30 de dezembro de 2011

prece


"(...) que a arte nos aponte uma resposta, mesmo que ela não saiba (...)"

29 de dezembro de 2011

aqui


São onze da noite. Os pingos grossos de chuva repicam sobre as folhas da jabuticabeira do quintal. À tarde, o sol rebenta as nuvens num calor implacável e ausente de brisa, espaventando a gente para dentro das casas, onde a sombra e os pisos de pedra trazem refresco e refúgio para o torpor de dezembro. No meio do dia, as mulheres se abanam com fraldas de pano, filhos mais velhos jogando gude no terreiro, os menores ao colo, a espera do leite do peito, dorminhocos no balançar dos quadris de suas mães. Vez ou outra um peão cruza a estrada de terra, sujeito preguiçoso meneando “boa tarde” com o rosto coberto de suor. Aqui, não há muita brisa para fazer dançar as folhas das goiabeiras, os cabelos compridos das moças e os chapéus de palha dos velhos. Mas, o que falta de vento sobra em água, porque o córrego trespassa a pinguela antiga de madeira, caudaloso de chuva, escuro, espesso de barro e fértil de peixe. 

No verão, o céu vira chumbo todo dia, antes do cair da noite, e as nuvens pesadas desabam sobre a terra, tingindo o pasto de verde e enchendo as várzeas; as madrugadas são frescas e têm cheiro de umidade, dos sumos que o solo libera depois do temporal. Quando cessa o ruído da chuva, os vaga-lumes vêm acender a noite com o seu baile de pisca-piscas; eles valsam sobre o canavial e a plantação gotejante de arroz, enchendo de brilho os olhos da criançada. Aqui, a gente vai dormir com as janelas abertas e os ouvidos embalados pela música soporífera dos grilos e as batidas ritmadas dos sapos-martelo que moram no açude. Às vezes, um galo canta solitário ou um cachorro late para a escuridão e, na alvorada rósea, os bezerros mugindo de fome avisam que é hora do café. 

No inverno, o curral amanhece molhado de sereno e o ar frio e limpo entra pelos pulmões, desentupindo vias, preenchendo veias e faxinando a memória. É em julho que o céu tem mais estrelas e a lua fica mais perto das mãos, grande, gorda e silente. À noite, o saibro reflete o luar, e o chão parece salpicado de brilhantes. Mate com leite morno aconchegam as almas de manhã e, juntos, os meninos esquentam as mãos diante das brasas adormecidas do fogão a lenha. As galinhas vão dormir ainda mais cedo, empoleiradas corpo a corpo, e os cachorros se enroscam junto aos portões, respondendo de vez em quando a um latido distante. Aqui, quando faz frio, o verde dá adeus aos morros e a paisagem se reveste de marrom tostado, um bege sedento, com galhos retorcidos e carrapichos teimosos. 

Nessa terra, adoçante, saladinhas e sopa instantânea não têm vez, e a gente almoça e janta como se a boa forma exibida no calçadão não fosse importante porque, de fato, relevantes são a canjiquinha com costela de porco, a banana frita e a raspa de arroz. Ninguém sente embaraço pelos dentes cheios de fiapos de manga e a língua roxa de jamelão, e as unhas manchadas de barro e os bichos-de-pé não levam dama alguma ao desespero até porque, aqui, dondoca vira ração de muriçoca. Quem vive aqui ou vem para cá fala um dialeto próprio, com direito a gongolo, embornal, arenga, manguaça, escambau, cocoruto, cambito, tiquim, quede, bago, garapa, encangado, lavagem, debulhar, aporrinhar, arregar, coarar e fiofó. Capiau é o mesmo que caipira, e matuto que se preza compreende cada vocábulo desses sem precisar do Aurélio para Bocós Iniciantes. 

Ninguém precisa – deveria ou conseguiria – pertencer a um alqueire apenas de terra na vastidão que é o mundo e na inconstância que é o ser. Entretanto, por mais leve e liberta que seja uma pluma, ela não pode flutuar ao sabor do vento; é preciso que se tenha um “aqui” para aonde voltar, quando o mar é bravio demais para se insistir em remar e despedaçar-se de encontro aos rochedos. Para mim, o aqui é terra, aonde venho descarregar os raios que, na polis distante, vêm cair nas extremidades de meu corpo, retorcendo-me a alma, vergando-me a espinha, cegando-me os sentidos, roubando-me a identidade e podando-me os brotos. 

Sei que estou perto quando o cheiro do gado, do pasto e do ar toma-me narinas adentro, fazendo-me recordar a diferença entre âncoras e raízes. Afundo os pés descalços no solo rutilante, cravando-lhe as unhas, olho para o céu e deixo confluir o pessimismo, a derrota, o cansaço. Da terra, do tempo que, aqui, é puro anacronismo e das histórias que ouço e conto, recarrego as células, eletrifico-me e sinto novamente as extremidades outrora dormentes, semi-mortas. O piar de um bacurau soa como alforria, o banho de rio é festival e o capim vasto, promessa de retorno. Aqui é onde reencontro tudo que esvaiu. Aqui é o ciclo que jamais se esgota. Aqui é onde, pluma, torno-me pássaro.

25 de dezembro de 2011

navidad


Desta vez, farei diferente. Não vou maldizer o Natal, ainda que este não seja a minha época favorita do ano. Para falar a verdade, não há fórmula objetiva o bastante para categorizar o tempo e compartimentá-lo em períodos de que se goste mais ou menos, a não ser que uma estação e sua comida típica sejam evocadas. Do contrário, favorecemos os meses da fortuna em detrimento daqueles banhados pela maré do azar e, na matemática inexata do tempo, a bonança e as tempestades são inexoravelmente variáveis e, assim, inclassificáveis. 

Clichês me apavoram. Evito-os a todo custo, mesmo que sejam convenientes. Assim, chorar pitangas na véspera de Natal é lugar-comum não apenas para o dickensiano Scroodge, o verde nauseabundo de Grinch ou para a descrente Natalie Wood em "O Milagre da Rua 34", mas para a subscritora inclusive e principalmente. Desta vez, não me incomodarão os pisca-piscas dos pinheiros de plástico, as barbas de algodão dos velhinhos da Coca-Cola nem o Chester que, na verdade, não passa de um galináceo geneticamente modificado. No crepúsculo de 2011, decido ser otimista, para variar. Para escapar ao clichê que, por pouco, não engole a mim.

À mesa da casa de meus pais, repousam uma bacalhoada, uma travessa de suculentas rabanadas, uma torta de chocolate e a indefectível ave, rodeada por fatias de abacaxi. São três da madrugada, acabo de assistir a dois musicais antigos na TV, o ventilador ronca a dois metros de mim, ouço grilos no jardim e a respiração pesada do casal que, à revelia do calendário, dorme sereno. Pela tarde, chegarão minha irmã e sobrinhos, bocas para consumir o lauto banquete e mãos para afagar a família pequena, separada por gerações e distância física, mas unida nas horas em que toca o alarme de incêndio, aperta o cinto e a solidão é pesada demais para se carregar sozinho. Natal é isso. Chanukah é isso. Família é isso.

Os porta-retratos, cristais e relógios me encaram - ou eu a eles. Vejo-me há quinze anos, rosto corado de sol, cabelos loiros, sorriso sem rugas, alguns quilos a menos. Ainda sou eu. Vejo a vida de trás para frente, pois é assim que as fotografias estão dispostas sobre a cristaleira. Um dragão de madeira e dois galos de prata acumulam poeira e, estáticos, perguntam-me qual daquelas épocas fora a melhor, se é que seja isso possível. Não há época melhor, nem pior. Todo Natal e Carnaval são diferentes porque, a cada virada de ano, encerra-se um ciclo e inicia-se outro. Em colheita, há os bons anos e os anos ruins. No mercado de ações, igualmente. No comércio, também. No imenso, solitário e estelar umbigo do mundo de cada um, operam-se tantas metamorfoses que "bom" e "ruim" tornam-se por demais restritos e parciais para definir o todo em expansão que somos, à revelia de datas comemorativas.

A uma semana de 2012, o ano do fim do mundo para quem compra a ideia de cataclismos, previsões astrológicas e/ou bíblicas, numerologia e filmes-catástrofe, decido celebrar. A colheita de 2011 rendeu-me mais frutos do que pragas, até porque cada parasita nos serve de alerta para regar mais, podar menos, afofar a terra e espaventar os corvos. Na entressafra da vida, tornamo-nos agricultores mais espertos e ágeis que, definitivamente, não jogam a toalha quando a vaca vai para o brejo. Na balança onde peso os lucros e as perdas, meus parasitas valeram ouro: foram degraus, trampolins, anabolizantes que substituíram meus pés de barro por vigas de aço.

Neste Natal, sou o bom velhinho de mim, e o presente que encontro no fundo da caixa de Pandora é a trindade divina fundamental: otimismo, esperança e coragem. Em meu presépio, há um punhado de sal do mar, outro de areia, uma flor de ipê amarelo, uma folha de papel em branco e uma moldura vazia. Parece oferenda para Iemanjá, mas não é. Entre quebrar o tabu do queixume e pular sete ondas há um universo intransponível de diferença. Meu presépio imaginário é um amuleto que sinaliza o ponto A - de onde parto - e o ponto B, aonde quero chegar, com histórias e imagens que irão preencher a alvorada de um novo ciclo.

Não precisei receber a visita de três fantasmas para perceber porque vale a pena celebrar o cair da cortina dos anos; os parasitas em minha colheita o fizeram. Do solo árido, rachado e escaldante, brotou verde fresco e tenro, justamente em função da praga, para combatê-la e fazer de mim paineira, musical e maleável à ventania. Envergo-me, perco folhas e sementes, dobro-me até o chão, mas não quebro. Sobrevive a enchentes quem sabe que não há temporal que perdure, nem seca que não tenha fim. Na flexilidade do caule está o mais poderoso pesticida: o poder de regeneração e cura, resiliência e celebração. Neste Natal, a mensagem escondida em meu biscoito da sorte é clara, irrevogável e brilha como o raio de sol teimoso a perfurar a nuvem de chuva: o mal que vem para o bem, não é mau em si mesmo; é útil. É Biotônico Fontoura. 

30 de novembro de 2011

à distância

para/por Luiz Tavares


A mão que se estende para tocar a do soldado derrotado, enlameado e débil é como o sol que entra pela fresta da janela, ainda que as cortinas estejam cerradas: inesperada, sutil e aliviante. Na meia-noite dos meus dias, os demônios correm soltos, à garupa de cavalos sem rédeas nem sela. No breu sufocante da noite que parece jamais amanhecer, as mãos que vejo, borradas ou sombreadas pela tarde que escalda a pele do lado de fora, ainda se estendem. São reais, firmes, persistentes e tentam mover o paredão de escombros que sou. Dia desses dei um tiro no pé ao me perguntar porque meu filho me ama, gratuitamente; como meus pais ainda não desistiram de mim; porque meus alunos me admiram. Como ainda sou capaz de manter amigos. Quando se vive muito perto da lama, é natural que você se sinta como um porco. E pior do que sustentar sentimentos suínos, é se ver como um porco; via de regra, é por nossos próprios olhos e a partir da concepção que fazemos de nós mesmos que somos revelados - e nivelados - aos olhos e à apreciação dos outros.

Essa noite, a mão estendida ao porco veio na forma de uma voz, ainda que silente, dizendo: "só é porco aquele que insiste em chafurdar". Palavras que, à distância, lamberam feridas e aliviaram a dor, como um bálsamo feito sob encomenda. Quando no chiqueiro, costumo me ausentar do mundo, como que para evitar que o ranço da derrota e do vazio contaminem o habitat de quem ainda não caiu do cavalo de Troia. Ainda assim, as mãos insistem em chegar, as vozes em ecoar, o reforço, a maca e o torniquete em socorrer. Então, talvez, sobreviva no porco a porção humana de mim. E, assim, talvez ainda valha à pena remar contra a corrente, suspirar profundamente, sair da lama e olhar o horizonte largo, e não pelo olho claustrofóbico de uma agulha. Seguem, agora, as palavras de Luiz, que, de outra dimensão, sussurra: "já se viu pérola hoje?". Aos porcos, fava. Que sejamos todos, na lama, no mar, em terra ou no ar, humanos.

"Sabe que, ao invés de insistir na pergunta, na notícia, fui espiar um pouco seu blog. Lá uma resposta bastante interessante poderia ter. E lá estava. Impressiona a fluidez com que você escreve, é quase como falar, em língua materna, entre íntimos... E vejamos que sua sala de estar é aberta a quem quiser estar, sem necessidade de bater à porta; intimidade com o mundo, algo poderoso. Mas por mais que sua escrita seja bastante (senão toda) cunhada em suas próprias vivências (no melhor estilo quando somos crias de nós e nossas circunstâncias), intimista (vale a repetição), como toda criação ela é apenas uma fração do criador. E eu, que não sou bom leitor de biografias, gosto muito mais de saber sobre o dono da pena, do lápis, da caneta, dos dedos que habilmente batem tecla a tecla as imagens de sua mente. Vez mais, por mais intimista suas crônicas, são uma fração de suas angústias, aflições, desejos, tristezas. Não tem o gosto das lágrimas, tampouco o sorriso fácil ao rever seu filho. Indubitável o meu gosto pelas suas cronicas, é algo de muito valor que ainda há de ter mais amplo reconhecimento, mas irremediável minha preferência pela escritora. Gosto do produto das mãos, mas prefiro a moça dos brincos de pérola. Problemas todos temos, e não há de se fazer uma aposta por quem sofre mais. A referência para todos os problemas é sempre aquele que os sofre. Eu tenho uns monstros bem grandes para lidar todos os dias. Contudo, ao contrario do dizer de seu pai, que sua esperança não passe. Se perto eu seria absolutamente inútil ajuda, longe sou menor ainda. Posso, isso sim, soprar o desejo de um sono tranquilo ao passo que lhe escrevo". 

Amigo, para quem ama as palavras, um pingo é odisseia, enciclopédia, o melhor dos presentes. Pelas muitas letras, palavras que, hoje, faço públicas, obrigada. Sempre.

6 de novembro de 2011

das coisas


Essas malas me entristecem
Com suas alças rotas, rodas emperradas
A náusea da naftalina
E as botas do inverno passado

Esses livros me perturbam
Com seu abandono mudo
Arquivos mortos em pó
E as páginas arrancadas a gotas

Essas provisões me assustam
Com seu prazo de validade expirado
Bocas secas, estômagos ocos
E a fome do tempo que se abortou

Esses armários me apunhalam
Com suas portas quebradas
Tramelas vãs, sem chaves
E o ranger incessante da memória

Esse cubículo do mundo me estanca o sangue
Com suas rotas traçadas, às cegas percorridas
Valas abertas de agora, bueiros lacrados amanhã
E o branco-e-preto taciturno das fotografias

Esse ir e vir, sem pegar nem largar
Com suas migalhas, entre o lá e o cá
O muito que é seco, do pouco que sobra
E o vazio que engole fendas e escava as coisas  

29 de outubro de 2011

pé na bunda


Tomei um pé na bunda. Simples, chulo, chato e fácil assim. Se eu fosse mais discreta, menos catártica, mais esperta e menos eu, não escreveria sobre isso. Por outro lado, se o fenômeno popular e carinhosamente chamado de "levar um pé na bunda" fosse algo, de fato, raro, não sentiria a obrigação moral e cívica de vomitar sobre isso. Por "vomitar" entenda-se algo como matar dois coelhos com uma única paulada: verbalizar a dor, esperando que esta cesse, e trazer à tona o idêntico percalço que, possivelmente, uma vez marcou o derrière de quem lê essas linhas. Porque, entre todos os mistérios e vãs filosofias existentes entre o céu e a terra, um enigma é certo: se você tem um umbigo, o que lhe certifica de que não é um alienígena, se já ousou se aventurar pelos fiordes perniciosos do coração e se não optou de vez pelos prazeres irresistíveis da vida de um asceta, então, cara-pálida, você também já levou um pé na bunda. Ou ainda vai levar. E o cosmo, em toda a sua sádica, maniqueísta e sacana dinâmica, mal pode esperar.

No entanto, para o bem ou para o mal, o pé na bunda é, sempre e inexoravelmente, uma via de mão dupla: um dia é da caça, o outro, do caçador. Para colocar todos os pingos, acentos e crases nas letras - a despeito da revisão ortográfica - você leva um pé na bunda hoje e, amanhã, será a sola do seu tênis, mocassim, scarpin ou havaiana a marcar o traseiro de alguém. Certas coisas a gente não complexifica; não dá para se fazer sofisma com tudo. Quando se trata de ruptura, separação, divórcio, término, chame-o como preferir, a situação é preto no branco. Aqui, dois menos dois é sempre zero. No fim da linha, a aritmética do ex-amor consiste apenas em subtração e divisão, nunca exponencial, fatorial e, muito menos, adição. Como já dizia um amigo, "não se pode fazer uma omelete sem quebrar os ovos". Isso é lírico. A estrofe dessa pérola poética apenas não rima quando um dos dois é alérgico à albumina, a proteína do ovo. Aí, então, haja anti-histamínicos para os casos mais leves e, nos potencialmente letais, alguns miligramas de epinefrina. Jargões médicos à parte, não se interne em uma unidade de tratamento intensivo em resposta a uma desilusão amorosa: esta não foi a primeira vez e, certamente, não será a última. 

O dono dos sapatos italianos que chutou o meu respeitável e brasileiro traseiro me ensinou que "para tudo acabar, basta que um diga que acabou". Versão personalíssima, ainda que um tanto ríspida, do velho "quando um não quer, dois não brigam". Ríspida e, ainda assim, ou exatamente por isso, tão real. Se estivesse eu do lado mais forte da corda, possivelmente falaria algo do gênero. Como disse, nos epílogos patéticos dos desvios de percurso que são os mal-fadados relacionamentos, o abandono mora no centro de uma gangorra. Para que cessem o tango, a magia, o romance e os "meu bem", basta que a disposição para investir penda para o lado contrário e... tum! Alguém cai de cara na poeira.

O ponto de exclamação anterior não foi em nada circunstancial. Para mim, ele sinaliza um susto. Já chutei alguns traseiros - poucos, confesso - com aviso prévio. Algo do tipo: "se liga, amoreco, vamos regar a plantinha para ela não secar de vez". O que me leva a pensar que eu costumava esquecer de molhar as espadas-de-são-jorge do canteiro do dono dos sapatos italianos... Mas isso é outra história e, leitor amigo, interprete as palavras "molhar" e "espadas-de-são-jorge" ao pé da letra, pelo que são, de fato, sem gracinhas: verbo e planta. No entanto, aviso prévio não é cláusula pétrea em relacionamentos amorosos e, muito menos, condição sine qua non para prevenir o incauto do pesar, do vazio, da aflição e da vertigem inigualável de sentir o tapete sumir sob os pés. A bem da verdade, por mais perto que se chegue da beira do precipício e se vislumbre, à distância, um provável final, a mágoa e a sensação aterrorizante de perda são o tipo de "alergia" que, por mais que se prepare para enfrentar, ninguém, caça ou caçador, está de fato pronto para ter.

Mas se supera. Tudo passa, sempre. Se até o que há de melhor na vida se esvai, por que o pior não haveria de evanescer... E, se não passar, há sempre a possibilidade de soterrar, esquecer, varrer para debaixo do tapete. Ao menos é assim que toda vítima recente de um pé na bunda precisa pensar para superar o tombo. Ouso dizer que é assim, e só por isso, que se consegue cobrir a vastidão desértica de setenta anos de expectativa média de uma vida média e banal: escondendo no fundo das gavetas o bom que não se conseguiu cultivar e o mal que, como sombra, se projetou até nos obliterar a essência. Alguém me disse que até mesmo um pé na bunda funciona para impulsionar o infeliz para frente. Como se toda experiência fosse implacavelmente aproveitável, favorável e valiosa. Viver e não ter a vergonha de ser feliz. Ah, o otimismo.

Talvez eu esteja apenas muito soturna e, bem no fundo, numa parte desconhecida de mim, ainda haja algum otimismo. O pensamento articulado e o orgulho ferido me fazem escrever frases espirituosas, que destilam um sarcasmo que não me pertence. Este pé na bunda abriu uma chaga em minha trajetória, um rombo em minha identidade, um vergão em minha capacidade de olhar para frente e saber qual direção seguir, um abismo em minha auto-estima. Uma amiga me disse que se sentir assim é comum a todos que são rejeitados, abandonados, chutados, colocados para escanteio: se foi alguém a desistir de mim, e não o contrário, então é porque não tenho qualquer valor intrínseco. Segundo ela, esta é a grande armadilha do pé na bunda; quem leva o coice tende a chafurdar na culpa e supervalorizar o dono da ferradura. Talvez. Por enquanto, tudo dói. A pele, a carne, os músculos, os ossos, a alma. Pergunto para meu pai, com os olhos rasos d'água: "Vai passar, não vai?". Amargo, ele responde: "Vai. Tudo passa. A juventude passa, a alegria passa, a dor passa. Até a esperança passa". Sinto um calafrio na espinha ao ouvi-lo dizer isso. Porque, ingênua, idealista ou estúpida, ainda acredito que certas coisas simplesmente não passam, a não ser que as soterremos nas profundezas do ceticismo. E minha sensação de abandono e vazio é ainda maior quando imagino que, para superar a dor, passarei também pela vitalidade, pela alegria e pela esperança.               

um cacho de siris

Para Rosa Maria Maneschy, a garota dos caranguejos


Meu primeiro aluno após quatro anos sem lecionar foi uma juíza com nome de flor: Rosa. A aula começava às sete e meia da manhã de uma segunda-feira ensolarada, embora um pouco fria. Naquele dia - para mim inesquecível por ser um momento em que retomava um cenário para preencher lacunas - cheguei à escola trinta minutos antes da hora marcada. Em meus padrões, uma time manager reconhecidamente fracassada, isso é muita coisa. Fiquei à espera de Rosa num sofá confortável, acompanhada por café amargo num copinho de plástico. Ela chegou às sete e quinze. "Atrasada" jamais seria um vocábulo comum ao vernáculo de Rosa. Não havíamos nos encontrado antes, de maneira que não estranhei quando lhe perguntei quem seria a sua professora e, com sua voz característica, suave, ainda que precisa, a juíza tenha me respondido: "Fernanda". Tudo era absolutamente insólito para mim naquela manhã: a nova escola, a cidade grande, os ônibus desconhecidos, o mar a duas quadras dali. Lembro-me de ter pensado que, se éramos apenas nós ali, às sete e meia da manhã de segunda-feira, sua professora deveria ser eu mesma. Quinze minutos depois, começávamos a aula. E, em algumas semanas, eu (re)descobriria com Rosa que a parte mais incrível de ensinar ainda é, definitivamente, aprender.

Rosa não é apenas a aluna mais aplicada que já tive; é, possivelmente, a mulher mais disciplinada, equilibrada, serena e divertida que já conheci. Ela é miúda, com olhos azuis grandes, que se tingem de um anil ofuscante quando o céu do Rio de Janeiro se abre sobre a cabeça do Cristo e sobre as nossas. Professores são meio como estátuas: alunos passam por nós, deixando vestígios, cicatrizes, impressões digitais. Haverá o dia em que Rosa e eu não seremos mais aluna e professora, vínculo que, inexoravelmente, tem prazo de validade. No entanto, resistirão ao tempo o aprendizado, sua risada cristalina e a expressividade de suas mãos. Rosa fala com aquelas mãos, pequenas e quadradas, adornadas com anéis que admiro. Ela gosta de lambretas que, cúmplices, chamamos de scooters. Quando Renato e Lucas, as crias de Rosa e Márcio, estiverem suficientemente independentes para seguir a vida solo - e não interpretarem uma motocicleta como sinal de rebeldia - ela vai comprar uma dessas motocas pequenas e charmosas, guardar algumas revistas Vogue na cestinha traseira e pilotar até à praia, alheia ao trânsito infernal de domingo e aos flanelinhas inconvenientes. Porque Rosa Maria é assim: brisa fresca e azulada, esgazeando-se sobre as tacanhas disputas cíveis da vida. 

E, por ser leve, lembranças não velam os olhos de Rosa. "Melancolia" é outro vocábulo que a juíza desconhece, motivo a mais para que, aqui, a professora aprenda com a aluna. Com leveza e alegria, Rosa conta-me histórias do tempo em que era menina, quando não imaginaria amar bater o martelo e quando o mundo, como ela, costumava ser pequeno, descomplicado. Minha aluna não é apenas justa; é uma excelente contadora de histórias. Sorrio agora, vendo na memória o seu riso largo e as mãos que contam casos. Pergunto-me se ela se dá conta do talento que possui para contar uma história, na língua que seja. Hoje, abuso da licença poética, quebro patentes à revelia e faço minhas as suas palavras, para escrever um conto de lembranças dessa moça paraense por origem, carioca na alma e londrina por "química", no coração.  

Em criança, Rosa costumava ir com os pais à casa de praia que possuem numa cidade do Litoral Costa Verde. No trajeto de ida, seu pai estabeleceu aquele que seria um ritual de infância feliz e, posteriormente, uma lembrança embrulhada em sons, aroma e paladar. Nas cidades litorâneas dessa região, havia vendedores de siris, que expunham a sua mercadoria nos acostamentos da estrada. Rosa tenta explicar em detalhes as diferenças entre caranguejos e siris. Ela é categórica: são criaturas completamente díspares. No zodíaco, caranguejos são o símbolo do meu signo; na história de Rosa, o personagem principal são os siris que seu pai comprava no caminho para a praia.

Siris não são como peixe, camarões ou coelhos; devem estar vivos e frescos no momento em que os compramos. Do contrário, a fervura poderia mascarar o gosto da carne em decomposição e a refeição não seria apenas indigesta, como também um motivo para péssimas memórias. Por isso, os vendedores costumavam atar os crustáceos, amarrando-os a uma vareta como bananas num cacho. Esta é a visão que a lembrança de Rosa deteve, congelada no tempo como um inseto em âmbar: um cacho de siris vivos. Neurocientistas afirmam que a visão, acima de todos os sentidos humanos, é a que impera. Ouso discordar. Nas brumas da memória, onde sobrevivem a infância e tudo que jamais deveria morrer, o som e o cheiro das imagens falam mais alto.

Seguem viagem o pai, compenetrado, dirigindo pelas montanhas sinuosas da Serra do Mar; a mãe, no banco do carona, vê pela janela a natureza exuberante e úmida da região; no porta-malas, os siris acompanham a família atados ao seu cacho, seguindo o mesmo trajeto. E Rosa, espichada no banco de trás, olhando o céu azul em ângulo, escuta-lhes as patas salpicando a lataria: uma sinfonia de reco-recos no samba abençoado da memória. Uma curva mais fechada, os siris rojam de um lado para o outro da mala e a música fica mais alta, num tic-tic de patas ansiosas e antecipação pela chegada.

Antes mesmo de retirar e desfazer as malas, ir ao supermercado mais próximo para abastecer a geladeira com compras e salgar o corpo nas águas verdes do Atlântico, é preciso dar atenção aos siris. Qualquer criatura viva tem um destino a cumprir, ainda que mal se dê conta disso. Por "criatura viva" entenda-se não apenas plena de suas funções vitais, mas prenhe de propósitos. O destino dos pais de Rosa, além de fazer dela uma mulher de valor intrínseco, capaz de voar com as próprias asas e preparar os seus próprios filhos, foi imprimir em sua memória momentos com os quais, hoje, regozija-se. O meu destino, além de tentar voar e ensinar a mesma arte a meu filho, é em parte contar esta história. O destino dos siris em cacho, em princípio órfãos à beira da estrada, era pertencer àquela família, moldar lembranças com cor, som e sabor e virar refeição. Se o desígnio de um crustáceo é integrar a cadeia alimentar, que não morra na praia, como muitos cetáceos, gadus e marinheiros; mas à mesa de uma família que, anos depois, terá nesse fado uma história.

Na panela com água fervente, sob a tampa de alumínio gotejada em vapor, chega ao fim o destino dos siris e começam a história e os casos de Rosa. Pai, mãe e filha sentam-se à mesa, aguardando o cozimento dos bichos, antecipando na saliva o gosto tenro e típico da carne. Enquanto põem à mesa, tecem comentários antigos, outros mais recentes, refrescam-se do calor sob ventiladores Arno, ouvem uma canção no rádio e preparam a farofa de tapioca que, em breve, vai se juntar à sobremesa: o creme gelado de açaí. Acima das risadas e da música, do zum-zum das hélices do ventilador e das brincadeiras da menina, ouvem-se as patas dos siris arranhando a panela. No início são frenéticas, em seguida mais sôfregas e entregues e, finalmente, serenas e satisfeitas por, após uma longa jornada do estuário para o acostamento da Rio-Santos e, daqui, para o porta-malas do carro de Doutor Renato, terem cumprido o seu destino de siris em cacho, siris com uma história para contar.

Perguntei à Rosa porque ela jamais havia considerado a possibilidade de escrever sobre um caso tão peculiar como este. Ela me ofertou um sorriso radiante e sinalizou a mais lógica e sensata das respostas: "Porque todo aquele ritual era muito natural para mim, oras!". Faz sentido. O natural só é extraordinário a olhos e ouvidos virgens, velados pela distância inquebrantável do tempo, que adquire ares de magia e imortalidade. Assim são as veredas e as narrativas por elas assolapadas: senhores ou sujeitos de nossos destinos, usamos a pena da lembrança para escrever casos e, com eles, registrar a história, mesmo que alguém a ouça, faça as vezes de narrador e imortalize, em palavras e som, o que, por natural, é belo demais para ser deixado para trás.

23 de outubro de 2011

matutando

Para os que amo. Os que importam.


Reza a lenda que caipira de verdade pode rodar o mundo, degustar os mais refinados vinhos, deleitar-se com os mais elaborados manjares, caminhar entre cosmopolitas e urbanoides e, ainda assim, jamais perder a sua essência de jeca. Gosto de caipiras. Um bocado. Em terras caipiras passei dias memoráveis, destes que revisito vez em quando, com uma pitada de saudade e a lembrança do cheiro de mato e da terra orvalhada do mês de julho. Não há orgulho nem embaraço em mim quando digo que sou caipira. Algumas coisas são como são simplesmente porque assim o são, sem que, para isso, deva haver elementos positivos ou negativos. Em certas ocasiões pergunto-me se, em tempos e lugares que habito, não seria sensato mascarar a minha essência Mazzaropi, ainda que esta seja um tanto conspurcada pela descendência de imigrantes alemães - afinal, o Amacio era italiano, o mais siciliano dos caipiras tupiniquins.

O jeca é, por excelência, o reverso do que se valoriza em tempos de, por um lado, ausência de fronteiras e limites físicos e, por outro, da abundância corrosiva de velocidade, informação e atividade. Mazzaropianos somos os introspectivos, à caça da lua cheia, de estrelas e vaga-lumes. Caipiras somos os que preferem se sentar à beira do riacho cuja música é familiar a voar léguas em busca dos desconhecidos sons do estrangeiro. Jeca de verdade acha um barato fincar os pés descalços na grama, dobrar as barras das calças e acocorar-se à sombra de uma mangueira. Não é por coincidência que o verbo "matutar", jeito caipira de se referir à introspecção elucubrativa, derive de outro vocábulo para designar o "jeca". O caipira até compreende que o mundo pode caber na palma de sua mão, em "iPortáteis" e afins, mas, para ele, o universo jamais deixará de ser um "mundão"; a praia será sempre um "marzão" e sociais com mais de meia dúzia de convivas são, inconteste, um comício. O jeca esconde os dentes quando sorri - tradição milenar, de gente que, bicho-do-mato, se envergonha e acabrunha com facilidade porque prefere o horizonte cercado e entrecortado por colinas à vastidão assustadora das planícies. Mas, punho cerrado sob o bigode a velar o riso, a gargalhada não foge aos olhos do caipira; está lá, boiando num lago pequeno, ainda que profundo, de uma raça cuja sina e senda é a terra, as raízes e o sereno.

É pelas raízes que o fincam ao tempo, à história e às emoções que o caipira, mais do que o homo urbanus, teme a perda, a rejeição e a vastidão. O matuto cheira a chuva antes que ela chegue, vê circundando a lua um aro amarelado que prevê a seca, ouve cigarras cantando e sabe que o tempo vai virar, mordisca o capim para saber se a terra está aguada ou enxuta. Sem céu, lua, insetos ou mato, a sabedoria crua e despida de certificados do capiau se perde, sua essência se esgarça até volatilizar e ele, o chapéu, o riso escondido e as decisões orientadas pelos sentidos passam a inexistir. Por isso o matuto é arraigado e receia embarcar e deixar a areia da orla para trás. E, quando ousa fazê-lo, retorna à poeira do chão batido, refresca a lembrança com memórias de naftalina e, inadvertidamente, se esconde. Todo caipira é metade tatu, metade avestruz; embuça-se para proteger a identidade, os sentidos e o riso.

Nessa tarde de domingo enervante, meio sol-meio nuvem, revisitei as origens caipiras. Aterrada em prédios, concreto, buzinas, freadas e maresia, a música cantada por lábios mudos de um iPortátio é a maneira mais conveniente, rápida, eficaz e doída para fazê-lo. Esse tipo de busca é, como o ritual de picar fumo de rolo, um mecanismo intrínseco, meio masoquista e muito doido do capiau. Algo parecido com os happy-hours regados a whisky, olhares de esguelha e piadas galhofas de escritório do homo urbanus. Mudam-se os cenários e as personagens, mas, no frigir dos ovos, as neuroses tão somente se transferem, adaptando-se a rótulos e conceitos, celas às quais sempre falhamos em escapar. Minha neurose "caipiro-dominical" foi cavar em terras imaginárias um buraco no qual pudesse me esconder, usando à guisa de enxada uma canção caipira: "Tocando em Frente". Quando Almir Sater e Renato Teixeira a compuseram, em meados da década de 1970, não imaginariam que uma música sertaneja seria regravada por todos os seus sucessores, sem mencionar demais nomes da música popular brasileira que nada têm a ver com o universo caipira. Mais do que isso: como compreender que uma letra de música jeca seria utilizada em escolas e universidades para análise de discuso? Coisa de gente da cidade grande, talvez, que vê poesia onde há e não há poesia.

Tocando em Frente
(Almir Sater / Renato Teixeira)

Ando devagar
Porque já tive pressa
E levo esse sorriso
Porque já chorei demais

Hoje me sinto mais forte,
Mais feliz, quem sabe
Só levo a certeza
De que muito pouco sei,
Ou nada sei

Conhecer as manhas
E as manhãs
O sabor das massas
E das maçãs

É preciso amor
Pra poder pulsar
É preciso paz pra poder sorrir
É preciso a chuva para florir

Penso que cumprir a vida
Seja simplesmente
Compreender a marcha
E ir tocando em frente

Como um velho boiadeiro
Levando a boiada
Eu vou tocando os dias
Pela longa estrada, eu vou
Estrada eu sou


Conhecer as manhas
E as manhãs
O sabor das massas
E das maçãs

É preciso amor
Pra poder pulsar
É preciso paz pra poder sorrir
É preciso a chuva para florir

Todo mundo ama um dia,
Todo mundo chora
Um dia a gente chega
E no outro vai embora

Cada um de nós compõe a sua história
Cada ser em si
Carrega o dom de ser capaz
E ser feliz

Conhecer as manhas
E as manhãs
O sabor das massas
E das maçãs

É preciso amor
Pra poder pulsar
É preciso paz pra poder sorrir
É preciso a chuva para florir

Ando devagar
Porque já tive pressa
E levo esse sorriso
Porque já chorei demais

Cada um de nós compõe a sua história
Cada ser em si
Carrega o dom de ser capaz

E ser feliz

Se o urbanômetro do leitor for complacente, ele há de se permitir ouvir a melodia. Em tempos de You Tube, objeção estética seria a única razão para fazer o contrário. Foge-me à conta o número de vezes que já ouvi esta canção. Como disse antes, inexplicáveis e incompreensíveis são os mecanismos neuróticos, caipiras ou não. Desta vez, entretanto, a quinta e sexta estrofes me engasgaram. Pela primeira vez. Atingido pela epifania suprema, o Renato disse, em suas palavras, que viver não pode ser muito mais do que "simplesmente compreender a marcha e seguir em frente". Retardatários, embasbacados, atolados e empacados que o digam. Sou estrada? Certamente, embora outra canção, contraditoriamente, afirme que a vida seja um rio e, nós, canoa. Poesia e suas múltiplas interpretações, cara-pálida. Somos estrada porque, meio e fim em si mesmos, conduzimos a vida, nossos corpos e mentes. Compreensível. Mas, boiadeiros? Não tenho tanta certeza. Quem me garante que nós, e não a vida, as escolhas e suas conseqüências, é que não somos o gado?

Pode ser que tudo isso não passe do reflexo lusco-fusco de domingo. Ou, talvez, de um produto torto de matuto, que fica a matutar, embalado por canções de gosto duvidoso. Na roça, quando o sujeito olha para o horizonte e é visivelmente engolido pela retroalimentação das vãs filosofias, o caipira amigo logo pergunta: "Pensando na morte da bezerra? Deixa disso, rapaz!" Até o jeca mais encruado, que desconhece a existência e, portanto, a influência de Steve Jobs, entre outros gênios da modernidade e do passado, sabe que matutar demais acaba fedendo. Tal constatação não me escapa, caipira que sou. E ainda assim, em meio a todo escopo e prevenção matuta, por vezes penso-me e sinto-me gado, guiado por não sei qual boiadeiro. Em outras ocasiões, sou gado extraviado, sem dono, livre do abate, mas, por outro lado, sem pasto de qualidade. O que me leva a pensar no triste destino de nós, gado: aos melhores e mais vastos pastos, o abate certo, precoce, inevitável. Minha vaca parece ter ido para o brejo; minha bezerra, foi-se com a última enchente. E a minha égua, amarrada e selada, aguarda com olhos mansos e cansados, abanando com a cauda moscas ocasionais, o seu destino.

30 de setembro de 2011

Balboa, a terra e o mar

Em 25 de setembro de 1513, um espanhol de nome Vasco Núñez de Balboa - não o Rocky, fique isso claro - descobria o Oceano Pacífico. Na época, o explorador batizou aquela que seria a maior façanha de conquista espanhola na América de "Mar do Sul". Balboa saiu em um périplo de 30 dias com o objetivo de descobrir o mar de que tanto falavam os indígenas, povo com quem já convivia há três anos, quando fundara o primeiro estabelecimento permanente em terras continentais americanas, Santa Maria de la Antigua del Darién, hoje um local perdido na costa da Colômbia. 

Balboa reivindicando posse do Mar do Sul
Descobrir um oceano é uma proeza e tanto, ainda mais se considerarmos as condições nada convenientes de transporte, sobrevivência e visão de mundo do século XVI. Ainda assim, Vasco Balboa não passa de um ilustre desconhecido da história, uma estátua com pose elegante em Madri, ninho e toilete de pombos com nenhuma consciência cívica. Aliás, destino infeliz é virar estátua de praça. Tais esculturas não são apenas alvo de intempéries e ocasionais descargas de colombas; estátuas são igualmente tristes, grosseiras, desconhecidas aos olhos humanos e ainda enfeiam o cenário. Deve haver um meio mais justo e palatavelmente estético para homenagear figuras históricas no ambiente público; falta-nos apenas a imaginação.

O Balboa descobriu um oceano, não foi para o Guinness por isso e ainda está condenado à solidez e inutilidade de uma estátua para toda a eternidade, ou até que o departamento de turismo da prefeitura de Madri decida removê-lo de lá. Enquanto isso, seus olhos pétreos de vítima de Medusa observam as mudanças de estação e o desfolhar patético das árvores, os velhos a jogar xadrez, os jovens se entregar ao primeiro amor e as crianças a brincar de pique-pega. Estátuas me comovem. Mais do que isso, acendem em mim um sentimento desconfortável de piedade. E de empatia.

Em 25 de setembro de 2010 eu descobria um novo continente denominado blogger e decidia postar minhas elucubrações, não antes de organizá-las em forma de texto razoalmente passível de leitura. O Expresso tem sido, desde então, uma nau incrivelmente ativa, onde embarco sonhos, frustrações, aprendizado e confissões; um meio de transporte muito particular e íntimo que, inesperadamente, conquistou outros passageiros. Durante um tempo, não foi apenas trem e navio, mas bússula. E, então, leitores mais assíduos, ou que conheciam mais de perto o condutor, encontravam aqui os meus ponteiros e as direções para aonde apontavam.

Escrever é uma religião no sentido etimológico mais puro da palavra: liga autor e leitor numa comunhão de ideias em que o pensamento se faz fagulha: começa neste teclado e só se completa e define na tela do seu computador, através de seus olhos, experiência e do destino que você decidir dar às brasas: extingui-las ou  reavivá-las. No terreno mais inóspito de mim, não me perdi porque um fio diáfano, porém resistente, magnetizava os meus pólos mais distantes em consonância com os seus. O que me dá a certeza, afinal, de que toda via é de mão-dupla e de que, sim, o desejo maior de qualquer diário é ser descoberto e devorado por olhos e mentes famintas.

Sempre pensei nesse meio de "transporte" como um oximoro em si mesmo, uma figura mitológica de um corpo e duas cabeças: trem e balão, a terra e o ar. Nunca me ocorreu associar o Expresso a caravelas, como a que Balboa deve ter comandado em direção ao Pacífico. O mar me aterroriza. Sua infinitude e fluidez não fazem nascer em mim a sensação de liberdade, mas uma profunda angústia e um doloroso  sentimento de pequenez, solidão e austeridade. Diante da arrebentação, sinto-me estátua; sou Balboa, paralisado no tempo, a contemplar gaivotas que, em breve, pousarão na ponta do meu nariz sem sequer notar que, por baixo da pedra, há carne e consciência.

Nasci, cresci e passei grande parte da vida em lugares cercados por montanhas. Olhar para o céu e vê-lo entrecortado por rochas e verde, delimitado, portanto, me conforta. Fincar os dedos nus na terra e ouvir o barulho do vento nas árvores: trens e balões. Com estes me locomovo; neles, me encontro. Marés, correntes, sal e toneladas de água são um fardo oneroso demais para que, através deles, tente explorar qualquer novo território. Na mata, há ventania alternada com silêncio. Mas o mar, este não se cala nunca. E o barulho das ondas não me acalma. Petrifica.

O Rio de Janeiro continua lindo, com suas montanhas e praias. Fevereiro e março se foram, abraços vieram e, ainda assim, esqueço que, a poucas quadras daqui, há um mar aberto a quebrar na areia, esperando por mim, pela vida e pelo mundo. Evito a orla, a maresia, o rugido das ondas, o calçadão. Olho para a esquerda e vejo prédios, carros, homens engravatados, mulheres de tailleur, gente de óculos de sol e chinelos de verão; posso viver aqui, delimitando o meu mundo em um raio de cinco quilômetros. Então, num olhar de esguelha para a direita, o anil intenso da água junto ao azul pálido do céu sobressaem de encontro ao vermelho das barracas. Mais cinquenta passos e toco a areia: dois universos paralelos, totalmente intercambiáveis. Isso é assustador.

Sinto ainda mais pelo destino de nebuloso personagem histórico de Vasco Balboa. O capitão não apenas desbravava oceanos, como também descobriu um. Para quem não tem o mar nas veias, isso é um baita acontecimento. Posso até dizer que naveguei bastante desde 25 de setembro do ano que passou, mas vim escondida no porão do navio, metade escravo, metade impostor, entre barris de especiarias cujo aroma me fazia lembrar a terra e esquecer a brisa salobra que inflava as velas. Em terras litorâneas, ainda conquisto o meu terreno, centímetro a centímetro, e vou-me acostumando à dualidade que é sentir o cheiro do mar quando, na memória, o cheiro das montanhas reina, absoluto. Neste cruzeiro, revelo-me por vezes trem,  em outras, balão, raramente barco a vela. E, às escondidas, faço figa para não virar estátua de Drummond, à beira da praia, sem óculos.         

23 de setembro de 2011

pronto, falei

Para Mi, Má, Bi, Lina e todos os meus companheiros de credo e cruz. 


Há alguns meses, em viagem a São Paulo, alguém que havia acabado de me conhecer soprou a pergunta inevitável dos círculos sociais: "Então, você faz o que?". Esse tipo de indagação só faz sentido para falantes de português e, ouso dizer, para brasileiros. Parece-me que palavras como "emprego" e "profissão" são nevrálgicas, quem sabe virulentas, para nós. Já ouvi dizer "com o que você trabalha?", mas, confesso, em raras ocasiões. Das duas, uma: ou o brasileiro espirra à menor menção de labor, ou se sente culpado demais para dizer que possui um. Daí a corruptela tosca "o que você faz?". Como se, a essa pergunta, fosse possível escapar com sandices convenientes como: "corto as unhas dos pés no tapete da sala", "adio compromissos" ou "adoto cães abandonados". Pelo jeito, qualquer coisa, risível ou não, é muito mais interessante do que dizer a verdade, a não ser que a sua seja uma profissão muito descolada, como a de um rockstar, um artista de teatro ou um sommelier.

Era um programa típico de um paulistano típico: pizza. E, entre uma fatia acebolada e outra azeitonada, respondi: "Sou professora de inglês". A decepção era visível nos olhos do meu interlocutor. Tão visível que, de notável, tornou-se palpável, ao ponto de outra pergunta, esta descuidada, vir em seguida: "E você pretende fazer o que depois?". Desnecessário dizer que perdi o apetite. Na ausência de uma resposta adequada para satisfizer a fome voraz de staus social e senso de modernidade dos convivas, tentei explicar que essa é a minha profissão, que não estou nela por comodidade ou atitude simplória e que não tenho intenção de fazer nada diferente depois ou durante disso. Em vão. Certos conceitos são ainda mais nocivos do que preconceitos. Como cracas, grudam-se às naus e, aos milhares, levam-nas, primeiramente, ao ancoradouro; em seguida, ao naufrágio.

Ensino inglês há 14 anos. Nesse meio tempo, cursei um ano de Engenharia, fui à faculdade de Comunicação Social, estagiei três anos em telejornalismo, trabalhei em varejo farmacêutico, tive um filho e fiquei um ano sem saber exatamente quem eu era ou o que deveria fazer. Mas, então, um dos muitos trens em que embarco sem bilhete acabou me trazendo de volta para aonde eu havia começado, há tanto tempo. A estação mudou, o cenário é diferente, a minha mala, mais pesada. No entanto, o meu trabalho é exatamente o mesmo, os alunos ainda tem as mesmas dúvidas e a gramática ainda não sofreu revisões. A diferença é que, hoje, o quadro-branco e o marcador foram substituídos por smartboards e por algo muito bacana chamado multimodality. Cidades e tecnologia mudam, mas o sentimento do professor por vocação é o mesmo. E, para a (in)felicidade geral da nação, idênticos são os narizes torcidos que vemos quando alguém com mais de trinta anos de idade admite ser professor de língua estrangeira não como um "bico", mas como profissão.

Sou relativamente tolerante à imbecilidade da gente que deseja mostrar para o mundo a aparência perfeita e o imaculado verniz social, ainda que, para isso, sua qualidade de vida e a realização pessoal estejam comprometidas ou mesmo extintas. Sob esforço intelectual, entendo a razão pela qual o status faz o mundo de algumas pessoas girar, e não o sentido de vida e a busca por felicidade. Afinal, quem dá a mínima para a metafísica do "ser" e "sentir" quando é tão mais in ter um apartamento bacana com vista mais bacana ainda, um carro à altura, um vasto álbum de fotografias de viagens ao exterior, um celular de última geração, mil amigos no Facebook e, claro, um emprego "digno"? Mas, afinal, o que é um emprego digno? Aquele que atende às suas ambições profissionais, materiais e pessoais ou, ao contrário, a profissão que atende às expectativas dos outros, nas rodas de amigos em happy hours, nos encontros de mães em playgrounds e no intervalo para alongamento das academias...?

Tudo isso tem um leve cheiro de ralo de discurso demagógico e parece vibrar com as cores psicodélicas dos hippies ativistas da década de 1970, mas não é. Dinheiro é bom, necessário e todo mundo gosta. Não pretendo, aqui, fazer um manifesto contra os profissionais altamente bem pagos e, muito menos, contra os bens que os seus salários compram. O que não dá para tolerar é o desrespeito gerado pela desqualificação profissional de alguns e as cracas das ideias pré-concebidas, o peso morto dos rótulos, o olhar de pedantismo de quem se acha mais valoroso (ou valioso...?) porque sabe dançar conforme a música do marketing pessoal. Se é tão cool ser moderno, esclarecido e "antenado", igualmente ou ainda mais bacana seria passar a valorizar pessoas e profissões pelo que são, e não por suas imagens que, como sombras, representam um pensamento pasteurizado, reproduzido e caduco. Assim, não haveria um oceano divisório entre profissões "maiores" e "menores" - para não dizer "boas" e "más" -  mas apenas ofícios, trabalhos que existem justamente porque há gente candidatando-se para eles.

Todo mundo trabalha porque precisa. Se você trabalha apenas porque gosta, então este não é um trabalho, mas um hobby. Congratulations. Ou, então, você é um workaholic, o que, na escala Richter de malef(v)ícios, convenhamos, não causa o mais leve arranhão. Mas, na contramão, há quem trabalhe apenas porque precisa, o que gera, invariavelmente, indivíduos infelizes, frustados e neuróticos, independentemente do número de zeros em seu contra-cheque. Na terceira posição, há os que trabalham não necessariamente porque gostem, certamente porque precisam e, indubitavelmente, para atender às expectativas, próprias ou de outrem, de status social. Na escala Richter de malefícios, ouso dizer que estes, ainda que aparentemente satisfeitos e em harmonia com o cosmos, são tão infelizes quanto os que trabalham apenas porque, do contrário, não teriam condições práticas de subsistência. No frigir dos ovos, tudo não passa de mera questão de sobrevivência: bons vivants trabalham para que sobrevivam as suas consciências; workaholics trabalham para que sobrevivam as suas identidades; desprivilegiados trabalham para que sobrevivam as suas famílias; farejadores de status trabalham para que sobrevivam as suas imagens. E, claro, o seu status.

Não escolhi ser professora para ser milionária e, confesso, ao final da última aula de sexta-feira me vem a certeza de que workaholic não é exatamente a carapuça que me veste. Na escala Richter de status social, a minha profissão, digamos, não abala Bangu. Preciso trabalhar muito para ganhar um salário compatível com as arestas econômicas que aparo, respondo às mesmas perguntas cinquenta vezes por dia e, duas vezes por ano, fico sem voz. Não trabalho em horário comercial e sou, como todo professor de inglês, chamada não pelo nome de batismo, mas de "teacher". Não ligo a mínima ou, para quem ainda não sabe: "couldn't care less". Tenho sorte - e coragem - de trabalhar com o que gosto. Minhas aulas valem mais do que o preço de mercado porque nelas embrulho um desejo real de que os alunos aprendam o que tenho a ensinar e, com isso, sejam mais felizes, mais úteis e mais completos, até porque é assim que, trabalhando com eles, me sinto.

Não tenho ideia de quantas pessoas já estudaram inglês comigo em 14 anos. Lembro o nome de muitos até hoje e os rostos de quase todos, enquanto outros foram apagados pelo tempo e pela memória que, com aquele, vai ficando mais seletiva. Algumas turmas são inesquecíveis - para o bem e para o mal - e todos os alunos com quem ainda mantenho contato chamam-me de "teacher", mesmo que eu não seja sua professora há anos. Alguns vi crescer e amadurecer, outros se mudar para a Inglaterra, outros se casar. Um acabou de ter o primeiro filho; outros já eram pais muito antes de eu pensar em gerar uma criança. Gosto de pensar que o meu trabalho faz diferença não apenas para a minha vida, mas para as vidas dos que convivem comigo em sala de aula. Assim, minha profissão preenche minhas carências profissionais, financeiras e pessoais, e dá sentido à grande parte da minha vida: a labuta. Dizer que a carreira que escolhi me faz feliz pode soar como um clichê sentimentaloide um tanto besta, mas esta é a pura e simples verdade. E, a bem da verdade, a felicidade é bem mais simples e pura do que se pensa. See you later, alligator

19 de setembro de 2011

so obvious...

"O Expresso está às moscas". Sei disso. Mas, é por pouco tempo. Enquanto isso, para aquecer a semana...

27 de agosto de 2011

chatterton

"A Morte de Chatterton", por Henry Wallis

Lição do Século IV: não vou nada bem, mas não sou Nietzsche e, muito menos, Chatterton. Resta-me, então, blogar.

Para os falantes de francês, aqui vai a letra da canção original, de Serge Gainsbourg:

"Chatterton suicidé
Hannibal suicidé
Démosthène suicidé
Nietzsche fou à lier
Quant à moi
Quant à moi
Ça ne va plus très bien

Chatterton suicidé
Cléopatre suicidé
Isocrate suicidé
Goya fou à lier
Quant à moi
Quant à moi
Ça ne va plus très bien

Chatterton suicidé
Marc-Antoine suicidé
Van Gogh suicidé
Schumann fou à lier
Quant à moi
Quant à moi
Ça ne va plus très bien"

À propósito, Thomas Chatterton foi um poeta inglês maldito, falido e doido varrido, cuja pequena obra é desprovida de qualquer valor literário. O sujeito ficou famoso ao se suicidar aos 17 anos, com arsênico. Abaixo, a sua poesia mais conhecida, "A New Song":

"Ah, blame me not, Catcott, if from the right way 
My notions and actions run far. 
How can my ideas do other but stray, 
Deprived of their ruling North-Star? 

A blame me not, Broderip, if mounted aloft, 
I chatter and spoil the dull air; 
How can I imagine thy foppery soft, 
When discord's the voice of my fair? 

If Turner remitted my bluster and rhymes, 
If Hardind was girlish and cold, 
If never an ogle was got from Miss Grimes, 
If Flavia was blasted and old; 

I chose without liking, and left without pain, 
Nor welcomed the frown with a sigh; 
I scorned, like a monkey, to dangle my chain, 
And paint them new charms with a lie. 

Once Cotton was handsome; I flam'd and I burn'd, 
I died to obtain the bright queen; 
But when I beheld my epistle return'd, 
By Jesu it alter'd the scene. 

She's damnable ugly, my Vanity cried, 
You lie, says my Conscience, you lie; 
Resolving to follow the dictates of Pride, 
I'd view her a hag to my eye. 

But should she regain her bright lustre again, 
And shine in her natural charms, 
'Tis but to accept of the works of my pen, 
And permit me to use my own arms".

escolhas - do (i)limitado

Tim Roth, em cena do filme "A Lenda do Pianista do Mar"

Em 1998, o cineasta italiano, Giuseppe Tornatore, dirigiu "A Lenda do Pianista Do Mar". O filme é uma fábula travestida de alegoria, a especialidade de Tornatore. Aqui, um bebê recém-nascido é abandonado pelos pais num navio, na alvorada do ano de 1900. Três são as personagens que sustentam a alegoria do diretor: (i) o transatlântico onde o menino nasce e é adotado por um trabalhador das fornalhas, embarcação cujo único destino, por anos a fio, é conduzir imigrantes europeus ao Novo Continente, a América dos cansados, pobres e desnorteados; (ii) o mar, sempre alto, gigantesco e prenhe de novidades. E o órfão, nomeado então "1900", morador eterno do navio, pianista autodidata e virtuoso, que aprende a ler com as colunas de corrida de cavalos nos jornais de seu pai adotivo. Além destes, há Max, o trompetista e narrador da história, o elo que une os espectadores à ilha que o próprio pianista personifica.

1900 passa a vida cruzando o Atlântico, convivendo com gente movida por sonhos, anseios e esperança, entretendo a tripulação com a sua exímia habilidade ao piano; uma vida de idas e voltas, onde é ouvinte atento e músico extraordinaire. Um gênio humano, que acolchoa a quem precisa, alternando silêncio e música. Entre milhares de passageiros com pouco mais na bagagem além de sonhos, 1900 é o sonhador maior que, através da platéia, realiza as próprias aspirações. No entanto, o intrigante na história dessa figura não é o seu talento nato, mas o motivo pelo qual alguém tão enormemente talentoso e com tamanho potencial e carisma jamais deixará o navio onde nasceu, cresceu e vive, nem mesmo quando este, anos depois, estará prestes a ser destruído por uma explosão.

No decorrer de décadas, quando transatlânticos deixariam de ser necessários aos imigrantes, 1900 recusa-se a abandonar o barco - trocadilhos à parte - e a sequer por os pés além do convés. Para compreender essa dinâmica em princípio surreal, basta assistir ao filme e deixar-se embalar pelas ondas e pela trilha sonora de Ennio Morricone. O pianista do mar de Giuseppe não é apenas um homem: ele é o barco, o mar e o piano; gigantesco em si mesmo, vê o infinito do mundo além da embarcação como uma limitação ao imensurável que a sua alma contém. 1900 é o ideal platônico de arte, de vida, morte e, principalmente, de amor. Ele apaixona-se uma única vez - na cena que, provavelmente, é a mais tocante do filme - e, diante da visão de um amor provável, improvisa a canção mais bela de sua vida.

 
"Quanto mais alto voares, maior o tombo". Este é um provérbio português. Um outro, inglês, muda o meio de transporte, embora se atenha ao tema: "os pequenos barcos não devem se afastar da margem". Ou, ainda: "muito para o leste, já é oeste". Todas variações sobre o mesmo tema. Um alerta tácito para quem enxerga o mundo como 1900: existe, sim, uma zona de conforto, a sombra que protege as asas de cera de Ícaro contra os calores fatais do mundo exterior à sua ilha. O horizonte é imenso, infindas são as possibilidades. Entretanto, tais como as teclas de um piano, finitos são os seres humanos, ainda que se possa compor, num átimo de segundo de vida, incontáveis elementos sinfônicos. A "música" que se compõe é eterna; o "pianista", mortal. Se fosse diferente, a vastidão do firmamento não se transformaria numa linha longínqua, onde o céu encontra o mar, parecendo-se despencar no nada. Pois assim é a "visão" do mundo: finita, ainda que numa ilusão de óptica.

Diante das múltiplas escolhas, toda a gente se confunde. Não é por acaso que o tempo passe, a tecnologia evolua e as organizações ainda usem o sistema de "marque a alternativa correta" para testar candidatos a vagas de emprego ou em universidades. A mente limitada, em constante busca pela moldura, não se sai muito bem com alternativas, o que dirá de múltiplas. E é na calada da alma, quando nenhuma sirene desperta para alertar sobre uma emergência de incêndio - ou naufrágio - que as múltiplas oportunidades embaralham mais a visão. Na conveniência das praças de alimentação, por exemplo, é inconveniente o número de opções de restaurantes. Na ausência de apetite, roda-se feito um galináceo tonto para encontrar o lugar ideal; mas, na hora da fome apertada, é o primeiro arroz-com-feijão que satisfaz. Dá-se, nesse momento, a limitação de si mesmo.

O que nos leva a optar por um caminho entre milhares, a tomar uma decisão em detrimento de outras? Não somos ilhas, nem tampouco mobília animada de navio, como a personagem de "A Lenda do Pianista do Mar". Se vivemos num mundo sem fronteiras, onde imperam a visão, extracorpórea e imediatista, e a mobilidade, presencial e virtual, qual o sentido em escolher apenas um trabalho, um hobby, um apartamento, uma cidade, uma mulher ou um homem quando, a rigor, podemos ter centenas? Para que compor apenas um tema e uma única melodia de amor quando se pode alternar ritmos, estilos, partituras, teatros...? De onde brotam as escolhas? E, o crucial, de onde brotam a necessidade ou a vontade de optar?

Conheço um casal. São uma dupla pouco convencional, onde a incompatibilidade fala mais alto do que a harmonia. Unidos pelo acaso, nenhum deles sabe exatamente o que os mantém juntos. Como escritora, tenho uma prerrogativa que falta aos meus leitores: posso escolher não mencionar nomes (ah, as escolhas...), contar uma história real à guisa de ficção e, por que não, trazer à baila uma experiência pessoal e alocá-la, ou melhor, encarapuçá-la em outras vidas. Cabe a você, que lê estas linhas, decidir. Em qualquer caso, a história é esta: duas pessoas contraditórias em si mesmas e entre si, para quem tomar uma decisão pode ser algo tão tortuoso a ponto de beirar a dor. Quando penso neles, vem-me à mente a ideia de que a vida e o mar os conduzem, e não o contrário. Têm fome, os dois; são mancos, precisam de muletas. E inseguros. Marujos covardes e pianistas canastrões, envergam-se sob o peso das opções e abrem mão das infinitas possibilidades. Talvez já nem saibam mais como escolher; apenas esperam ser escolhidos.

No entanto, não são como 1900. Em suas almas, não habita o incomensurável, mas a plena, pungente e inevitável limitação. Em sua solidão, descrença e fome, contentam-se com o arroz-com-feijão nosso de cada dia, sem ao menos verificar o restante do cardápio. Delimitam-se, pois. Esgarçam-se e afunilam-se até a total nulidade de si mesmos. Toupeiras cegas, mãos unidas no suor frio do medo, eles não abandonam o barco por amor, mas por preguiça de remar de volta à praia. Apiedo-me profundamente desse par de almas penadas, perdidas e pobres. Como nenhum deles costuma ler este Expresso, não temo pelo que possam pensar quando virem parte de sua história aqui exibida, para ilustrar um ponto de vista. A questão é: de onde nasceu a decisão de estarem juntos? Em outras palavras, teriam eles de fato optado ou, ao contrário, a inércia decidiu por eles? Sabendo-se tão limitados em si mesmos, por que se firmariam a um barco à deriva? Na fome e na emergência, é a refeição mais rápida e disponível que satisfaz. Mas, tendo atingido um platô de saciedade, o que legitima sua decisão? Indolência, comodidade ou pavor?

Estes são barcos pequenos demais para se afastar da margem; o leste desse casal há muito virara oeste. Aliás, são um comandante e um imediato sem bússolas. E, desmagnetizados os dois, remando em mar aberto ou voando alto, não é para o norte que apontam, mas para uma queda brutal. Seria uma felicidade podê-los ajudar a encontrar a si mesmos e, quem sabe, um ao outro. Mas temo não possuir a melhor das bússolas. Por outro lado, temo a vastidão, o infinito e as múltiplas escolhas; nunca me saio bem em testes objetivos. Se tivesse nascido em um navio, como o pianista do mar, é muito provável que eu não o abandonasse pelo simples temor de que, em face ao infinito do mundo, minha própria finitude e pequenez se agigantassem, engolindo-me tal qual um buraco negro e me implodindo como uma supernova. Continuo sem saber de onde brotam as decisões e, confesso, para mim o mundo é tão grande quanto o caminho que traço de casa para o trabalho e vice-versa. Como um navio-fantasma. O livre arbítrio é mesmo a maldição dos indecisos, cansados, pobres e desnorteados. E viva a liberdade.   

26 de agosto de 2011

estrangeiro


Sentimento assustador é descobrir-se estrangeiro. Um forasteiro em si mesmo, alógeno encarcerado num corpo que é invisível aos próprios olhos, à deriva, na anomia da sensação de não-pertencer, não-poder, não-estar. É estrangeiro tudo que foge aos moldes, à ordem e aos hábitos; é o alienígena que pousa em terras desconhecidas e, por trás dos seus óculos de ET, enxerga o cotidiano túrbido dos nativos; o estranho no ninho. Em meio aos iguais - entre si, mas não para com ele - o estranho repara-lhes as bocas se movendo, escuta-lhes o som das palavras e vê as cores dos sorrisos e o borrão das lágrimas, mas, ainda assim, não compreende o que capta a sua percepção. Em território estrangeiro, o forasteiro é ignoto; caminha entre pares e, na dessemelhança, traça rotas cegas ao sabor das correntes, insulado, fragmentado, atinente à nada.

Para o estrangeiro nato, que jamais memoriza os pontos de referência, as avenidas largas e os cruzamentos das terras que, sem sucesso, tenta habitar, mapas nem sistemas integrados de GPS vem a calhar. Rimas, tampouco. O turista é, por natureza, torto, perdido, míope e alheio. Aliena-se e é alienado. Abraça o opróbrio para escapar à humilhação do ostracismo: late e morde antes de ver o ladrão adentrar o quintal. Olha as palmas das mãos e as desconhece. Em linhas cruzadas, ignora o destino que a si cabe traçar. De quem são esses anéis? A que se propõem digitais que apontam para uma não-identidade...?

Há quem nasça pertencente ao mundo: adaptável, moldável, volátil. Co-cidadão. Na contramão destes, os forasteiros: andarilhos cosmopolitas, caipiras high tech, vampiros do meio-dia. Burgos, aldeias, vilas, cidades, países inteiros a eles se apresentam tão obtusos quanto à rotina dos dias: casa, trabalho, sorvete, cerveja, cigarro, casa. Ou o contrário. Fugiu-me à memória. Pois carentes de memória episódica somos os estrangeiros. Em nós, sobeja o peso das correntes do passado semântico: terminologia elegante para algo nada vistoso: a melancolia e os aspectos gerais da lembrança, desta que não delimita, mas, ao contrário, borra o cenário que pintam os moradores.

Sensação agreste esta de saber-se estranho, de que o tempo corre a milhas à frente e ele, analfabeto em línguas pátrias e estrangeiras, perde bondes e entradas por não ler as placas. Por não pertencer, o estrangeiro deveria sentir-se leve, livre do peso das raízes, da responsabilidade, da opressão que é nascer, viver e morrer na mesma e única casa. Entretanto, por tão frugal e vaporosa a sua existência, o alienígena arrasta consigo o peso de toneladas moleculares, cerebrais, sentimentais. Âncoras que não o seguram ao porto, mas lhe retardam as velas e retalham o convés. Peso morto. O ônus inafiançável de quem é estrangeiro e prisioneiro de si.    

11 de agosto de 2011

puzzle(d)

By Monica Secas

Lição do século III: shake your ass before someone else does it for you.
Roberta Rohen

9 de agosto de 2011

sair, molhar, viver

By Monica Secas
Lição do século II: dá trabalho, mas, no final, vale à pena. Não é...?

Roberta Rohen

28 de julho de 2011

o piano caiu; mais uma vez

Lição do século: querer abocanhar mais do que se pode mastigar, o que dirá engolir, é altamente indigesto.

By Alex Noriega
Roberta Rohen

26 de julho de 2011

o mar


Não sou uma escritora ou jornalista de renome, fato que restringe, ou melhor, impossibilita a minha pretensão à carreira de cronista. Não escrevo sobre política, economia ou "atualidades" em geral, o que faz com que os meus escritos morram às margens da irrelevância, vazios do caráter informativo hoje fundamental para leitores "antenados". Não poderia ser diferente; se nomeei este blog de "Expresso do Inconsciente", além de socialmente irrelevantes, suas postagens seriam incoerentes se não traduzissem a alma do escritor, suas aspirações e, refratadas pelo leitor, a capacidade de reflexão que contém. Assim, tudo o que escrevo pode não ser aplicável às exigências de um mundo conectado aos massacres terroristas, às oscilações do mercado financeiro e à política internacional. Mas, certamente, são textos que harmonizam com o que, a priori, um expresso do inconsciente se propõe a trazer e levar como carga. 

Já faz um bom tempo que, reclusa, não visito o Expresso. Pena para mim, que perco contato com a nau que, tantas vezes, preveniu-me de afogar; pena para você que, leal, vem aqui de tempos em tempos em busca de algo novo para lhe inspirar, mitigar, remexer, transpirar. Sou como a Lua: tenho fases. E, mais predominantemente do que fases, metamorfoses. Houve um tempo em que as mudanças ocorriam em mim letárgica e incipientemente; quase não as percebia. De fato, era como se não existissem. Sentia-me petrificada: um gárgula vigilante, coberto de limo e cracas, à espera da passagem dos segundos, à guisa de anos, espiando insone, pelos olhos baços, a vida acontecer por trás dos rebocos das paredes. A imutabilidade, travestida de resignação, levava-me a crer que o meu sangue e vísceras, tais como a pele nua, gélida e sólida da estátua, não corriam nem respiravam. Não poderia estar mais enganada. Como na evolução das espécies, as mutações vão tomando conta dos nossos corpos e mentes a partir de aspectos tão diminutos, e tão lentamente, que nos fazem acreditar que nada muda. Mas a transmutação é inexorável; ainda mais quando lenta, disfarçada em camadas de certezas, e do avesso para fora. Ah, sim. Até estátuas sem rosto sofrem as mudanças impostas pela vida.

No torvelinho das mudanças, o tempo tem valor poético, mas não prático: dois meses são como dois dias; um ano se arrasta como dez. Quando toda a sua estrutura vai-se acomodando aos sacolejos, assim como a Pangeia à deriva continental, você é uma ilha cercada de tumulto, o olho cego de um furacão. Não percebe que está galopando, que o solo liquidifica-se aos seus pés e, ainda menos, para aonde o mar o levará, continente virgem, recém-nascido, errante e inexplorado. Está à deriva. À deriva das maremotos, do novo ser que, acabrunhado, não reconhece no espelho. Modificar-se é assombroso. Encontrar-se ao sabor das mudanças é aterrador.

Todo mundo sabe que tudo muda, que a vida é uma seqüência de modificações. E mudam também as maneiras como cada um encara essas transformações. O Raul, por exemplo, dizia com orgulho que preferia ser uma metamorfose ambulante a ter aquela velha opinião formada sobre tudo. Só que ele esqueceu de mencionar que mudar, além de assustar, dói. Disso bem sabe o Zeca, que afirma que é "mais fácil mimeografar o passado do que imprimir o futuro". Sair da zona de conforto, da pupa, da sombra e da carapuça de estátua é, definitivamente, mais trabalhoso do que permanecer em inércia. Há os desbravadores, claro, como chamo aqueles que não apenas abraçam as mudanças; caçam-nas. A vertigem, o suor frio, a confusão dos sentidos e a súbita cegueira parecem não os incomodar: os "desbravadores", à semelhança dos alpinistas, amam o desafio do desconhecido. Mudar, para eles, é como acomodar-se para nós, os "exilados".

Explico-me. Alguns parágrafos acima disse que sou como a Lua, que tenho fases e metamorfoses. No entanto, tais características não são naturais para mim. Ser alguma coisa não quer dizer exatamente gostar de sê-lo. Corrijo-me, pois: aceito ser Lua; sofro metamorfoses com resignação, mas, de forma alguma, busco-as. Ao contrário, as mudanças, como os furacões, pegam-me de surpresa. Sempre. Assim, não sou apenas Lua, incertezas e estátua exposta às intempéries; sou uma Dorothy "exilada", perdida na estrada de tijolos amarelos, sem Totó e tremendo de medo do próximo tufão. O indivíduo nasce com apenas três certezas, a tríade harmônica  da sinfonia de sua existência: (i) vai viver, por um tempo limitado; (ii) vai-se modificar e transmutar inúmeras vezes durante esse intervalo, assim como o próprio ambiente que o rodeia; (iii) vai secar, murchar, cerrar os olhos e fenecer. Além disso, entre o céu e terra, abro alas para Shakespeare e suas (nossas?) vãs filosofias.

De gárgula a espreitar o desenrolar dos acontecimentos, transformei-me em personagem central de um musical. Mas, não me deixo enganar. Não fui eu quem subiu ao palco e clamou para si o papel principal. As circunstâncias, o furacão da mudança e as ondas é que o fizeram. Ocorre que a canção que, durante tempos, foi responsável por causar-me náuseas, transformou-se, à revelia de mim, na letra da minha vida; ou, pelo menos, desta fração da partitura da minha vida:


"Eu já passei
Por quase tudo nessa vida
Em matéria de guarida
Espero ainda a minha vez
Confesso que sou
De origem pobre
Mas meu coração é nobre
Foi assim que Deus me fez...

E deixa a vida me levar
(Vida leva eu!)
Deixa a vida me levar
(Vida leva eu!)
Deixa a vida me levar
(Vida leva eu!)
Sou feliz e agradeço
Por tudo que Deus me deu

Só posso levantar
As mãos pro céu
Agradecer e ser fiel
Ao destino que Deus me deu
Se não tenho tudo que preciso
Com o que tenho, vivo
De mansinho lá vou eu...

Se a coisa não sai
Do jeito que eu quero
Também não me desespero
O negócio é deixar rolar
E aos trancos e barrancos
Lá vou eu!
E sou feliz e agradeço
Por tudo que Deus me deu"
Composição: Serginho Meriti

A poesia do Serginho Meriti, na voz do mais tupiniquim dos brasileiros, Zeca Pagodinho, e a bunda de biquíni paralisada num frame do vídeo acima são, bem... Um primor. Chega um momento da vida - mais cedo para uns, tardiamente para outros - em que o sujeito define o que quer ser, se não plenamente, pelo menos em seus contornos. Se você é do tipo que acredita que "definir-se é limitar-se", então é como eu: um retardatário da contra-definição: define-se não pelo que acredita querer ser, mas pelo que tem certeza do que não admitiria ser. "Deixa(r) a vida me levar", "deixa(r) o negócio rolar" e "ir de mansinho" eram tudo, menos o que eu planejara para mim. Na arrogância cega e inflexível da adolescência, quando não se é apenas mais um filho de Deus, mas um próprio deus imortal, eu acreditava que o destino, as decisões e os cursos das mudanças eram rédeas. E que estavam em minhas mãos. Confesso: preconceitos musicais à parte, pelos eriçavam-me da cabeça aos pés aos primeiros acordes de "Deixa a Vida me Levar". A vida não leva ninguém; nós levamos a vida. Certo...?

Com a adolescência vão-se as certezas absolutas e refratárias, vai-se a facilidade de se definir, esvai-se a coragem kamikaze de desbravar e ir de encontro às mudanças. Há tempos me pergunto quem leva quem, se somos rio ou canoa, ovo ou galinha. Tostines vende mais por que está sempre fresquinho ou... Exatamente. Nenhuma resposta fácil. E muito menos pronta. Hoje, sob os holofotes do palco, cega diante da platéia que, em silêncio e suspense, aguarda pela minha próxima fala, vislumbro, na última fileira do teatro, a sombra do gárgula passivo que fui. Mas, ainda assim, as mudanças conduzem-me mais do que eu a elas. Em minha frente há um longo caminho, que vai traçar uma linha divisória entre a marionete de então e o diretor de cena que espero ser. Serei? Seremos? Ou a vida continuará nos levando, no arroubo incompreensível das mudanças?

Por vezes simplesmente canso-me de planejar e de tentar me definir; geralmente dá errado. Se a vida é teatro, o improviso parece-me ser a bola da vez. E, se improvisamos, é porque alguma mudança houve no roteiro. Na história que eu pensava estar escrevendo e atuando, meus pais não envelheceriam nem seriam falíveis; eu seria uma mulher liberada, dona de si, confiante e independente; não haveria casamentos fracassados, desencontros amargurados ou decepções; a razão falaria mais alto, tão alto que calaria o ribombar incessante da minha passionalidade; a meia-idade demoraria séculos para chegar, assim como um filho; eu seria a extensão de minha família, seguindo-lhe as pegadas rumo a um destino certo. E viveria cercada de montanhas, sobre solo fértil e seguro e sob teto baixo. Se, ainda assim, tudo, absolutamente tudo desse errado, haveria até um "plano B": a fuga para as origens, para as raízes, para a terra, onde o solo não é apenas casa, mas útero. O meu "plano B" era uma fantasia doce e confortável, mas, mesmo assim, uma fantasia, uma involução, um renascer às avessas.

Ocorre que tudo, absolutamente tudo saiu diferente do planejado; até o "plano B". E, de calças na mão, no olho do furacão, mudanças de roteiro a me rodear, descobri que não havia outra rota de fuga, nenhum útero para me engolir, nenhum "plano C". O que faz o náufrago em mar aberto? Dá braçadas contra a corrente, só para se exercitar? Não, Cazuza, certamente não. Para não ser devorado pelo mar, o marujo à deriva, de olhos atentos ao barco que afunda a alguns metros dali, para sobreviver, boia. E deixa-se levar, nadando em favor das ondas, até que estas, complacentes, levem-no de volta para a praia. Exausto, sem fôlego, enregelado até os ossos. Mas, vivo.

Minha relação com o mar sempre foi conflituosa, paradoxal até. Desconfio da água, das profundezas, de sua cor mutável, da natureza adaptável dos líquidos. Água evapora e vira gás; solidifica-se e vira gelo; derrete e torna a ser água. Muda, enfim. A terra, não. Terra é constância e horizontalidade. Por isso sempre amei a terra, as montanhas e as árvores. O solo não escorre pelos dedos, nem vira nuvem; é terra e pronto. E, quando tocada pela água do orvalho ou da chuva, exala cheiro de casa, de segurança. De passado. Posso ceder aos apelos da nostalgia, mas não sou idiota. Vejo as mudanças acontecendo ao meu redor, dentro de mim, em meus anseios e temores. Assombro-me diante delas, sim, mas aceito que sou mudança.

Até pouco tempo, o mar era, para mim, uma entidade que, uma vez ao ano, visitava. Então dava-se início a minha busca por um oceano de águas mais mansas, claras e tépidas, onde pudesse me banhar, sem maiores sobressaltos: piscinas de água salobra. Eu amava aquela faixa de terra tocada pela água limitada de uma baía, onde permitia que o sol escaldasse-me a pele até a ardência máxima, a dor, o bronzeado transformador. Dois meses de mar parado e bronze dolorido eram o suficiente para que chegasse ao fim a minha relação com a água salgada da Terra. Eu dava adeus para o mar, dizia-lhe: "até o próximo verão", e voltava para o vale cercado de montanhas onde nasci. À medida que o cobre ia-me abandonando a pele, também evanesciam minhas lembranças do mar, da sua cor, da temperatura da água, do cheiro do mar.

Hoje faço morada num lugar que, além de montanhas e mata, é cercado de mar. Mar aberto, vivo, que, em dias de mau humor, fica de ressaca e lambe as calçadas distantes com suas ondas vorazes. Este foi o mais recente e relevante improviso no roteiro da minha vida: sair à rua, tomar uma lufada de brisa fresca no rosto e, mesmo sem ver o mar, sentir-lhe o cheiro de sal, a umidade. Outrora eu conhecera o mar apenas sob o céu azul de verão; hoje, debaixo do domo de chumbo do inverno, quando o vento é mais intenso e frio, o mar parece-me ainda maior, mais revolto e mais mutável. A maresia salobra continua lá. Continuam os movimentos incessantes das ondas, raspando as rochas gigantes, e o ir e vir das gaivotas; apenas as cores do cenário são diferentes, porque diversa é a estação.

O mar me ensinou que nem toda mudança é definitiva; algumas, são cíclicas: como as estações, as cores e os estados físicos da água, a temperatura da terra. E, sobretudo, o destino. Falharam-me os planos "A" e "B". As mudanças, por mim conduzidas ou não, o improviso e o mar foram o meu "plano C". Deixei-me levar pela vida, pelas ondas, pela necessidade premente de mudar e de recomeçar, de amar. A vida me trouxe a um ponto que jamais imaginei tocar e, não me restam dúvidas, há de me levar ainda mais longe. Se a coisa não sair do jeito que eu quero (ou planejo), não vou me desesperar; o jeito é deixar rolar. Com ou sem desespero, a vida vai seguir o seu curso, o rio vai desembocar no mar e as mudanças vão continuar sendo a regra do jogo, e não a exceção. Já passei por quase tudo nessa vida e, em matéria de guarida, espero ainda a minha vez. Num jorro de otimismo, arrisco dizer que já posso vislumbrá-los, o abrigo, a guarida, a duas ou três curvas adiante. Vou de mansinho, para não derrapar; sou feliz e agradeço, por tudo o que a vida, as mudanças, o destino e o (a)mar me trouxeram.