31 de maio de 2011

paraíso

Para Adelaide e Alceo, que me dão asas, ainda que isso lhes doa; para Helena e seus filhos; para Milene, Cristina, Cristiane e Eduardo, que não me deixam esquecer de que o paraíso pode, sim, existir. Da maneira que o pintarmos.
Isso aí é um pedaço das Maldivas; o paraíso para muita gente

"Longe de casa

Há mais de uma semana
Milhas e milhas distante
Do meu amor
Será que ela está me esperando
Eu fico aqui sonhando
Voando alto perto do céu
Eu saio de noite andando sozinho
Eu vou entrando em qualquer barra
Eu faço meu caminho
O rádio toca uma canção
Que me faz lembrar você, eu
Eu fico louco de emoção
E já não sei o que vou fazer
Estou a dois passos do paraíso
Não sei se vou voltar
Estou a dois passos do paraíso
Talvez eu fique, eu fique por lá
Estou a dois passos do paraíso
Não sei porque que eu fui dizer bye bye
Bye bye, baby, bye bye
-A Rádio Atividade leva até vocês
Mais um programa da séria série
"Dedique uma canção a quem você ama"
Eu tenho aqui em minhas mãos uma carta
Uma carta d'uma ouvinte que nos escreve
E assina com o singelo pseudônimo de
"Mariposa Apaixonada de Guadalupe"
Ela nos conta que no dia que seria
O dia do dia mais feliz de sua vida
Arlindo Orlando, seu noivo
Um caminhoneiro conhecido da pequena e
Pacata cidade de Miracema do Norte
Fugiu, desapareceu, escafedeu-se
Oh! Arlindo Orlando, volte
Onde quer que você se encontre
Volte para o seio de sua amada
Ela espera ver aquele caminhão voltando
De faróis baixos e pára-choque duro
Agora, uma canção, canta pra mim
Eu não quero ver você triste assim
Estou a dois passos do paraíso
E meu amor vou te buscar
Estou a dois passos do paraíso
E nunca mais vou te deixar
Estou a dois passos do paraíso
Não sei porque eu fui dizer bye bye..."


Figuras como o Evandro Mesquita são dessas que, como se diz em bom, popular e irresistível português, fizeram e jogaram a forma fora; não têm igual. A década de 1980 é igualmente ímpar. Tentamos risivelmente copiar aquilo que, há trinta anos, eram as últimas tendências; vezenquando um artista doido o suficiente para colocar a sua reputação no páreo dos índices de popularidade arrisca-se a fazer um estilo Mesquita ou Paulo Ricardo, mas não tem jeito. Tem coisas que nem a Philco faz por você. E, outras, que nem o Mastercard faz valer à pena.

Estou longe. Milhas e milhas distante, mas já faz mais de uma semana. Tenho estado na estrada há tanto tempo que, créditos devidamente concedidos ao Almir, já virei a própria estrada. O problema do indivíduo que se transforma em estrada é que, de uma maneira inexorável e muito estúpida, perde a noção do que é casa. Então fica milhas e milhas distante não se sabe do que. O Evandro é um sujeito esperto. Escreveu a letra de uma canção moderninha para a época, que cola na memória à base de Super Bonder e que, no final das contas, é uma gracinha; toda canção de amor é adorável. A "casa" do Evandro é a "baby" da canção, o seu amor. A coisa parece banal, mas não é. Associar o amor à casa é genial. E se o cantor suspira melodicamente que está longe de casa há mais de uma semana, milhas e milhas distante do seu amor, cara-pálida, não tem tempo ruim nem desacordo com a Hora do Brasil: mesmo a dois passos do paraíso e voando alto, perto do céu, ele não entra; volta para casa.

A dor maior de quem está longe de casa há mais de uma semana não é a falta da casa - leia-se, do amor. É estar a míseros dois passos do paraíso e não entrar; é ver as delícias dos sonhos mais íntimos pela greta da porta e saber-se falível, sentir-se culpado ou sozinho demais e, rabo entre as pernas, fazer o caminho de volta. Viagem é um lance que sempre mexeu comigo. Não viagem de ônibus, avião, trem ou balão, muito menos essa pseudo-psicodelice de viagem astral. O que me faz fritar os miolos são as odisséias. O Ulisses, por exemplo: saiu de casa, deixou a esposa, Penélope, tecendo um manto pela manhã e desfazendo o trabalho à noite para evitar os pretendentes à mão da recém-abandonada castelã, ficou vinte anos fora, participou da batalha mais famosa da história, apaixonou-se por Calipso e morou com ela na mais paradisíaca das ilhas, foi tentado pelas mais sexy harpias e, barbudo e reconhecido apenas por seu velho cão de guarda, retornou. Ulisses não esteve apenas a dois passos do paraíso; ele vivenciou o paraíso. Ocorre que o mais famoso dos odisseus tinha uma casa para onde retornar - um amor - mesmo que essa casa e aquele amor fossem-lhe mais idealizados pela memória do que vividos pela experiência. Jogue a primeira pedra quem, como eu, não achou o Ulisses o barbudo mais babaca entre os gregos.

O Evandro, que de Odisseu e troiano não tem nada, se faz de besta e diz que fica ali sonhando, se perguntando se a moça está esperando por ele em casa. Ora, é claro que está e ele bem o sabe. Se não houvesse uma baby, um cachorro velho ou mesmo uma torradeira ligada à tomada, é óbvio que ele não ficaria a apenas dois passos do paraíso; ele já teria caído dentro e abraçado o capeta. Ah, sim. Esqueci de explicar: no paraíso há tudo, menos querubins rechonchudos, carpideiras e carolas de vestidos cinza rezando o padre-nosso. Paraíso não é exatamente a minha especialidade, mas algo me diz - intuição, mandinga, neurose, vá saber - que ele deva ser como aquela pantomima que o Bosch pintou num tríptico do século XVI. O centro é o Jardim das Delícias Terrenas; o diacho é que, nas asas laterais, o pintor retratou um inferno para lá de dantesco. Vá lá. Nem tudo é, ou poderia ser perfeito. Assim sendo, no paraíso ou no inferno, já que a odisséia começou, beije Calipso, amontoe centenas de gregos num cavalo de pau, abra as portas do paraíso, espie à vontade, entre, decida se vai ou se fica e abrace o capeta, seja ele ou isto o que for.

Paraíso é feito futebol, mulher, carro e política: não se discute. Cada um tem o seu. Durante um tempo o meu paraíso foi uma estrada de terra batida, um curral com cheiro de leite fresco e os meus tios e primos reunidos na varanda da casa, no escuro, sem rádio, televisão, nem internet para encobrir o vazio do silêncio. A gente ficava sentado nuns bancos de madeira compridos, vendo o baile dos vagalumes que sobrevoavam o arrozal. E, o supra-sumo do éden, contávamos casos. Aquele era o meu paraíso particular. Eles adoravam as histórias que eu tinha para contar, eram todos ouvidos, eu era o centro daquele pequeno universo e era inacreditavelmente feliz. Em julho, quando a noite fazia a molecada bater os queixos de frio e a lua-cheia criava sombras no chão, a gente cismava de ir à casa de um tio que era dono de um bar e de uma pista para jogo de malha. Íamos a pé, chutando o saibro da estrada, de olhos atentos ao chão para colher umas pedrinhas pretas e brilhosas que, muitos anos depois, aprendi que se chamavam magnetitas. Nessas caminhadas, também pregávamos os sustos mais mirabolantes num moleque medroso, o Dim, que todos amávamos. Naquelas noites de lua, em que o cheiro das damas-da-noite inebriava e marcava a memória como a ferro e fogo, indelével, o paraíso era mais do que real. Era palpável.

Nossos conceitos e expectativas mudam e, com eles, a acepção do paraíso. Houve um tempo em que também o éden se modificou para mim: tornou-se uma terra cercada de montanhas, onde eu acreditava poder construir uma identidade própria, sem seguir as pegadas de ninguém. Então, o anonimato e a liberdade que, de tão liberta, chegava a efervescer no peito feito uma pastilha de Alka Seltzer engolida a seco, eram o foco no meu jardim das delícias. Não demorou muito para que eu entendesse que, cercada por morros de pedras e incógnita entre milhares de ignotos, a solidão faz qualquer mero e ridículo mortal virar Odisseu; eu quis uma casa. Desejei o retorno. Fiz rotas elípticas em torno de mim mesma, mordi o próprio rabo e cumpri o legado nietzschiano necessário, ainda que doloroso, do eterno retorno. Vá lá. Nada pode, mesmo, ser perfeito. Do contrário, estragaria o cenário do Bosch.

Chegou o tempo, enfim, em que imaginei que o conforto do ninho, este sempre à minha espera, sob as asas - leia-se "galhos" - frondosas dos pais e a segurança tentadora, prática e irrecusável de um destino certo pudessem ser o paraíso. E, então, não eram dois, nem três, nem um passo adiante dele: eu comia, bebia, respirava e digeria o paraíso diariamente. Não havia casa para aonde pudesse voltar, nenhum "baby" a me esperar; lá era a casa e, ao meu lado, o baby devorava-me com olhos pidões, inocentes, castanhos como os meus. Mas, então, também não havia um amor. Ah, claro. Amor paterno, de mãe e de filho há aos litros, aos borbotões. E não existe plataforma mais segura, perene e aliviante do que a certeza do amor de seus pais e da admiração e da dependência de um pequeno rebento.

Mas e quanto ao amor próprio? O que pensar, esperar ou fazer com os sonhos guardados na concha do caracol, que carrega a casa às costas e, lentamente, vai de um lugar a outro? Haverá uma receita para que sejamos pura sensatez e apague da memória os desejos de andar com os próprios pés, mesmo que seja para o lugar errado, para longe de casa e por mais de uma semana? Alguém aí pode me ensinar a não sonhar ser mais do que já fui, a não querer ser diferente daqueles que mais amo, a podar os cotos das asas que teimam em brotar? Ah... É tão mais confortável ser caracol. E ser sozinho. E não precisar de um amor não-filial, não-paterno, não-materno, não-pátrio. Confortável, eu disse. Mas doloroso, oco, cinza, pálido e irreal.

Se eu tivesse o talento do Bosch para a pintura, o meu tríptico já teria um tema. Asa lateral direita: mulher, homem, indivíduo. A escolha. Painel central: homem, mulher, indivíduo, filhos. A caminhada; cada um na sua mas com tudo o que realmente importa em comum. Asa lateral esquerda: o bizarro fundamental; ser filho (a) e pai (mãe) ao mesmo tempo. Está aí a dualidade que ultrapassa os limites maniqueístas entre o paraíso e o inferno do Jardim das Delícias, a realidade confusa e angustiante que foge à compreensão lógica e enlouquece a balança da afetividade. Suspendo os dedos do teclado por uns segundos; olho pela janela do apartamento - céu azul-leitoso; ouço um ônibus frear, um helicóptero distante, uma buzina. E penso: quem sou eu? Filha, mãe, mulher, indivíduo. Em busca. Sempre. Da unidade e do amor que, refugiado do cinismo, da amargura e das chagas que ainda faltam sarar, acredito ser a cola para tantas facetas. Sou brasileira, idealista, apaixonada, passional, tresloucada, kamikaze. E não desisto nunca.

Dia desses uma amiga que, sem fazer esforço, habitou-se em meu peito, contou-me algo de que jamais me esquecerei. Ela disse que um filho adultesce apenas quando vê os próprios pais como crianças. Estávamos tagarelando há mais de três horas numa mesa de um restaurante que ela adora, comendo lingüiças à paisana; não as lingüiças. Nós. Ou melhor, ela. Seus filhos, hoje grandes meninos adultos, a proíbem de degustar uma iguaria tão deliciosa e, no entanto, gordurosa. Ela não dá a mínima. Ou quer que pensemos isso. Ela é misteriosa, quiçá meio cigana. Quem esses meninos pensam que são para querer me tratar como criança? - dizem os seus olhos marotos. Entretanto, bem lá no fundo, ela adora essa preocupação, essa supervisão materna às avessas: é a prova de que seus meninos, para sempre meninos, cresceram. Naquele final de tarde, com uma amiga, duas latas de coca-zero e lingüiças à parmegiana, digo, à paisana, entendi o pecado original do meu paraíso-ninho: com pais que vejo imensos e frondosos como carvalhos imortais, infalíveis e super-poderosos, não adultesço. Projeto-me às metades: meia-mulher, meia-mãe, meia-filha, meio-indivíduo. E o meu paraíso é ser inteira, lua-cheia, como a das noites frias na roça, fazendo sombra no chão e iluminando o lago onde os meus pais, de mãos dadas, olhos atentos ao neto, poderão me ver grande, brilhante e una como eles.  

Há quem seja entusiasta da mudança; tipos que tatuam na testa que preferem ser metamorfoses ambulantes a ter aquela velha opinião formada sobre tudo. Confesso: tenho opiniões estritamente formadas sobre muito pouco, outras em processo de formação e, algumas, não chegam a me convir. No entanto, a idéia de ser uma partícula magnetizada, cujos elétrons giram em torno de si mesmos num spin alucinado, alterando a polaridade da matéria em frações de segundos imperceptíveis, não me agrada. Talvez a metamorfose ambulante já tenha exercido um baita apelo sobre mim; hoje, as linhas retas, que eu possa traçar e definir, falam-me mais alto à alma. Quanto a ter opiniões formadas sobre tudo, bem, isso já deve ser um inferno de proporções neurotizantes.

O Evandro, que de troiano, baiano, poeta e blogueiro não tinha nada, escreveu uma canção inteligente. Qual seria o paraíso de que ele distava dois passos? Ácido? Óbvio demais. E nada óbvio me apetece. Fama? Talvez. Um chalé em Petrópolis? Quem sabe. Mas encerro uma certeza: a carta que ele narra na Rádio Atividade, escrita pela Mariposa Apaixonada de Guadalupe para o caminhoneiro Arlindo Orlando, é dele. Ou melhor, para ele. Evandro é Arlindo; e a sua baby, o seu amor, a sua casa, é a Mariposa Apaixonada. Penso que os faróis baixos vêm da tristeza de quem conheceu Calipso e encontrou - ou pensou ter encontrado o paraíso, mas sabe que é em casa que mora a segurança. Os pára-choques duros podem denotar a libido do reencontro, o que descarto, porque também é muito óbvio. Prefiro acreditar que a dureza veio da dor da odisséia, da aventura, dos encontros e desencontros consigo mesmo, das descobertas, das desilusões, do retorno. Um viajante - caminhoneiro ou Odisseu - precisa endurecer, formar crostas, pregar ao corpo uma armadura que o proteja nas próximas jornadas. Apenas um elemento me escapa nessa "viagem" do Evandro: quando ele se pergunta "não sei porque eu fui dizer bye, bye", para quem ou para o que exatamente ele disse adeus? Para a Mariposa, o amor e a casa, para início de conversa, ou para o paraíso, no qual ele nem chegou a entrar? E, de volta para buscar a amada, ele a levará consigo ao paraíso...?

26 de maio de 2011

mergulho


Inspirado por uma elucubração de Renato Pontual.

Olhava para o fundo da piscina, a água cristalina refletindo o sol do final da tarde, como se ali houvesse uma centena de minúsculos diamantes. Azulejos brancos, antigos, adornados com ramos de flores azuis, delimitavam aquele espelho d'água, que bem poderia ser uma lagoa ou o mar. No entanto, preferia espaços exíguos, onde não se perderia dentro de si mesma. A vastidão amargava em sua boca o gosto do infinito, do qual insistia em fugir.

Estava bem próxima à borda, os dedos dos pés, se os esticasse o suficiente, poderiam tocar a água. Seus olhos estavam semi-cerrados pela luz e pelo cansaço. Olhou para o céu. O ocaso, escreviam os boêmios, era vermelho, mas tal expressionismo funcionava apenas na poesia. A abóbada que cobria a cidade, o clube e a piscina era de nuvens róseas, com bordas cor de laranja, por onde vazavam os raios de sol que lhe tocavam a face. Apreciava aquela carícia. Prendeu os cabelos num coque firme, cobriu-os com a toca emborrachada dos nadadores e se manteve ali, de pé à beira d'água, o rosto voltado para o sol até que já não mais lhe pudesse sentir o calor. Era o fim das coisas, o fim das horas, o fim do dia; e até o sol, em sua hora, ia-se embora. 

Permaneceu. Não havia outros associados nem visitantes no clube e, em poucos minutos, o zelador fecharia as portas, não sem antes tocá-la de leve no ombro, como a acordá-la do mais remoto dos sonos, e dizer: "Hora de fechar, dona". Não se importaria, assim como não se importou nas últimas vezes. Todos iam-se antes dela, que ficava até o soar final do gongo, até a última luz se apagar.

Suspirou fundo. Sentiu de longe, carregado num balão por uma brisa suave, o aroma de temperos que as mães escolhiam para preparar o jantar, enquanto esperavam por seus filhos e homens. Ela jamais usava temperos e não comprava panelas, pratos, talheres e copos pois não possuía filhos nem um homem por quem esperar e para quem cozinhar. Baixou a cabeça e fixou novamente os olhos na água. Estava escura agora e parecia-lhe fria e densa, quase plástica.

Mergulhou o pé direito. Estava mais do que fria; aquela água era gelo a derreter. De repente lembrou-se que o universo é regido por algo denominado tempo e que este divide-se em anos, meses, dias, horas e estações. Era junho e o vento tocava a parte nua de sua costas, que vazava pelo maiô, num sopro áspero, de lhe arrepiar a pele. Sorriu um riso contido e torto; não era mera coincidência que poucos tivessem vindo ao clube naquela tarde. As pessoas tinham casas, famílias e jantares para preparar, atividades em nada semelhantes à exposição ao mau tempo à beira da piscina de um clube.

Ela era diferente. Anacrônica. Preferia a quietude do inverno, a solidão da água crispada, o som dos bem-te-vis nas amendoeiras e o temor paralisante de mergulhar naquele gelo líquido. Tocou o peito com a mão direita, os dedos arroxeados e endurecidos por causa do frio. Seu coração pulsava, mas não tão rapidamente como seria o caso de alguém que sentisse medo. As pessoas se habituam às melhores e às piores condições de vida. Natural ou forçadamente. Habituam-se até ao pavor. E acostumam-se com tal morosidade e torpor à comodidade e à adversidade que acreditam mesmo jamais ter vivido de maneira diferente. Acima de tudo, ela tinha pavor dos costumes.

Abaixou-se de joelhos e mergulhou as mãos. O gelo era cortante. Deixou-as submersas, revirando-as feito serpentes marinhas. Olhava as próprias mãos com uma sensação de estranhamento, como se não fossem suas, mas de outra mulher, em outro tempo, num outro planeta. Afundou um pouco mais, até a água lhe cobrir à altura dos cotovelos. O frio subiu-lhe pelos braços, alcançou o centro do seu cérebro e, em seguida, desceu-lhe espinha abaixo, envolvendo o seu corpo numa névoa espessa, glacial. Quando perdeu o tato e constatou que os dedos estavam completamente enrugados, rijos e sem cor, retirou os braços. O vento frio tocou-a ali e a sensação do ar roubando-lhe o calor do corpo para secar a pele foi insuportável.

Levantou-se. Estava acostumada demais com o pavor para mergulhar. O medo embaça a visão e a dela há muito havia se fechado para o mundo. Ouviu de longe uma coruja chilrear. Arrepiou-se inteira com aquele piado de morte, um augúrio de que talvez ela jamais viesse a mergulhar, a abrir os olhos e a viver novamente. Sentiu um movimento à sua esquerda. Era o zelador que caminhava em sua direção, ombros curvados e passos constrangidos. Mais uma vez ele teria que lhe pedir para sair, porque era chegada a hora de fechar o clube. Mais uma vez ela o acompanharia até a saída, enrolando-se em seu roupão amarelado, fingindo para si mesma que não se importava em ter passado uma tarde inteira à beira da piscina sem mergulhar. Mais uma vez. E àquela vergonha, ao sentimento de derrota de acompanhar o zelador com a pele seca e, ainda assim, fria, a isso ela não poderia se acostumar.

Ignorou o zelador, que já distava poucos passos dela. Inspirou fundo e reteve o ar nos pulmões. Não pensou. Nenhuma imagem lhe veio à mente, nada do presente, nem do passado. Naquele momento ela era não mais que um corpo desconhecido e sem consciência, em busca de si mesma. Deu um salto e jogou-se na água com os joelhos dobrados na altura do tórax, um feto de volta ao útero. A piscina era a sua mãe; a água era a sua mãe; o mundo eram os seus pais. Por alguns segundos, apenas o silêncio. E as bolhas de ar que lhe escapam aos lábios. Então ela sentiu o gelo, a friagem entrar por cada poro seu e fazê-la sentir-se menos fria por dentro. Quando voltou à tona, seus olhos estavam completamente abertos, seu corpo estava vivo e ela, plenamente desperta.       

25 de maio de 2011

ícaro

Inspirado num desabafo de Milene Portela. E para ela. Para mim. Por nós todos.


Quando nascem as asas de um homem
Menino, jovem ou velho
Primeiro lhe desponta um broto nas costas
Feito o coto de um membro amputado

Que pode ser apenas isso
Um broto a florescer
Ou um toco inerte
Que esqueceu terem lhe abortado um dia

O coto comicha, repuxa a pele macilenta
E rasga o tecido morto
Para fender espaço por meio da carne
Que, latente, respira ainda

E continua crescendo em direção ao sol
Para virar pluma, tornar-se asa
Quando o segundo botão, calombo escabroso
Aponta para fora, fleimão que ele é

E a comichão aumenta, rouba o juízo do homem
Que com dois cotos às costas ainda é pássaro no ninho
Um lado mais disforme, teso e pesado que o outro
Pois ali o broto já vira tronco, com penas a fingir de espinhos

O temporão, no entanto, até agora um bulbo a coçar
Ainda é gânglio que fere o couro, lacera os músculos
E sussurra quente das estranhas, ribombada de um vulcão: "Salta"
Expondo ao dia a alma cega, acostumada ao oco do breu

Agora já não há mais cotos nem galhos a lhe pesar
Mas uma ossatura completa e flexível de um par alado
E o homem, de seu ninho finito de possibilidades
Encara o horizonte, as nuvens, o sol e o abismo

As asas recém-nascidas deixaram de coçar e repuxar
É o destino de apêndices jovens cicatrizar com vigor
Mas eles ferem mais do que um membro amputado
Pois o que já não existe não lhe pode causar inquietação

A dor tenebrosa pede passagem pelas asas agora
Quando o homem precisa lidar com o peso da liberdade
Decidir petrificar-se no ninho, atirar-se dele, rastejar ou voar
Porque nada dói mais do que a escolha de ícaro

24 de maio de 2011

dream on, but don't imagine they'll all come true


Billy Joel, "Vienna". Para quem, como eu, dá a impressão muito errada de estar correndo sem saber para onde, quando o que ocorre é justamente o oposto. 

"Slow down, you crazy child.
You're so ambitious for a juvenile.
But then if you're so smart, tell me why are you still so afraid?
Where's the fire? What's the hurry about?
You better cool it off before you burn it out.
You got so much to do and only so many hours in a day.

Don't you know that when the truth is told
That you can get what you want or you can just get old?
You're gonna kick off before you even get halfway through.
When will you realize Vienna waits for you?

Slow down, you're doing fine.
You can't be everything you wanna be before your time,
Although it's so romantic on the borderline tonight, tonight.
Too bad, but it's the life you lead.
You're so ahead of yourself that you forgot what you need.
Though you can see when you're wrong,
You know, you can't always see when you're right, you're right.

You've got your passion. You've got your pride,
But don't you know that only fools are satisfied?
Dream on, but don't imagine they'll all come true.
When will you realize Vienna waits for you?

Slow down, you crazy child.
Take the phone off the hook and disappear for a while.
It's all right you can afford to lose a day or two.
When will you realize Vienna waits for you?

Don't you know that when the truth is told
That you can get what you want or you can just get old?
You're gonna kick off before you even get halfway through.
Why don't you realize Vienna waits for you?
When will you realize Vienna waits for you?"



o melhor bolo do planeta

Para a Manu, que é como o Carlos, nos melhores sentidos. E para os meus pais, que também souberam cozinhar o seu próprio destino.


Em 1987, um economista português que atende pela alcunha de Carlos Brás Lopes, decidiu chutar o pau matemático da barraca - ou o pau da barraca matemática; aqui a ordem dos fatores altera, sim, o produto. Conto-lhe a equação, digo, a história, e você aplica a fórmula de Bhaskara para decidir o resultado. Enfim, foi preciso que o sujeito, não por ser português, mas por ter sucumbido ao seu lado demasiado humano, cursasse cinco anos de Faculdade, sobrevivesse a um casamento falido e se deparasse com outro já a lhe bater às portas, para descobrir que taxas de juro, equações variáveis e oscilações da bolsa de valores jamais lhe alimentariam da paixão que ele precisava para dar um passo após o outro, com significado e valor; algo muito diferente dos passos trôpegos e incertos dos autômatos, que vivem imobilizados pela culpa de tentar e pela certeza da covardia em desistir de seus sonhos, suas paixões e ambições. Esse é o problema dos sonhos e da resposta ao chamado das vocações: você é obrigado a sair da inércia antes que um bonde lotado de gente com bilhetes para o futuro lhe passe por cima, estraçalhando-lhe os sonhos e amputando-lhe as vocações. Estar no bonde é melhor e mais recomendável do que fora dele, atolado no meio do caminho entre a culpa e a redenção.

Porque Carlos Brás é um português inteligente, logo percebeu que, uma vez autômato e trôpego como um economista, o bonde do futuro - e do inexorável avanço do tempo - logo chegaria à sua estação fantasma e , na correria da vida, para chegar mais rápido ao futuro, não pararia para ele. E isso não seria culpa do maquinista, que conduz o bonde igualmente para todos - nós é que escolhemos a modalidade da passagem: rápido, allegro ma non troppo, devagar, quase parando e ausência de bilhete. O fato é que, de longe, o que o condutor do bonde avista no ponto não é Carlos, o economista. É um Pedra Carlos cor de cimento, semelhante a uma forma humana, sentada com os ombros encolhidos, olhando para o nada. Mas o maquinista sabe bem, não é nada bobo, que rochas não possuem ombros, nem se sentam e muito menos olham para o vazio. O rapaz que conduz o bonde lotado para o futuro sacode a cabeça, esfrega os olhos com as costas das mãos, belisca-se para ter certeza de que não está a sonhar e olha novamente, cada vez mais próximo do ponto. Não, aquilo não poderia ser um passageiro. E pensa: "Como as rochas podem adquirir formatos tão peculiares, como os de corpos humanos petrificados?" Desnecessário afirmar que o bonde não parou para Carlos. E, por pouco, na velocidade de quem se move, que é sempre mais alta em relação ao que jaz inerte, quase não lhe amputa os braços, outrora estendidos em busca da redenção, fruto da culpa por sonhar.

Foi pelo susto na estação que Carlos Brás, o economista português, decidiu fazer como a Cecília aconselha: substituir o destino pela probabilidade. Ele pensava que o seu destino estivesse selado às estatísticas, aplicações e previsão de mercados. Mas qual seria a probabilidade de o português ser bafejado pela sorte de encontrar sentido na vida, seguindo um destino que, a cada manhã, ele se perguntava ser legitimamente seu...? Fez algumas contas, utilizou-se dos números como sabia e pesou o destino e a probabilidade. O segundo prato rendeu a balança. E Carlos, num átimo epifânico, concluiu que jamais passaria pelo embaraço de ser confundido por uma pedra novamente. Foi então que ele chutou o pau da barraca.

Ocorre que uma tenda veio ao chão, mas outra já estava pronta para ser armada e servir-lhe de morada. O Carlos, ex-economista, descobriu que gostava de caçarolas, panelas, tabuleiros, pratos, taças, colheres, batedeiras e claras em neve. E descobriu que podia, literalmente, pôr as mãos na massa e, eventualmente, ganhar dinheiro com isso. Abriu um restaurante de comida regional em Lisboa. Virou chefe de cozinha, feliz da vida. Então, o português criou uma receita de bolo de chocolate, ingrediente que acreditava ser imprescindível a qualquer um que desejasse, como ele, abraçar a probabilidade e se livrar do peso do destino. Fato: o bolo de chocolate do Carlos se tornou a estrela do cardápio. Conta-se em Lisboa que havia quem fosse ao restaurante já alimentado, só para pedir o doce, prato principal da casa. Há duas possíveis razões para o sucesso do bolo: ele é realmente, escandalosamente delicioso ou, versão em que prefiro crer, o chocolate usado na receita trazia a paixão, a vitalidade e a leveza da probabilidade aos estômagos pesados de destinos indigestos.

Esse é o Carlos. E, aquele, é o bolo.

Não demorou muito para o Carlos precisar abrir outro negócio. Não pense você que o português optou por uma filial do primeiro restaurante; já lhe disse, portugueses são inteligentes. Dessa vez, ele abriu uma pequena confeitaria, só para vender a sobremesa. Chamou o estabelecimento de "O Melhor Bolo de Chocolate do Mundo". Quando alguma coisa vem a ser a melhor coisa do mundo, não pode ser complicada; há apenas três versões da iguaria: tradicional doce, com 53% de cacau; meio-amargo, com 70% de cacau; e zero açúcar, para diabéticos e magras por opção, que também têm o direito de experimentar o melhor bolo de chocolate do mundo. A receita não leva farinha, nem fermento - o que corrobora a tese do Carlos e da Clarice de que o destino pode ser suplantado pela probabilidade. Afinal, receita de bolo não é apenas uma receita de bolo, com ovos, leite, farinha e fermento...? Pois é, cara-pálida. O melhor bolo de chocolate do mundo não segue a receita do destino.

Algum tempo depois, o português, com o seu velho espírito de colonizador, trouxe a franquia para o Brasil. A primeira aportou em São Paulo. Em seguida Brasília, Rio de Janeiro e Salvador também foram sitiadas pela guloseima. E o negócio é feito uma bola de neve, ou melhor, de chocolate, rolando e se agigantando até tomar todas as capitais tupiniquins. As lojas seguem o mesmo padrão da primeira confeitaria inaugurada em Lisboa, em 1987, e a receita é a mesma; um meio-amargo do Leblon é idêntico ao meio-amargo do Morumbi. O Carlos é exigente e honesto; se o sol brilha para todos, o seu bolo será o melhor do mundo em cada canto do mundo onde alguém quiser prová-lo.

Talvez um dia eu visite Lisboa. Dizem que é uma cidade encantadora. E se isso acontecer, talvez eu faça malabarismos incríveis para atrair a atenção do Carlos e ter uma prosa com ele. Talvez ele, um lusitano sonhador e corajoso, tenha compaixão pelo meu dilema brasileiro de não desistir nunca, engolir o destino a seco e fingir que a probabilidade de ser infeliz não existe. Tenho encontrado um bocado de gente que, para lá dos quarenta anos, faz como o Carlos: chuta o pau da barraca que não lhe cabe mais e parte para outra. Se isso acontece, é porque muita gente não engole o destino que pensava ou acreditava ser o seu e, com medo de ser atropelado pelo bonde do futuro, passa a escrever um novo roteiro, com probabilidades que se tornam possibilidades, sonhos que viram objetivos, um destino próprio, diverso e renovado. Se o melhor bolo de chocolate do mundo ajudar nesse processo, o meu preferido é o tradicional doce, com uma bola de sorvete de creme. E eu substituiria todas as refeições insossas de arroz com feijão da vida pelas guloseimas que têm o gosto incomparável do destino reescrito. 

21 de maio de 2011

registros

Para Milene Portela, Luciana Hipólito, Ivy Gobeti, Maíra Zanoli e Martha Bueno: pequenas, grandes garotas que salvam os seus arquivos.


Há certas ocasiões em que tudo que um escritor precisa é de um diário. Não há estatísticas para isso - e confesso que números sempre foram mais uma pedra em meu sapato do que uma mão na roda; mas o fato é que ninguém mais escreve diários. Dia desses fui a uma papelaria com ares de loja de conveniência em busca de um diário à moda antiga, com um cadeado na capa e uma pequena chave de valor simbólico, apologia da privacidade. Não posso dizer que me surpreendi ao não encontrá-lo; viver à moda antiga, estando aí inclusos escrever e resguardar a privacidade, tornou-se artigo dos mais démodé entre o que se convencionou ser o ideal da vida moderna. As atividades mais próximas de um diário, ao que parece, são as mensagens instantâneas do Twitter e as declarações à guisa de "o que estou pensando no momento" do Facebook. É claro que ambos os casos não se equiparam ao hábito de auto-confissão de quem escreve um diário e, a bem da verdade, nem se propõem a isso. Pessoas mudam, o mundo evolui e costumes tornam-se obsoletos. Não aceitar a condição inexorável da volubilidade, empacar no meio do caminho, vestir a mortalha da nostalgia e insistir em cultivar hábitos antigos é doloroso e contraproducente; deve haver maneiras mais práticas de dar vazão à verborragia sem que se precise sair em busca de um diário com chave e cadeado.

Se você não for um autor de renome que tem a prerrogativa de publicar um livro de memórias, que nada mais é do que um diário póstumo, escrito de trás para frente, e ainda assim encurvar-se sob o peso do desejo onfalópsico de falar de si nos moldes de um diário, para esse mal há um paliativo: os blogs. Pensando melhor, esse argumento que acabo de usar é esdrúxulo. Eu poderia simplesmente comprar um caderno, rechear as páginas com conteúdo auto-avaliativo e guardá-lo na prateleira mais alta da estante. No entanto, o desejo é mais profundo e um pouco mais complexo: tanto ao autor renomado quanto ao pretenso escritor não basta escrever sobre si; é preciso que alguém leia essa confissão e, por meio da confidência compartilhada, haja a redenção. A escrita é a forma mais elaborada da fala. Quem deseja falar sobre si mesmo em tom declarativo tem qualquer culpa a expiar e pretende se redimir, ainda que inconscientemente. A absolvição do escritor são os olhos do leitor e, a priori, todo diário tem o desejo secreto de ser descoberto e avidamente explorado. Se não fosse dessa forma, não haveria biografias, álbuns de retratos, nem livros de memórias e ninguém guardaria registros de correspondências ou cartas de amor. Afinal, descartar é mais conveniente do que salvar e quem preserva evidências palpáveis da memória não o faz por mero acaso: naquele que conserva registros do que já não existe a não ser no universo da lembrança, jaz o desejo de que alguém abra a caixa de Pandora do passado e sopre a poeira em olhos alheios.

Por vezes o passado me ronda como fantasmas agourentos; em outras ocasiões, como suaves borboletas. A agonia ou a placidez dependem, obviamente, da lembrança e das cores com as quais ela ficou impressa na memória. Conheço gente que, à revelia de reminiscências trágicas, retém toda recordação em techinicolor e, vezenquando, visita o que ficou para trás como se estivesse dando um passeio no parque numa tarde de domingo. Meu êxito em conter a inveja desses viajantes do tempo é nulo pois pertenço a outro grupo: aquele que fotografa o passado em preto e branco e, na melhor das hipóteses, em sépia. Talvez por isso as reminiscências que guardo do passado sejam apenas isso: vagas e brumosas lembranças. Nas prateleiras e gavetas da minha vida não há registros tangíveis do que passou. Escolhi compactar e formatar meus arquivos dessa maneira não porque eu odeie o passado, ao contrário; é por viver dele que, muitas vezes, encontro-me enraizada como um tronco retorcido à beira da estrada. Entre nós - o passado e eu - é imperativamente desaconselhável a existência de provas físicas, como cartas, fotografias, documentos e registros; na minha caixa de Pandora só posso guardar o que ainda acontece, pois o que já aconteceu nunca me vem luminoso, brando e doce como um passeio no parque. Entre fantasmas e borboletas, são os primeiros que vejo mais quando abro o meu livro de memórias. E calafrio é o que sinto nessas ocasiões.

Por outro lado, as cores da memória - e das fotografias - dependem grande parte das lentes com as quais o passado é retratado. Há dias azuis que, a despeito do real que eu sei existir, enxergo cinza. Quem tem as retinas tingidas de chumbo de dentro para fora, dificilmente será capaz de pintar um quadro que não seja monocromático, monótono, monolítico, autônomo. Alguém me disse certa vez que os meus temas são sempre os mesmos: um tom sobre tom de cinza.Talvez este seja um defeito da alma que me comprometa a visão, mas quando observo um retrato em branco e preto, ainda que de uma cena bela e feliz, é sempre solidão que vejo. Retinas escuras e lentes acortinadas devem atrair o cinzento e o nebuloso como um ímã porque, na ausência de cor, não há passado nem presente que se possa resguardar na companhia de um segundo observador. Pessoas mudam, o mundo evolui e costumes tornam-se obsoletos. Eu gostaria mesmo é de mudar a cor dos meus olhos, a começar pelo avesso, até o colorido interior jorrar para o mundo lá fora. Dessa forma talvez eu pudesse enxergar em techinicolor cada instantâneo, vendo-o envelhecer, lembrança em que se transforma, sem desbotar nem amarelar. E assim, quem sabe, o temor dos registros me abandonasse de vez.         

20 de maio de 2011

colibri

O texto a seguir é parte de uma carta que escrevi numa segunda-feira nublada, ouvindo a celeuma das crianças de uma escola a trinta metros abaixo da janela do apartamento onde estava, sentindo a brisa fria e salobra bagunçar-me os cabelos. As palavras abaixo não nasceram para ser publicadas, mas para fazer brilhar os olhos de alguém que amo, trazer-lhe um sorriso aos lábios e aquecer-lhe o coração nos momentos em que nem a algazarra das crianças, nem a brisa e nem eu poderíamos preencher - ou ter preenchido - suas lacunas. Por íntima, vai aqui apenas parte da missiva. E porque fez brotar tanta emoção, cedo à tentação de compartilhá-la com outras violetas.  


Há uma canção de um violeiro que diz assim: 

“(...) Disparo balas de canhão 
É inútil, pois existe um grão-vizir 
Há tantas violetas velhas 
Sem um colibri(...)” 

Até pouco tempo, havia feito morada em minha consciência a idéia de que já me tornara uma “violeta velha”, sem nunca ter provado o beijo de um colibri, nem avistado, atônita, o pulsar de suas asas que, de tão ágeis e leves, mais se assemelham a pinceladas num quadro expressionista. Houve também o tempo em que ainda disparasse balas de canhão, eu, ilha flutuante, contra sólidos continentes. Mas, uma ilha sem um grão-vizir é como um sultanato sem o seu califa; os disparos são aleatórios e desmedidos e o coração, vazio e sem um senhor, é território estéril, donde brotam flores que, por frágeis, transmutam-se em soldados violáceos a travar quixotescas batalhas.

No entanto, cada disparo solitário de canhão é um grito abortado, que morre na garganta antes de chegar ao palato, inflar-se ao vento e ganhar a liberdade das palavras. E todo grito emudecido e áspero é o som incontido de um temor; pois a ilha teme a glória e a maldição de poder-se governar no anonimato das memórias, sem um náufrago que aporte em suas praias, monte ali o seu palácio e, na indolência do ocaso, quando o céu laranja parece ser ainda maior e mais infinito do que a própria vida, vá visitar a estufa onde a flor aguarda pela redenção de um beijo, o primeiro ruflar silencioso das asas de um colibri-vizir.

Ainda sou ilha. Mas, “ilha” não é apenas um pedaço de terra cercado de água. “Ilha” é qualquer coisa que se desprendeu de qualquer continente. Assim, um garoto tímido, abandonado pelos amigos no recreio, é uma ilha; um velho, que esperou a visita dos netos para o Natal em que ninguém compareceu, é uma ilha; até um sujeito, assoviando leve e bem-humorado, numa rua cheia de trânsito e stress, é uma ilha; tudo em nosso peito, que não morreu, cercado por tudo o que mataram, é uma ilha. E toda ilha é verde. Uma folha de plátano emaciada, tombando da árvore ao solo, é uma ilha cercada de vento. Até a lágrima é uma ilha, deslizando no oceano da face.

Ocorre que, nos raros momentos em que soldados ilhados baixam a guarda e avistam ao longe a presença de outra ilha, o temor dos gritos abortados, dos sonhos desconhecidos ou sepultados e da solidão parece agigantar-se no coração da terra e crescer para transbordar, para implodir, para inexistir. Dessa erupção formam-se arquipélagos; e as violetas, de velhas, virgens e violáceas, tornam-se frescas, desbravadas e brandas. Ah, mas a junção de ilhas não é fácil, nem costumeira... E muito embora seja o desejo mais íntimo de toda ilha, é nos gritos ocos, roucos e surdos da solidão, ainda que a dois, a três ou aos milhares, que muitos homens e mulheres hão de continuar disparando seus canhões inutilmente, sem a segurança e o aval de um vizir e sem o beijo indelével de um colibri.

Sim, ainda sou ilha. Mas meus territórios são agora mais vastos e meus olhos, outrora velados, hoje vislumbram os contornos dos domínios meus com mais nitidez. E minha ilha, hoje maior em extensão, propriedade e significado, possui um vizir a regar-me as violetas num intervalo de tempo que, por intermitente, estende-se ao infinito, tal qual o céu no ocaso, a inspiração dos poetas e o querer dos amantes.

karaokê


No longínquo ano de 1990 e lá vão mais alguns dígitos, os poucos, porém leais amigos que eu tinha gostavam de se entregar ao deleite patético do karaokê. Naquela época, "karaokê" significava um bando de garotos amontoados na Praça da Matriz, cabulando a aula de Educação Física e cantando a plenos pulmões, sem microfone e muito menos tela de LCD com o videoclipe da música e as legendas amarelas correndo lá embaixo. Nostalgia à parte, a brincadeira era muito melhor daquele jeito: o céu era sempre azul; o sino da igreja soava alto, assustando a molecada; as mochilas de borracha ficavam sujas de terra e de grama; perdíamos os papéis avulsos do dever de casa; gastávamos o trocado para o ônibus com picolés e pipoca; penteávamos os cabelos uns dos outros; fingíamos ser politizados e discutíamos sobre a influência imperialista norte-americana; líamos os gibis da Marvel; paquerávamos os garotos e garotas dos nossos sonhos, que nunca vieram a ser realidade; prometíamos que, num dia de muito calor, nadaríamos no chafariz da Praça; ríamos às gargalhadas, até nos faltar o ar; subíamos na parte mais alta do coreto. Éramos jovens imperadores, semi-deuses, felizes, ridículos, imortais; e cantávamos.

Músicas de letras fáceis não nos agradavam. Nada deliberadamente gratuito ou fácil demais prendia a nossa atenção juvenil e embasbacada por mais de quinze minutos, nem mesmo o Andy Warhol em pessoa, pintando a Marilyn nas paredes da escola ou nos hábitos das freiras. O desafio era o que nos fazia rolar o sangue mais quente, mais rápido e mais vivo nas veias: duelos físicos e intelectuais; ser o primeiro da classe; ser o líder nos esportes; ser o mais engraçado, o mais tolo e o mais galanteador; beijar a moça mais bonita; namorar o rapaz mais promissor; tirar dez em Física; falar alguma coisa muito espirituosa para constranger a professora baixinha, loirinha e boazinha de Trigonometria; e cantar "Faroeste Caboclo", "Nowhere Fast" ou qualquer outra canção rápida e sem refrão. Esse era o nosso karaokê. E nele havia o mais mortal, (des)honroso e inesquecível dos desafios: ver qual de nós seria capaz de cantar a música inteira, sem sair do ritmo, desafinando pouco - melhor seria se não desafinássemos nada - e, glória máxima do olimpo adolescente, sem errar a letra.

Lembro-me de uma garota sardenta, de longos cabelos castanhos e olhos esverdeados, que vivia com uma caneta pendurada ao pescoço por uma cordinha de poliéster. Ela tinha diversas dessas canetas, cada qual de uma cor mais vibrante e cítrica do que a do dia anterior. Os traços de seu rosto não me escaparam à memória; o seu nome, sim. Quando os garotos falavam qualquer coisa que a aborrecesse, ela retirava a caneta do pescoço e girava-a pela cordinha, tal como o faria um vaqueiro com o seu laço, prestes a capturar o touro. Os meninos mais lentos não escapavam e voltavam para a casa com um pequeno "galo" na testa; os mais espertos fugiam das chibatadas e, livres, vitoriosos e arrogantes, corriam até o topo da Praça, rindo-se da amazona das canetas. Ela era a única, entre dezenas de garotas e garotos espinhentos, que sabia cantar "Faroeste Caboclo" inteira, sem errar. Mas o que nos assombrava mesmo era quando ela o fazia de trás para frente; então, boquiabertos, ficávamos mudos, num silêncio que era mais um sinal de temor do que de respeito, e encarávamos o rosto dela, a sua boca, seus olhos verdes que faltavam faiscar e a caneta, que ela girava no dedo indicador, distraída, para acompanhar a batida da canção.

Mas houve um desafio que ninguém foi capaz de vencer: cantar "Nowhere Fast", uma das várias canções do filme "Ruas de Fogo", de 1984, em que Diane Lane, jovem, lisa e fresca como um cisne, faz o papel da mocinha roqueira que é seqüestrada pelo bandido, motoqueiro e igualmente roqueiro Willem Dafoe. O mocinho, na época aspirante a galã - ou talvez o fosse de fato, não saberia dizer - sumiu na poeira imperdoável do tempo. De qualquer forma, ele é um mero coadjuvante no enredo: fala pouco, bate um pouco mais, não canta e só pilota motocas alucinadas e faz umas caretas de "vou conquistar o seu coração, baby. For-ever!". "Ruas de Fogo", assim como "Top Gun", "De Volta Para o Futuro", "Goonies" e "Curtindo a Vida Adoidado" eram apenas algumas das obsessões cinematográficas daquela época e entre a nossa faixa etária. Melhor do que assistir aos filmes, era esperar que eles fossem reprisados na Sessão da Tarde para que pudéssemos gravá-los em fita VHS. Nenhuma conveniência moderna, como a interatividade do assinante na programação da TV da Gisele Bündchen, nenhum DVD blu-ray, nada se equipara à excitação da espera pela reprise naqueles tempos: desmarcávamos compromissos, deixávamos de estudar para a prova, não atendíamos ao telefone, tudo para ficar de olhos grudados na tela e ouvidos atentos ao plim-plim para, só então, apertarmos o botão de REC e respirarmos aliviados.

    
"Nowhere Fast" é ágil e vigorosa; sua letra é longa, rápida e complicada e até hoje, confesso, só consigo cantá-la se acompanhada de um papel com a letra impressa em caracteres grandes, em negrito, de preferência; "Faroeste Caboclo", também. Pois é; certos desafios são insuperáveis e certas distâncias, intransponíveis, ainda que o tempo sopre, levante a poeira, cubra algumas estátuas no jardim e revele outras. Há estátuas que, quando escondidas, fazem-nos levantar as mãos para o céu e agradecer a anjos e demônios por isso; outras, quando surgem - ou ressurgem - dão um frio na barriga, que vai subindo pela espinha feito uma serpente úmida e maliciosa, que nos hipnotiza a mente e cerra-nos os olhos. Esse é o mal do tempo: ele passa e não volta; e nós, peões de um xadrez arbitrário, viramos estátuas de sal ao olhar para trás. Ou empacamos de puro terror de andar para a frente.

A música que derrotou cada um dos meus amigos inflados de auto-estima e segurança fala sobre isso, ainda que de uma maneira muito anos oitenta, com baterias retumbantes, guitarras estridentes e, o que não poderia ser mais óbvio, um coral. Fala também da juventude que transborda sonhos, ambições e vontades, mas que tem poucos objetivos e metas para aonde direcioná-los. Nada muito complexo, na verdade; a mensagem é clara: mesmo que você não tenha lugar algum aonde ir, vá depressa para lá e, acima de tudo, fuja do passado; não há nada errado em não ter para aonde ir, mas você deve ir. E rápido.

Nos idos de 1990 e mais alguns dígitos, eu ouvia essa música, tentava decorar a letra para impressionar os meus amigos e, quem sabe, fazer ainda mais bonito do que a menina das canetas (a do "Faroeste Caboclo"), mas nunca reservei cinco minutos para entender o que a cantora dizia. E este é outro mal do tempo: insistimos em revisitar as coisas e, de repente, boo! Elas fazem sentido. E o que antes era apenas melodia, vira elucubração mental. Talvez eu esteja apenas muito nostálgica, ou talvez a chegada do frio tenha me azedado um pouco, o que é bom, na verdade, pois assim tenho inspiração para escrever essas bobagens que poucos lêem e menos ainda comentam. Acaba de me ocorrer uma frase que ouvi de uma analista de uma amiga (essa história de "amiga" às vezes cola, então não me custa nada tentar). Segundo ela, o escritor feliz não produz. É preciso dor, mágoa e nostalgia para que os pensamentos virem palavras escritas. Tenho um amigo - e esse é real, garanto - que desaprova o uso de palavras viscerais em meus textos. Mas, para o exemplo acima, não consigo pensar em outro verbo senão "digerir". E "vomitar". Segundo a lógica da analista, o escritor digere a tristeza, vai ruminando a dor e, então, vomita poesia, prosa, conto ou um Prêmio Pulitzer. Nunca se sabe...

Voltei a ouvir "Nowhere Fast" numa época da minha vida em que, eufemismos às favas, não tenho ido a lugar algum. A bem da verdade, sou um barco velho e carcomido por traças, ancorado por mil correntes a um porto fustigado por tempestades e granizo. Vejo o mar, as ondas quebrando na praia, as caravelas ganhando distância e, inerte, canto a música de "Ruas de Fogo". Mas, então, a medida que o ritmo vai crescendo, sinto uma vergonha e um pesar imenso de não me aventurar em mar alto, mesmo que seja para naufragar. Porque morrer na praia não é apenas patético; é a prova cabal de que a vida passou e que você a viu de longe, pela janela exígua do porão do navio. É um atestado indelével, humilhante e doloroso de covardia. Nos anos noventa eu tinha tanta coragem, tantos sonhos e tanto querer... Não sabia exatamente para onde ir, mas caminhava. E rápido. Como diz a canção: "não sei de onde tirei a idéia genial de que eu era legal, tão só e independente". Pois é. Certos desafios existem mesmo para serem apenas isso: desafios.

"Lying in your bed and on a Saturday night
You're sweatin' buckets and it's not even hot
But your brain has got the message
And it's sending it out
To every nerve and every muscle you've got

You've got so many dreams
That you don't know where to put 'em
So you'd better turn a few of 'em loose
Your body's got a feeling that it's starting to rust
You'd better rev it up and put it to use

And I don't know how I ever thought that I could make it all alone
When you only make it better
And it better be tonight
And we'll fly away on those angel wings of chrome in your daddy's car
Waiting there for you tonight
I'll be there for you tonight

Even if you don't have anywhere to go
You go down on the pedal and you're ready to roll
And even if you don't have anywhere to go
You go down on the pedal and you're ready to roll
And your speed
Is all you'll ever need
All you'll ever need to know
Darlin', Darlin'-

You and me we're goin' nowhere slowly
And we've gotta get away from the past
There's nothin' wrong with goin' nowhere, baby
But we should be goin' nowhere fast

Everybody's goin' nowhere slowly
They're only fighting for the chance to be last
There's nothin' wrong with goin' nowhere, baby
But we should be goin' nowhere fast
It's so much better goin' nowhere fast

Stalkin' in the shadows by the light of the moon
It's like a prison and the night is a cell
Goin' anywhere has gotta be heaven tonight
'Cause stayin' here has gotta be hell
Dyin' in the city like a fire on the water
Let's go runnin' on the back of the wind
There's gotta be some action on the face of the earth
And I've gotta see your face once again

And I don't know where I ever got the bright idea that I was cool
So alone and independent
But I'm depending on you now
And you'll always be the only thing that I just can't be without
And I'm out for you tonight
I'm comin' out for you tonight

Even if you don't have anywhere to go
You go down on the pedal and you're ready to roll (ready to roll)
Even if you don't have anywhere to go
You go down on the pedal and you're ready to roll
And your speed
Is all you'll ever need
All you'll ever need to know
Darlin', Darlin'

You and me we're goin' nowhere slowly
And we've gotta get away from the past
There's nothin' wrong with goin' nowhere, baby
But we should be goin' nowhere fast

Everybody's goin' nowhere slowly
They're only fighting for the chance to be last
There's nothin' wrong with goin' nowhere, baby
But we should be goin' nowhere fast
It's so much better goin' nowhere fast

Godspeed
Godspeed
Godspeed
Speed us away!" 

18 de maio de 2011

sucesso?

"Ser bem-sucedido é algo diferente para cada um. Respeite isso."

by Alex Noriega

só-dade

Quem disse que tudo o que é bom é ilegal, imoral ou engorda?

"Naptime", Matt T.

Extra!


A nobreza da Inglaterra festeja um casamento de conto de fadas;
Um sujeito do FMI é preso na primeira classe da Air France;
O corpo do Barbudo terrorista é atirado ao mar;
O MEC adota um livro que afirma que o aluno pode falar "os livro",
Mas que deve tomar cuidado com o preconceito lingüístico;
Uma mineira entra para o Guinness como a mulher mais velha do planeta;
Mãe e filha são proibidas de entrar num avião porque são pesadas demais;
Um moleque chinês brinca de esconde-esconde e fica preso entre duas paredes;
O Bolsonaro está se lixando para o Conselho de Ética;
Mudaram a data do concurso de Miss Brasil esse ano;
O Roberto Justos ganha um milhão de reais por mês do SBT,
E não dá Ibope;
A Coca-Cola patrocina a Folha de São Paulo;
Um pessoal de Ribeirão Preto envenena 50 gatos,
E os sobreviventes são adotados por uma galera do Orkut;
A Al Qaeda já tem um sucessor - egípcio - para o Barbudo que está no mar;
Estragaram o letreiro oficial de Auschwitz há um tempo,
E agora os curadores do museu restauraram a placa;
Médicos americanos querem tirar o palhaço do McDonald's das propagandas;
Melancias estão explodindo na China e os fazendeiros não sabem porque;
Cinco mil pessoas vão fazer passeata contra a homofobia em Brasília;
Astrônomos descobrem planetas que vagam sem órbita pelo espaço;
Nova York realiza campeonato mundial de Luta de Travesseiros;
Quadrilhas organizadas roubam cabelo nos Estados Unidos;
Americano de 40 anos já comeu 25.000 Bic Mac's;
Dispenso notícias esportivas;
Sessenta mil brasileiros vivem com parceiros do mesmo sexo;
A Naomi Campbell não vai celebrar o seu aniversário esse ano;
A Sharon Stone leva os filhos para passear de mini-saia e salto alto;
Americanos estão adicionando melatonina à receita de bolo;
O Lars von Trier causou comoção em Cannes ao afirmar que já foi nazista;
O Obama vai homenagear a CIA por ter dado cabo do Barbudo;
Cansei. Acontece muita coisa o tempo todo.
E o mundo muda rápido demais.
E eu estou caminhando muito devagar...

6 de maio de 2011

carrie e o bullying

A agenda sócio-antropológica do momento, revestida de pinceladas políticas tímidas, ainda que contumazes, tem-se ocupado do fenômeno do bullying. O termo deriva do substantivo "bully" que, em inglês, quer dizer "valentão". Ainda hoje a palavra é utilizada em sua acepção original: "valentão", aqui, não designa adultos como o Rambo, nem o Capitão Nascimento - muito embora os exemplos anteriores não passem de representações caricaturais de homens possivelmente reais. O arquétipo do "bully", já interiorizado por povos anglo-saxões, suscita a criança em fase escolar, independentemente da idade e do gênero, que humilha e agride verbal ou fisicamente seus colegas mais fracos, menores, mais tímidos e com a crueldade da infância menos aflorada. O problema de um assunto tão antigo quanto as montanhas cair no gosto da mídia, do público e da agenda política é que, como se banhado por uma luz de pretensa revelação, tivesse acabado de surgir aos olhos e à consciência dos pais inexoravelmente preocupados com o bem-estar de seus filhos; do corpo docente engajado; de psicólogos, intelectuais e teóricos ávidos por debater o assunto e, como a caçamba que segue a corda, lucrar com a publicação de livros de auto-ajuda; de ONG's conscienciosas que prestam extenso auxílio às vítimas de bullying, preparando-as para se adaptar à realidade e ao sistema e para voltar ao mercado de trabalho e à dignidade de uma vida social plena.

Debater, televisionar e publicar sobre bullying tornou-se algo tão corriqueiro que a palavra, originalmente estrangeira e, por isso, grafada em itálico, não o é mais: agora, basta o termo bullying. O termo incorporou o léxico tupiniquim; despensa o italicismo na grafia e as aspas. E entre a exaustiva utilização da palavra - e do conceito imbuído por ela - e a queda-livre em direção ao universo paralelo do kitsch fundamental, já não há mais uma linha divisória. Na ausência de um portal para segregar informação categorizada da exploração aleatória de um fenômeno que jamais chegou a ser novidade, o bullying transformou-se em quadro de estatísticas, pauta obrigatória de revista semanal, clichê máximo para a justificativa de todo mal envolvendo adolescentes em escolas pobres, ricas, paupérrimas e milionárias. Sugerir o bullying à revelia - e com vistas ao planejamento eleitoral, à agenda de psicólogos, à venda de periódicos e à audiência de programas de TV por assinatura - como causa e meio para a violência latente da sociedade adulta não é apenas uma analogia grosseira; é uma prova cabal de que nós, eleitores, leitores, espectadores e pais, somos considerados pelo Establishment como uma massa amorfa de acéfalos cegos, a babar sobre as gravatas.

Crianças, pré-adolescentes e adolescentes não estão apenas em fase de formação de caráter, valores, ética e crenças, mas, principalmente, num momento de desenvolvimento de estruturas cerebrais que, a posteriori, são responsáveis pelas condições cognitivas que denominamos de "caráter". Crianças são, por definição e natureza, seres com entendimento empático rústico, uma vez que o hipotálamo, região do cérebro responsável por tal habilidade, encontra-se em desenvolvimento até, em média, os 16 anos de idade. Entende-se por empatia a resposta afetiva vicária a outras pessoas, ou seja, a resposta afetiva apropriada à situação de um semelhante, e não à própria situação. Em outras palavras: empatia é a capacidade de se colocar no lugar do outro, compreender a realidade pela perspectiva do outro e experimentar reações emocionais por meio da observação alheia. Até os 16 anos, os seres humanos são, neuromorfologicamente, egocêntricos, suscetíveis a variações abissais de humor e pouco, ou nada empáticos. Adultos plenamente formados que apresentem tais características entram para o rol dos sociopatas - condição que pode variar da mais leve tendência (como a do indivíduo que prejudica colegas de trabalho sem piedade, para alcançar a promoção almejada) até o grau máximo (vide assassinos em série, estupradores e franco-atiradores em escolas).

Nem toda criança arranca asas de besouros, subjuga cães dóceis, furta balas da mercearia e humilha os colegas mais fracos. Há os valentões, claro. Em regiões rurais, antes do êxodo nas década de 1930 e, posteriormente, 1950, quando a molecada descalça precisava caminhar quilômetros para chegar à única escola da região, os bullies eram chamados de "bichos do sereno". Como mencionado anteriormente, o dito "fenômeno" do bullying não tem nada de espetacular e muito menos de novidade. O cenário e os personagens são e sempre foram os mesmos; as coisas apenas mudaram de nome. Nos colégios freqüentados pela classe mais abastada das cidades, assim como em escolas de periferia, jovens mais tímidos e introspectivos sempre foram alvo de chacota daqueles que possuíam costas quentes, bravura juvenil inconseqüente, empatia cognitiva em desenvolvimento ou, simplesmente, potencial incipiente para maníacos do parque e afins. Não há regra, nem receita de bolo aqui; a formação da personalidade infantil, sujeita a fatores genéticos e à influência do ambiente, é uma caixa de pandora: você tem um filho; educa-o da maneira que melhor lhe parece e convém; chega a idade escolar; o rebento lhe dá adeus, merendeira na mão, mochila às costas, lança-lhe um último olhar sobre os ombros antes de tomar o ônibus para a escola. Você acaba de abrir a caixa e a vida de seu filho está apenas começando. Inexistem fórmulas capazes de prever se ele será o valentão da turma ou o cordeiro sacrificado. Mas uma certeza levita sobre os lares e as escolas: haverá sempre "valentões" para xingar, agredir e humilhar, em igual proporção àqueles que serão taxados de "bobalhões", "parvos", "medrosos" e "nerds". Esta é uma das realidades a qual o homem não possui meios de escapar: os fortes (bullies ou não), tendem a se tornar cada vez mais fortes e subir em direção ao topo. Para isso, o contrapeso dos fracos existe. Para o bem ou para o mal, este é o mecanismo de uma sociedade não estratificada em castas.

O que assombra ainda mais do que a covardia dos bullies é o extremismo banhado em justificativas simplórias dos adultos. A liberdade de expressão é linda, um direito irrevogável de sociedades democráticas; eu mesma faço uso dela em cada artigo que publico nesse blog. Entretanto, veicular matérias que associem o atentado à Escola Municipal Tasso Silveira ao bullying, é o tipo de expressão que, uma vez à tona, deveria ser censurada. Como se não bastasse aos veículos de comunicação comparar a tragédia em Realengo com a de Columbine, da mesma forma obtusa como o fariam com uma partida de futebol e outra de rugby, o autor dos crimes, Wellington Menezes de Oliveira, sobe ao púlpito das vítimas como alvo de bullies na mesma escola onde matou 12 crianças a sangue-frio. A tentativa de recriar o ambiente em que Wellington cresceu, humilhado por valentões e, posteriormente, aderindo ao fundamentalismo islâmico, é uma temeridade por parte da imprensa, nesse caso agindo sem qualquer responsabilidade social. Wellington é um sociopata e um assassino e, por essas razões apenas, matou em Realengo. E isso é tudo. Conceder-lhe matérias do tipo "perfil" é um ultraje sem precedentes para os leitores, em especial para as famílias das vítimas, pois suscita um véu de absolvição ao qual ele não tem o menor direito.

Meu filho de quatro anos, assim como eu em minha infância, é alvo de chacotas na escola por causa de seu sobrenome: "Arthur Rohen? Tá roendo o que?" Ele não dá a mínima. Outro dia, um colega ralhou com ele por causa de sua língua presa: "Por que você fala asthim?" Meu filho respondeu que é porque está aprendendo a falar inglês. Numa outra ocasião, ele puxou os cabelos de Luíza, uma menina encantadora, que o adora, e comeu um biscoito Trakinas do coleguinha Daniel, que abriu a boca a chorar. Disse para mim que "foi sem querer". Como ficou na "cadeirinha do pensamento" na escola e ainda ouviu um sermão da mãe em casa, aquela foi a primeira e a última vez que Luíza teve as madeixas puxadas pelo meu filho. Seria razoável pensar que, no mundo encantado da pré-escola de uma cidade de trinta mil habitantes, Luíza, Daniel, meu filho e outras duzentas crianças estejam sendo vítimas de bullies predadores, à espreita do momento ideal para chamar um coleguinha ou outro de "feio", "bobo" e "gordinho"? Aí está o perigo, a armadilha do extremismo e do kitsch.

Há não mais de cinco anos, bullying ainda era grafado em itálico e não fazia parte do vocabulário e do imaginário populares no Brasil. Hoje, tornou-se clichê, figurinha repetida e justificativa para assassinos, delinqüentes e vagabundos que - perdoe, pai, eles não sabem o que fazem - são o resultado direto de bullies na escola e da sociedade capitalista que lhes suprime o direito a melhores condições de vida. O extremismo é perigoso; a relativização dos acontecimentos, também. Mas o discurso pasteurizado, perene e óbvio da Esquerda socialmente engajada é muito mais pernicioso. Para extremistas, recomendo a leitura de "Carrie", de Stephen King, escrito em 1974, ano em que a ebulição do bullying - trocadilhos à parte - ainda estava longe de acontecer. O livro é pequeno - apenas 180 páginas na reimpressão de 1983 - e de leitura ágil, compulsiva e eletrizante. Pergunto-me porque ninguém pensou em marcar uma entrevista com o autor que, na longínqua década de setenta, já vislumbrava a realidade e a "naturalidade" do bullying sem nem ao menos mencionar a palavra.

King afirmou, por ocasião do lançamento de "Carrie", que "a função do terror é levar o leitor ou o espectador a viver o seu nível humano mais primitivo e essencial". O escritor, que antes de abraçar a fama trabalhou como professor em colégios do ensino fundamental nos Estados Unidos, valeu-se de sua experiência e de uma aguda percepção da psicologia dos adolescentes para contar a história da jovem Carietta White, cria única de uma beata histérica, dada a sessões de auto-flagelação, extremismo religioso e espancamento da filha. Carrie tem problemas de ajustamento social, mas deseja ser uma garota comum, como qualquer outra. No entanto, três elementos a impedem de realizar o objetivo primordial de sua vida: a mãe, que a considera maligna e impura; as colegas de escola que, seja por (oops...) bullying ou hipocrisia, contribuem para os abusos que a jovem sofre dos cinco aos 17 anos; e o seu poder de telecinese, liberado pela puberdade e por estados de stress, estes mais do que corriqueiros para Carrie.

Repito: foge-me à compreensão o fato de Stephen King não ter sido convocado para dar a sua opinião sobre o "fenômeno" do bullying no século XXI. Porque o que ocorre em "Carrie" é bullying puro, essencial e de primeira, elevado à enésima potência: a garota se depara com as primeiras regras menstruais no salão de banho da escola e, acreditando estar se esvaindo em sangue, vira alvo de tampões e toalhas higiênicas que as outras lhe atiram. Até então, os xingamentos de que era vítima não pareciam incomodá-la tanto; afinal, Carrie admite que é "estranha", embora não queira sê-lo. A garota é levada ao baile de formatura pelo rapaz mais popular da escola e, para surpresa própria e de todos os presentes, é coroada rainha do baile com ele. Ocorre que uma trama malévola é urdida literalmente nos bastidores do baile para humilhar Carrie: Billy Nolan, um marginal bem retrato por King, e a psicopata mirim Christine Hargensen, derramam dois baldes cheios de sangue de porco sobre a moça, no momento máximo da coroação. Claro que Carrie não hesita em utilizar seus poderes telecinéticos para mostrar aos colegas que não é a idiota que pensam. Quem leu o livro ou assistiu à adaptação para o cinema de 1976, do diretor Brian De Palma, sabe o final.

Pergunto-me se a mãe de Luíza ou a de Daniel e, pior, a Coordenação Pedagógica da escola, seriam tolas o suficiente para acusar o meu filho de bullying - afinal, não se fala de outra coisa, não é mesmo? Porque, particularmente, não ventilo a menor possibilidade de taxar como bullies as crianças que ralham com o sobrenome do meu filho e com o seu jeito "Romário" de falar. Também não queimo a mufa quando ele chega da escola com um boneco sem braço, fruto de uma amputação malfadada de um coleguinha. E sei que chegará o momento em que o chamarão de "branquelo azedo", assim como de "quatro olhos", se um dia usar óculos, e de "boca de ferro", se precisar de correção ortodôntica. Não vejo como qualquer dessas atitudes, tão banais num ambiente de crianças e adolescentes, possa ser considerada bullying. Mais essencial do que categorizar coisas e fazer ferver um caldeirão sem sopa, é preparar nossos filhos para que estejam acolchoados por sólida auto-estima e para que aprendam o mais importante dos princípios para a convivência em sociedade: o seu limite acaba exatamente no ponto onde começa o do outro.

5 de maio de 2011

corda bamba

E daí se o espírito de equilibrista me tomou
...
Afinal, dançar na corda bamba de sombrinha
Tem lá os seus encantos
E nem poderia ser um mal.
Não quando a fronteira entre a embriaguez que fora
E o equilíbrio que desponta na alvorada
Deixou de ser intransponível.
Não quando se consegue mirar o norte
E fixar os olhos num farol
O mapa das galés aventureiras
Sedentas do ancoradouro onde dormir.
Não quando o borrão da rasura
Sumiu em meio aos traços loucos
De sussurros roucos
E reverências poucas.
Não quando as estrelas brilham rutilantes
E os trajes são véus de organdi
Da cor da tarde plena de um domingo índigo.
Não quando o receio do desconhecido
Partiu na poeira de um foguete
Pois não poderia ser diferente
Para quem amacia o carvão
E desenha uma iluminura inédita.
Não quando se respira a certeza
De que uma dor assim pungente
Não haveria de ser inutilmente.
Não quando o equilibrista se recorda
De que jamais deixara de ser um artista
Que o espetáculo há de continuar
No palco, na platéia, no mar
Em colinas verdes, de frio vento
Sob holofotes ou na surdina.
Não quando a esperança ainda dança
Numa ponte, nas pontas dos pés
Sobre a corda dos mundos
Como jamais deixara de fazê-lo um dia.

Para Eduardo, essa corda minha que é mais firme do que bamba; o laço que eu precisava para voltar a mim.