e sim principalmente por ser pura abnegação. Pois Grace foge, de fato, de seu próprio pai, o líder da máfia na capital, de cujos princípios a moça discorda veementemente. Ora, se Grace, mulher educada e abastada, abandona seu lar por não reconhecer ali uma identidade legítima, é correto afirmar que ela abandona igualmente a vida que conhecera até então. "Dogville" é desses filmes que vale pelo final. Inconveniente é ter que assistir a duas horas e quarenta minutos de cinema Dogma para chegar ao ápice da coisa. A idealista Grace, após mergulhar na realidade nada frugal através de um sermão do pai - interpretado por James Caan, no filme chamado apenas de "the Big Man" - ordena que os capangas executem a cidade inteira, sem deixar um único habitante escapar. Depois da chacina, sobrevive apenas o cachorro que, só então, aparece como imagem real (durante todo o filme, só se ouvem seus latidos e sabe-se que ele fica amarrado à entrada da cidade, mas von Trier opta por deixar as características do animal a encargo da imaginação do espectador).

"Dogville" não apenas vale pelo final. O filme tem toda a sua argumentação fundamentada na fala do pai de Grace, ao vê-la subjugada física e psicologicamente aos moradores da cidade, a quem ela jamais prejudicara. Porque a idéia do diretor dinamarquês, exímio explorador do que há de mais vil e infame no ser humano, é fazer alguém bom em princípios e intenções compreender que a bondade pode, sim, ser relativa. E Grace aprende isso com os moradores de Dogville, gente simplória que ela considera em altos padrões justamente por ser simplória e a quem se dedica sem reservas e sem pedir nada em troca. É como se a jovem, contrariada pelo estilo de vida a que seu pai protetor a expõe, precisasse se eximir de uma culpa auto-infligida, permitindo que esses moradores lhe infligissem todo tipo de violência. A isso, o pai de Grace chama de soberba. Ele diz à filha: "você odeia sua vida e as benesses que ela lhe traz, então foge para cá, por pensar que aqui as pessoas podem ser melhores do que lá." Entretanto, Grace descobre que os moradores de Dogville não são pessoas melhores, mas acredita que ela mesma o seja. E, para tentar inundá-las com a sua pretensa bondade e fazer delas pessoas melhores apenas por conviver com ela, a moça submete-se ao pior de si mesma e ao pior dos seus algozes; estabelece-se, assim, um jogo inescrupuloso de abusos, poder e sadismo, em que Grace também é culpada: por seu orgulho, sua subserviência e, acima de tudo, por sua ingenuidade disfarçada em altruísmo.

"Troco altruísmo zero-a-zero por uma porção de egoísmo um-a-um. Se você, egoísta de nascença, acha este um bom negócio, favor entrar em contato com altruísta cansado de ver a vida passar pela janela". Pergunto-me até quando vou bancar Grace Mulligan. Às vezes cansa. Noutras, frustra. E, nas demais, azeda. Em cinema e com a "bondade" de Nicole Kidman associada à beleza loira, vale tomar um banho de água fria, perceber que ninguém quer ser ajudado e muito menos aperfeiçoado na vida e mandar uns gângsters da pesada fuzilar a malta. Mas, pensando melhor, Grace é a malta, seu pai é a malta, eu e você somos a malta; o que muda é a percepção do mundo e das oportunidades, o número de bondes que se perde e os que se inventa e a consciência de si mesmo. Noves fora, se você está em dia com a filantropia, é um cidadão cônscio de seus direitos e deveres civis e não mata nem morre por ninguém, é melhor que a sua energia altruística esteja canalizada inteiramente para a melhoria da sua própria vida. A realização pessoal é um bem incrível não apenas para o indivíduo que a persegue, mas para todos que o rodeiam e que, por conseqüência, irão usufruir dos privilégios desse sucesso. Por outro lado, viver em função do outro, seja por ingenuidade, comodismo, abnegação ou, no caso de "Dogville", soberba, não só vai em direção ao fracasso, como também abre as portas para o desentendimento e o rancor. Se você não é filho de gângster, nem escreve quando fica azedo, é melhor viver a sua vida como personagem principal dela, antes que se acostume a ser mero coadjuvante.