29 de novembro de 2010

querido diário



Você vai se sentir um diário super importante e, com certeza, suas páginas vão se inflar de tanto orgulho e lisonja ao saber que o último diário onde eu escrevi foi uma agenda verde da Company. O ano era 1996, mas a agenda datava de 1994. Por dois anos de atraso em relação à realidade temporal, uma velha agenda verde se transformou em diário. Antes deste, eu costumava ganhar diários da minha professora de inglês, uma senhora britânica com quem eu sempre tomava chá orange pekoe com leite e inesquecíveis cookies de aveia e chocolate no final das aulas. O primeiro diário que ganhei teve a capa bordada de azul e vermelho. Nunca me enderecei a ele como "querido", e muito menos "diário". Simplesmente escrevia pensamentos, rabiscava poesias tolas, contava fatos que eu acreditava serem segredos, mas que não passavam de mera elucubração pré-adolescente. Minha professora de inglês fez muitos diários para mim, sabe. Ela comprava um caderno pequeno, pintava ou bordava capas em papel carton e, depois de terminada a sua arte, levava o caderno e as capas para uma gráfica, para encaderná-los. Você pode conceber gesto mais afetuoso e simbólico, diário?

Ninguém deveria receber presentes tão incríveis com menos de 18 anos porque, fatalmente, descuidei-me dos diários que minha professora me dera e eles se perderam em mudanças, velhos armários e sótãos que eu nunca mais vou abrir. Sabe, não sinto a menor falta das bestagens que, evidentemente, escrevi naquelas páginas. Mas arrependo-me terrivelmente de não tê-los guardado, porque cada um deles era um trabalho artesanal simples, belo e único que aquela senhora britânica fazia para mim. Até hoje me assusto com a quantidade de beleza e simplicidade que deixamos passar por nossas vidas, em oposição ao mundaréu de quinquilharias com as quais abarrotamos nossas casas, os porões e a memória. Imagine, amigo, que, se o cérebro de cada indivíduo fosse dotado de um HD com direito à "lixeira", assim como um computador, e se fôssemos contemplados com as opções "esvaziar lixeira" e "reconfigurar HD", cada um de nós morreria de assombro com o número de arquivos que simplesmente escolheríamos por "deletar", e o pouco que optaríamos por "gravar na unidade C:". Para você a coisa também não é fácil, não é, companheiro? Afinal, ao menor sinal de rasura da vida, arrancam-lhe as páginas outrora escritas com devoção e ternura. Tal amputação deve lhe doer bastante, diário, mesmo que não sejam suas aquelas memórias extirpadas. Se quiser desabafar, pode contar comigo em qualquer dia. 

Mas, voltando à vaca fria, são uma e trinta e cinco da madrugada de segunda-feira. Faz um calor abafado e bolorento, porque chovera muito durante a semana e o sol saiu para rachar nesse domingo. Quando isso acontece, a umidade toma conta de tudo, e a gente se sente como legumes cozinhando no vapor. Aliás, e é essa minha deixa, diário, eu posso até me sentir cozinhar como um legume nesse verão úmido, mas eu não sou mais um legume. Confesso que, nos últimos meses, esses em que não escrevi para você, as raras vezes em que me olhava no espelho, era um maço de brócolis que eu via. Ou uma couve-flor injuriada e murcha. Às vezes, um nabo feio e insosso. Certo sábado, juro que fui uma berinjela "de vez" e magrela. Meu hálito tinha cheiro e gosto de berinjela. Nos últimos meses, fui também repolho, cenoura, alho-poró e cebola. A fase da cebola, em especial, foi um castigo que eu realmente nunca imaginei merecer. Legumes eu fui, diário. Pronto. Falei. Legumes do fundo da quitanda, da última caixa do caminhão que tombou na estrada, hortaliças rolando na beira do asfalto, um maço de brócolis sem flor, vegetando no tempo-espaço. Só não cozinhei antes porque o calor chegou para rachar a moleira mesmo há umas poucas semanas. Não cozinhei, mas vegetei um bocado.

Mas, hoje sinto-me tomada de uma alegria e vitória imensas, daí o fato de estar lhe escrevendo depois de tantos anos, sumida como estava. Parei diante do espelho, há uns três dias, de olhos fechados, paralisada de temor de ver, no lugar de um rosto, o bulbo coberto de manchas, brotos e terra de um inhame. Suspirei, juntando forças para abrir os olhos. Que eu fosse um tubérculo, então. Mas, ao menos, deveria limpar a terra e cortar os brotos da raiz, não concorda, diário? Abri um olho, depois o outro. E vi olhos, nariz, boca, cabelos, testa e pescoço. Eram meus. Não era mais um legume o que eu via. E havia um sorriso discreto nos lábios que vi refletidos no espelho, amigo. Dentes brancos, bem alinhados e com dois caninos pontudos. Pelos caninos, soube que os dentes eram, de fato, meus. E só então, passada a surpresa e o assombro de um ex-vegetal, reconheci que, se aqueles lábios e dentes eram meus, o sorriso também era.

É isso, diário. A fase horti-fruti passou. Sobrevivi a cada fotossíntese, do brócolis à cebola. Boiei nos labirintos da memória como vagens levadas pela correnteza de um riacho, vegetei em estado vergonhosa e dolorosamente latente, mas, ainda assim, nenhum daqueles legumes apoderou-se de mim. Tá bom. Talvez em parte, por algum tempo. Mas podia ter sido pior, diário. Imagine: eu poderia, em minha fase cebola e alho-poró, ter parado no fundo de uma panela fumegante, para temperar outros legumes e servir de sopinha de neném. Ai, então, meu amigo, não teria sido apenas cômico, mas deveras trágico também. Hoje à tarde fui-me olhar no espelho, para ter certeza absoluta de que nenhum broto de beterraba estivesse nascendo em meu nariz. Havia apenas um pequeno, fino e arrebitado nariz. E meus velhos, nostálgicos e saudosistas olhos cor de mel. E dois caninos pontudos, branquinhos. Opa! Se vi os caninos, é porque havia ali um sorriso. E, enquanto lhe escrevo essas linhas, estou sorrindo. Sobrevivi aos delírios kafkianos que atormentaram-me a identidade nos últimos meses. Escapei da panela e do caldeirão, amigo. Agora, posso retomar minha caminhada, com boas e velhas botas de cangaceiro, um chapéu de vampiro e a esperança de que, na próxima curva, ou em outra mais adiante, hei de encontrar os pedaços que faltam a  esse meu coração de manteiga.

27 de novembro de 2010

echarpe


Chorei, chorei, nunca imaginei que pudesse chorar tanto com uma animação tão minimalista em um vídeo do youtube.com. O pessoal do Chongas descreveu o vídeo dessa forma: "E quando você percebe, mas já é tarde demais?". Senti até um friozinho na boca do estômago. Melhor abrir bem os olhos, crescer, viver, mas não deixar de lado os cachorros nossos de cada dia. Porque, um dia, pode realmente ser tarde demais.  

23 de novembro de 2010

entressafra

Já há algum tempo, algumas pessoas me incentivavam a ter um blog. Confesso que nada parecido com expor minhas idéias dessa maneira jamais tenha passado pela minha cabeça. Eu me entregava às minhas dilações literárias, rascunhava-as em qualquer papel que encontrasse e, se alguém não o guardasse, acabava perdido, esquecido ou em alguma lixeira. Então, numa tarde, um grande amigo (um daqueles que me encorajavam a ter um blog) acabou por me convencer. Estávamos no trabalho, mostrei-lhe um texto que tinha feito e ele mesmo "montou" o esqueleto do blog para mim. Chamou-me ao computador e disse: "Pronto. Agora, é só postar e deixar com a sua cara". Então nos ocorreu que precisávamos de um nome para o blog. Eu não tinha a menor idéia.

Não sou muito boa em nomear coisas, principalmente se não tiver pensado um pouco sobre o assunto com antecedência. Geralmente intitulo o que escrevo quando o texto já está acabado, então, dar luz a um nome para o blog foi a pior das experiências iniciais. Olhei para o meu amigo e disse: "Que nome ele pode ter? Me dá uma idéia!". Ele olhou para o teto, segurou o queixo por alguns segundos, pensativo, e disparou: "Sei lá. Porque você não coloca uma coisa meio louca, tipo 'escalafobética'?". Encarei meu amigo muito séria: "Jura? Mas você me acha escalafobética?". Lá vinha uma crise de identidade em meu encalço... Meu amigo riu, não levando a coisa muito a sério, sábio que é, e respondeu: "É. Você tem umas coisas meio escalafobéticas, sim". Suspirei, conformada. Então tá. De uma tentativa fracassada de trocadilho, nasceu o nome desse blog, ou melhor, não o nome, mas a URL, o endereço dele no universo virtual. É lógico que, minutos depois de ter o esqueleto montado, vi que nada que eu pudesse expor, mesmo que virtualmente, poderia soar tão nonsense como "Escalo-Alfabéticas". Pedi socorro a meu amigo, que me explicou que eu poderia mudar o título do blog como e o quanto quisesse, mas não o endereço. A não ser que nós excluíssemos aquele e criássemos outro. Trocamos um olhar cúmplice e, diante da preguiça que tomou conta de nós, a URL ficou.

Esse blog nasceu em 23 de setembro de 2010. Existe, portanto, há dois meses. Àquela época, eu vivia um momento de euforia e muitos risos, caminhando a alguns centímetros acima do chão. Talvez não fosse apenas euforia. Talvez eu estivesse, pura e simplesmente, feliz. Feliz como há muito não conseguia me sentir. Mas, por motivos sombrios, que eu mesma ignoro, acho melhor olhar para trás e considerar aquele um período de euforia. Para tornar as coisas mais leves, mais fáceis de engolir. O primeiro nome que dei ao blog, levada pelo momento que vivia, foi "Trens e Balões". Era, com certeza, um título melhor do que o da URL, e o escolhi porque sempre acalentei o sonho de voar num balão e viajar sobre um trem de ferro, desses bem antigos e vagarosos, numa noite enluarada. Entretanto, o título dizia ainda mais sobre aquele momento da minha vida: eu me sentia como um balão colorido, cheio de gás, flutuando mansamente no anil do céu com o qual sempre sonhara, mas apenas me sentia assim.

'Estação de São Lázaro", Claude Monet

O que sempre fui, e nunca deixei de ser, é um antigo trem de ferro, anacrônico e deslocado entre as muitas conveniências modernas, rodando e rangendo sobre os trilhos, muitas vezes em círculos, outras, percorrendo distâncias incríveis só para chegar à velha estação e, em algumas paradas, descarrilando e perdendo o norte. Essa contradição me incomodava. Tudo o que eu queria era ser um balão leve e colorido e lindo, mas os vagões e correntes jamais me permitiriam flutuar. À medida que fui dolorosamente tomando consciência disso e aceitei a idéia de escrever a vida sobre os trilhos, rangendo e contornando montanhas, bufando fumaça a cada suspiro resignado de mais um sonho esquecido e sepultado, deixando passageiros antigos e embarcando novos, enfim, quando olhei-me no espelho e ouvi um apito de trem, e não um chamado de gaivota, resolvi que esse blog seria um expresso.

Mas todo expresso vem de algum lugar e vai para algum lugar, mesmo que em jornadas cíclicas. Então, meu expresso haveria de vir do inconsciente, este que dita muitas das minhas decisões e subjuga o centro do meu eu. Saída: Id. Destino: Construção do Ego. Assim, e não das costelas de Adão, nem de um bom trocadilho, nasceu o nome desse blog. E, de fato, ele faz as vezes de divã, onde tento organizar pensamentos, escrever sobre eles e descobrir um pouco mais sobre o destino dos meu vagões, sobre como se faz para reconstruir um ego multifacetado, dicotômico e esfacelado pelo tempo que não existe, pelo tempo que já passou e pelo tempo real, em que devemos seguir viagem sempre, mesmo às cegas, para não sermos atropelados pelo próximo trem que já apita atrás de nós. 

Não sei até quando vou me sentir como apenas mais um passageiro do meu próprio trem. Às vezes me surpreendo com esse cansaço, quase um temor de me sentar à cabine do maquinista. Olho a paisagem pela janela de uma das cabines e vejo árvores, céu, pessoas e casas num borrão indistinto, como se estivesse passeando numa pintura de Monet, através de seus olhos tomados pela catarata. Vejo cor em algumas paradas. Noutras, o cinza domina o cenário com matizes de chumbo e sombreados melancólicos. Rio comigo mesma quando tais pensamentos tomam forma de palavras escritas. E penso que, a mim, não me basta ser apenas a maquinista desse trem, mas também alguém com dom para a pintura, que saiba manusear aquarelas, paletas e pincéis com desenvoltura estratégica para pintar as paisagens como melhor lhe convier. 

Talvez tudo isso não passe de um bando de elucubrações inúteis, que vêm rondar o sótão da minha morada como corvos e pousar sobre meus ombros. Eu deveria saber que corvos, além de feios e agourentos, cagam. Portanto, não poderia deixar nenhum deles pousar em meus ombros. Afinal, dizer "xô" não é algo tão trabalhoso quanto limpar a sujeira dos pássaros da memória. Por outro lado, penso em quais partes de mim eu deveria renunciar para ser menos trem e mais maquinista, menos pensamento e mais ação, menos querer e sonhar e mais construir. Mas, a bem da verdade, ignoro se são "renunciáveis" as partes do eu que definem um indivíduo, sua essência e suas cores. Pergunto-me se, de renúncia em renúncia, não chegará o dia em que os contornos que definem a pessoa que eu vejo no espelho, vão se volatilizar até a transparência, até não haver mais contorno algum, só a essência, sem molduras. Como uma casa sem número. Ou um blog sem nome, nem URL.

Nesse meio tempo, ouço o vento soprar nas estátuas, o cantar distante de um canário e a água correndo devagar no leito de um rio. Fecho os olhos e sinto o cheiro da estrada de terra molhada de chuva, da fumaça da lenha queimada e de lençóis recém lavados, estendidos no varal. Timidamente, coloco o rosto para fora da janela e sinto a luz do sol de inverno, dourada e suave, tornar-se cada vez mais branca e escaldante à medida que o verão vem tomando seu lugar. Abro os olhos, temendo ver apenas um borrão da paisagem que me cerca. Mas seus contornos já vão se formando novamente, com vagar, mas persistentes. Não sei desenhar, nem pintar. Nunca soube. Então, nesse meio tempo, escrevo.              

22 de novembro de 2010

cães, gatos e bonecas


Existe, no círculo de amizades e atividades comerciais onde trabalho, uma figura interessante. É uma balzaquiana bonita e atraente, que não revela sua idade em hipótese alguma, de estatura não muito elevada, mas sempre firme num salto doze, divorciada, dona de uma empresa em franco desenvolvimento, mãe de um adolescente que a respeita e venera, e, daí o motivo de estar em foco aqui, uma mulher que fala o quer, onde quer e como quer. Muitas pessoas falam o que querem, onde querem e como querem. Mas poucas têm um senso de humor afinado e, ao mesmo tempo, brejeiro dessa minha conhecida. Antes de passar adiante uma pérola que a ouvi dizer, é preciso conhecê-la e a algumas dilações convenientes.

Eu a apelidei, carinhosa e ironicamente, admito, de "boneca". Porque ela sempre usa vestidos justos e acinturados, muito bem alinhados, os cabelos pretos e curtos às vezes envoltos por uma faixa, uma pequena bolsa a tira-colo, maquiagem na medida ideal e um perfume marcante e envolvente. Ninguém mais no mundo deveria usar aquele perfume, a não ser ela. Tal essência é a sua marca registrada, inconteste e indelével. A "boneca", como a chamarei aqui, tem uma presença dominante. Quando chega num recinto vazio, logo o preenche por inteiro com sua voz de comando, seu andar ligeiro sobre os tamancos altíssimos, seu olhar perscrutador e indecifrável (ela tem os olhos mais pretos que já conheci. Olhos grandes, negros e que brilham muito), e uma audácia e coragem admiráveis. Imagine uma mulher pós-moderna, dona de si e dos que a rodeiam, com auto-estima tinindo, carreira brilhante, corpo esculpido em academia e liberdade plena. Imaginou? Pronto. Essa é a "boneca".

Em princípio, não senti muita simpatia por ela. A força daquela mulher, a ambição, a astúcia e a liderança dela faziam-me lembrar uma raposa esperta ou uma pantera à espreita. Felinos, para mim, com sua atitude independente, seu porte altivo e seu olhar de desdém, não são animais confiáveis. Daí minha paixão por cães. Submissos, brincalhões, carentes e babões, há cachorros que adoecem e até morrem na ausência de seus companheiros humanos, em oposição aos gatos, que valorizam muito mais o ambiente e o conforto onde moram do que seus "súditos" humanos. Americanos levam essa preferência por cães ou gatos tão a sério que perguntam, no início de um relacionamento, se o outro é uma "dog person" ou uma "cat person". Nossa preferência por felinos ou caninos parece revelar muito da própria personalidade do ser humano, levando-se em consideração o animal como gradiente. Lembro-me de Tereza e seu amor por Karenin, como exemplo. No livro, não posso imaginar Tereza se apoiando no amor por um gato para construir, como o fez com Karenin, dez anos de sua vida com Thomas baseados no tempo idílico da repetição em que vive o cão.

Não é que pessoas fracas prefiram cães, enquanto os fortes adorem gatos. Afirmar algo desse tipo seria de um determinismo anacrônico, irresponsável e surreal. Mas, quando repasso pela memória os donos de cachorros e gatos que conheço, vejo neles algumas características em comum que me levam a crer que humanos que precisam de atenção e de um olhar de credulidade, confiança e dependência pousado sobre eles, tendem a se apegar ao amor carente de um cão, ao passo em que pessoas com um estilo de vida mais independente e despojado, que não lidam bem com a carência afetiva e a constante necessidade de atenção do outro, tendem a preferir a personalidade volátil e desapegada do gato. Felinos são altivos e  independentes demais para um dono que precisa da certeza e da lisonja que o amor incondicional de um cão pode lhe ofertar. Por isso, quando penso na "boneca", não consigo vislumbrá-la com uma coleira na mão, sendo arrastada por um beagle gorducho e barulhento pelas ruas da cidade. Na verdade, não faço a menor ideia se a "boneca" tem ou não animais de estimação. Mas, se tiver, algo no fundo das minhas entranhas me diz que seria uma gata siamesa esbelta e garbosa, cujos passos leves e elegantes pela sala ela nem ouviria. Ou um peixe beta num aquário de cristal, no máximo.

Depois de tantas dilações, volto à história da mulher a quem apelidei de "boneca". Em princípio, por me fazer lembrar um felino, ela não me pareceu confiável. Ao contrário, me inspirou antipatia e desconfiança. Mas, se a primeira impressão que eu tivesse dela fosse a de uma mulher insegura, carente, brincalhona e frívola como um fox terrier, talvez eu tivesse logo estabelecido laços de empatia com ela. E, talvez, como a um cachorro babão, eu não a tivesse respeitado. Mas, então, ela não seria a "boneca", não teria superado inúmeros obstáculos em sua vida pessoal e profissional e, o mais importante, não os teria vencido, tornando-se um exemplo de sucesso. Vejo agora que ela me intimidou com sua força, elegância e auto-confiança. Ou melhor, eu me senti intimidada, já que esta nunca fora sua intenção. Aos meus olhos (e o olhar constrói os pilares da realidade de cada um), ela era a gata altiva e segura de si e eu, o vira-lata acuado, desprezado e carente. Entendi, de alguma forma, que minha desconfiança não era necessariamente em relação a ela, mas a mim mesma. Em outras palavras, eu não desconfiava da "boneca"; apenas não confiava o suficiente em mim mesma para olhá-la nos olhos e me sentir em posição de igualdade (uma atitude bem canina, admito).

Hoje já não suspeito mais da "boneca", embora, sendo de mundos diferentes (ela à moda persa, eu, rolando no chão à cocker spaniel), não possamos, de fato, estabelecer uma relação intrínseca de amizade. Mas, acima de tudo, nutro um respeito profundo por essa mulher. Quando eu a via, olhava (com os mesmos olhos pidões de um lhasa apso) para o chaveiro que ela sempre carregava consigo. É uma joaninha de couro envernizado de vermelho, de tamanho médio, com dois brilhantes no lugar dos pequeninos olhos. Eu amei aquela peça no momento em que a vi. Não demorou muito para que eu, desprovida do orgulho e da elegância felina, logo lhe pedisse que me desse o chaveiro, já que ela tinha tantos outros, tão mais bonitos. Um dia, depois de muita insistência de minha parte, a "boneca" me prometeu que, quando trocasse de carro, me daria a joaninha vermelha. No fundo eu achava que ela estava tentando me engambelar, e logo tratei de ignorar minha obsessão pela joaninha.

Ocorre que a "boneca", muito amiga de minha mãe, ficou sabendo que eu andava passando por uns terremotos, com direito a pancadas de chuva e trovoadas em minha vida e, como faria qualquer cachorro assustado na mesma situação, pus o rabo entre as pernas e logo encontrei um canto do cômodo para me esconder. Quem conhece bem o esconderijo da minha alma pode até ouvir, de longe, o "caim, caim" triste dos ganidos que solto em madrugadas solitárias. Quando soube disso, a "boneca" sentiu-se pessoalmente aviltada. E disse à minha mãe que eu não poderia assumir tal posição derrotista. Claro que, para quem não está no olho do furacão, no meio da tempestade ou soterrado por escombros, fica muito mais fácil aconselhar o "derrotista" a levantar-se do chão, sacudir a poeira, rodar a baiana e se posicionar majestosamente diante da vida. O fato é que assim ela o fez. E, num impulso de generosidade e empatia, deu o chaveiro de joaninha a minha mãe, pedindo para que ela o entregasse para mim.

Quando pus as mãos no "presente", meus olhos marejaram. É difícil, ou melhor, "humanamente" impossível para um gato se livrar de seus pertences. Gatos podem até não delimitar seu território da forma típica como fazem os cachorros, mas valorizam a casa onde moram e não abrem mão dos brinquedinhos que seus donos lhes dão. Eu sabia que dar aquele chaveiro, um objeto de estimação, representava muito para a "boneca", assim como representou muito para mim. Hoje, a joaninha, feita símbolo sob a luz de uma metáfora sentimental, representa uma ponte, um elo entre essa mulher e eu. Quando minha mãe me entregou o chaveiro, disse que a "boneca" tinha dois recados para mim, naquele momento de turbulência que eu estava vivendo.

O primeiro, ouvi minha mãe dizer, era para que eu usasse a joaninha sempre, para me dar a sorte que deu a ela e me deixar "mais alegrinha", já que eu a queria tanto. O segundo recado é a razão pela qual eu havia dito, no início dessa história, que a "boneca" fala o que quer, onde quer e como quer, e ainda enfeita as palavras com seu senso de humor ao mesmo tempo afinado e brejeiro. O segundo recado dela, esse sim, me deixou alegre de fato, porque, na semântica torta da vida, suas palavras me fizeram rir de verdade: "quando o coração amolece, o cu padece". Pode não ser um ditado digno de uma mulher elegante como ela e talvez, na contradição implícita na imagem dela casada com a sua fala, residam toda a originalidade, graça e significado da coisa. Curioso. Não consigo pensar num ditado que expresse com igual força essa pérola da "boneca". E, o mais incrível, não vejo pessoa mais adequada para dizê-lo do que ela, que não se permite abater, e muito menos padecer, quando segue os ditames de seu coração felino, intrépido e guerreiro. 

21 de novembro de 2010

presentes

Chuva torrencial lá fora, aqui dentro um calor abafado. Em minha saliva, uma sede grande por novas estradas, horizontes mais amplos e ensolarados, rumos mais meus. Penso. Para aonde fugir...? Ver Milene. Mas a moça mora longe, está cansada da labuta semanal e, às vezes, se esconde. Milene sabe, principalmente, quando precisa se esconder, para se resguardar, defenestrar antigas gavetas da memória e do sótão do dia-a-dia, onde habita o mofo que ela precisa limpar. Mas, ainda assim, encontro Milene. E reencontro, na poesia doce que só ela sabe fazer, um presente que escreveu há tempos para mim.

Então, surpreendida em meu casulo abafado, tenho um pouco mais de sorte, em plena maré de azar no jogo, no amor e na dor. Ganho um full house quando falo com Maíra, que também está longe daqui. Mas Maíra é montanha, um gigante valente em cada partícula doída de seu corpo nu, de sua carne exposta, da sua alma fatigada; ela sempre vem a Maomé. E me encontra, cava a terra ao me redor, quebra unhas e derrama sol no meu quintal. Maíra me diz que um bolo deve permanecer no forno o tempo necessário para que, só então, possa ser servido com gosto para quem aprecia e conhece um bom e genuíno quitute do gênero. Não, curupira, nem tudo na vida é uma receita de bolo. E, não, piá, bater, assar e servir um bolo não é tão simples quanto se pode pensar. Retire-o do calor antes do tempo, cozinheiro, e ele murcha. Retire-o depois, mestre-cuca, e ele esturrica. Vira pedra, estátua de Medusa. A gente é tudo bolo, de fubá, chocolate, banana, nozes ou maçã, assando lentamente, escondidos ou não, esperando o tempo certo para fazer parte da festa da vida.   

penso nos ares de Roberta
pisando pesado sobre
ladrilhos pretos, brancos não_
torta vai pelo caminho_
but she does it her own way_
e ainda que não bastasse_
ser amendoada_
cria algo dourado
palpável intocável
diz a isso
come and save me
se recolhe em
uma ostra de remédios 
com óculo virtual
mas mesmo assim
complexa peregrina
presa ao chão
vejo duas gotas de mel 
no chá das cinco

mais uma Coca-Cola, 
please

do not disturb her 
she's being Roberta
 
and that takes a lot of time

por Milene Portela

Mais presentes dessa moça, você vê aqui: http://papelpequeno.blogspot.com

17 de novembro de 2010

oitenta e três

A vida caminha, comigo em seu encalço, e levanta poeira. Sou poeira.
No arrastar do tempo, imprimo marcas em estradas por onde caminhei um dia, sabendo que hei de deixar rastros em trilhas que ainda visitarei.
Vida, trajetória e pó. Ela venta pelo meu corpo e pela memória, e leva consigo parte de mim, de sonhos insones que me acalentam. E assombram.

É tênue essa brisa, que traz saudades e faz renascer esperanças. Esperança para hoje, para amanhã, para ontem! Esperança de vida, de quietude e de menos ventania dentro de mim...
Sou pó e terra, sim, mas também um lençol d'agua, de um querer intenso, um manancial que deseja despertar desse sono dormente.
Rio fluido, prenhe de sonhos, sigo para o mar (que é para aonde seguem todos os rios...). O mar aberto da realidade da terra, do solo e do enraizar. E tento, assim, alocar em mim, pequeno e finito, sonhos contraditórios, de desejos opostos...
Na ambivalência intensa e solitária que sou, no avesso do meu poder (que é esse meu inquieto querer), os sonhos de uma vida pela qual passei (ou terá ela passado por mim...?), são consumidos, abafados e soterrados.
Não velejam, como deveriam velejar de vento em popa os sonhos, mas hibernam, no escuro das lembranças, na estagnação do pó, e no correr das horas.

Mas há orgulho inquieto em mim. Meu coração pulsa, o sangue jorra. Esperança! Plenitude! Amor! Eu clamo por eles, na ambiguidade que revelo ao mundo.
E, no sussurro da noite, sob estrelas que admiro e que também habitam essa alma, eu rogo, numa prece silente, em que escuto apenas o pulsar de meu coração, jovem, vivaz e tortuoso: 
Que jorre vida em minhas veias e em meu espírito. Jorrem forças para a vida caminhar, e obstáculos ultrapassar.
E que, da raiz que sou, até as folhas por onde abro meus olhos para o horizonte, brote-me coragem para viver essa vida comprida, e sentir alegria, quase sempre sofrida, mas destemida.

16 de novembro de 2010

quebra-cabeça

Os quebra-cabeças que a gente costumava montar ou, no meu caso, tentar inutilmente montar, quando crianças, estão repaginados, de cara nova, com um upgrade fantástico graças à tecnologia que, de nova mesmo, não tem nada. A tecnologia é antiga, o preço é mais alto, o marketing, up-to-date, e a idéia, bem, a idéia é nova. E cruel para nós, adultos que, hoje, mal conseguimos montar aqueles cenários e bonequinhos do Lego (sim, Lego is back, e com força total). Então, eis a novidade: quebra-cabeças, agora, vêm em 3-D. Uau! Adquiri um, de 48 peças, com gravura da animação "Toy Story 3", da Disney-Pixar, pela bagatela de trinta reais. Estava em promoção. Achei que fosse um mimo ultra bacana para o meu filhote de três anos, já que ele, como todas as outras crianças do planeta, acredito, é fã do Buzz e do Woody. Dos outros personagens ele ainda não sabe o nome. Daí, inventa. E são os nomes mais loucos, criativos e incríveis que se possa imaginar.

Meu filho é como meu avô. Ele conhecia muitas árvores da mata, sabia o nome de todas aquelas madeiras, parecia mais um xamã da floresta para nós, seus pequenos e fiéis escudeiros-discípulos. Quando vovô não sabia o nome de uma determinada árvore, embora a reconhecesse e soubesse suas características, ele inventava um nome para ela. Lógico que não falava para a gente que estava inventando. Ele dizia um nome qualquer que lhe viesse à mente, tocava a madeira e, para nós, aquilo bastava. Uma árvore, um nome, um elo. Só anos depois, quando ficamos mais velhos, menos criativos, mais turrões e sem-graça, é que descobrimos que ele inventava alguns nomes. E daí? Os nomes que ele inventou continuam sendo usados na região até hoje. E garanto que, como os apelidos que meu filho inventa para os personagens cujos nomes reais ele desconhece, aqueles que meu avô inventou para as árvores estão muito mais vivos, porque têm cor e identidade próprias, estão intumescidos de criatividade e espírito e, por isso, florescem e dão frutos continuamente.

Mas, para um quebra-cabeças 3-D, haja criatividade, habilidade e visão macro da realidade. Espalhei as 48 peças no chão e meu filho ficou animadíssimo, tentando montar o puzzle. Confesso que, cinco minutos após olhar as peças miúdas "tremulando" na ilusão de óptica tridimensional, comecei a ficar meio tonta. Afinal, nasci ainda na década de 70, se bem que no finalzinho dela; o máximo, para mim, em termos de cognição  espacial, eram aquelas casinhas de madeira, com tijolinhos vermelhos, para empilhar uma sobre a outra. Meu filho foi guerreiro, praticamente um highlander. Tentou encaixar aquelas pecinhas psicodélicas por quarenta minutos enquanto eu, derrotada, humilhada, zonza e frustrada, já havia me jogado no sofá, amaldiçoando o infeliz que teve a idéia de complexificar algo complexo por natureza - o quebra-cabeças - adicionando o efeito 3-D em cada uma das peças. Dou a mão à palmatória. E pago cem contos de réis ao adulto da minha geração que conseguir montar o puzzle 3-D-mor dessa linha: nada menos que DUZENTAS peças. Com direito aos óculos, para, depois de montado, você conseguir praticamente "ver" o Woody galopando seu pangaré.

Quando se consegue finalmente encaixar a cabeça do Woody com seu chapéu, a imagem "se move", e a ilusão engana nossa retina e o centro do cérebro responsável pela decodificação visual. Ilusão. Mágica. Mas, então, eu movo a cabeça para a direita, depois para a esquerda, olho para o quebra-cabeças de longe, e o boneco me parece ter três olhos, uma boca à la Pablo Picasso, o chapéu meio que cai de lado, tem algo errado com essa imagem. "Tá certo, mamãe, é assim mesmo", meu filho garante. Mas não está. Eu desmonto as três peças que, arduamente, havíamos montado, negando-me a crer na ilusão, ou, simplesmente, não conseguindo ser enganada por ela, e o moleque fica zangado, falta me dar umas palmadas: "Mamãe, você não entende de quebra-cabeça. Deixa comigo". E assim o faço. Juntar peças em uma dimensão única já é complicado. Em três, então... 

Esse é o chato em crescer. Fora as obviedades da condição de ser adulto, tais como, contas para pagar, responsabilidades chatas, posar de correto, ético e exemplar para a sociedade, mais contas, não poder pintar o cabelo de azul e ir para o trabalho, ter hora para tudo (até para transar, valha-me Deus!), mais contas, enfim, o chato em crescer é que você perde a capacidade mágica de se permitir "iludir" pelo que é criativo, imoderado, poético e fora do comum. Meu filho ia encaixando aquelas peças e não via nada demais no fato de o Woody, aparentemente, ter três olhos. Meu avô inventava nomes para árvores e achava essa "botânica  particular" mais do que natural. Pablo Picasso pintava em não sei quantas dimensões, e também não via nada demais nisso. Artistas são crianças, nesse ponto. Poetas, também.

Acaba de me vir à mente a imagem de uma mãe, às voltas com as compras de supermercado, filas para o banco, trabalho para por em dia e um marido para vigiar, puxando seu filho pelo braço, apressada. "Vem, menino. Não fica olhando para o chão, que nem bobo!". A mãe é um adulto cheio de responsabilidades e praticidades da vida. O menino, com o bracinho dolorido pelo puxão da mãe, só está encantado, boquiaberto porque seus olhos de criança, olho do mundo, acabam de "capturar", no chão de cimento, uma imagem linda e única: um galhinho verde a brotar pela rachadura da calçada. Ele pergunta à mãe: "Será que ele vai virar uma árvore, mamãe?". Ela quase não escuta o filho. Pensa em qual marca de sabão em pó deve comprar essa semana. Mas o responde: "Árvore? Do que você está falando, Joaozinho? Vem, menino, que moleza!".

A gente cresce e vai ficando míope, acho. Desencantado. Ou, para seguir a vida, vai fechando os olhos em algumas ocasiões, colocando tapa-olhos e viseiras em outras, tampando ouvidos, emudecendo palavras e pensamentos, adultescendo e oxidando. A gente nasce, cresce, adultesce, desencanta, oxida e morre. E, nesse meio, breve tempo, perde a capacidade de se iludir. Perde essa capacidade ou se esquece dela. Às vezes, toupeiras cegas em que nos transformamos, deixamo-nos iludir pelo feio, pelo cruel, pelo avesso do mundo. Mas a mágica e a beleza da vida, um galhinho verde a brotar numa rachadura do calçamento, uma árvore com nome inventado, uma brisa carregada do perfume exótico da dama da noite ou o efeito tridimensional bacana de um quebra-cabeças, por esses a gente perde a capacidade de se iludir, ou melhor, de se encantar. E vai vivendo e fenecendo aos poucos, sem graça, nem poesia, nem óculos coloridos e 3-D para enxergar melhor, ou com mais alegria, a realidade chapada e cinza da vida.

14 de novembro de 2010

1900


Em Milan Kundera, o amor nasce de uma metáfora, ou de uma rede de coincidências que visualizamos para enxergar a beleza da vida. Assim, Thomas começa a amar Tereza no momento em que ela, de mulher, transforma-se numa metáfora do bebê abandonado ao rio numa cesta, que Thomas precisa resgatar e cuidar. Da mesma forma, Tereza passa a amar Thomas quando, "por coincidência", toca Beethoven no momento em que ele entra no bar onde ela trabalha, trazendo um livro em mãos. Para Tereza, Beethoven e livros são símbolos de uma fraternidade única, à qual ela sempre almejou pertencer. 

Kundera também afirma que a vida de cada indivíduo é uma partitura musical única. Como em toda partitura, cada um de nós tem um tema musical próprio, e vai regendo a vida, voltando sempre ao tema principal, derivando movimentos sobre ele, improvisando outros, mas sempre seguindo e retornando ao tema.

O italiano Giuseppe Tornatore dirigiu, em 1998, aquele que é um dos filmes mais tocantes, sensíveis e densos já produzidos na atualidade, "A Lenda do Pianista do Mar". O protagonista, um virtuose do piano que foi abandonado pela mãe num navio transcontinental, criado por um maquinista e que nunca pôs os pés para fora desse navio, nem nome possui. Ele é chamado pelo ano em que nasceu, 1900. Tornatore deve ter lido Kundera. Não por acaso, ele escolheu Ennio Morricone para compor a partitura musical de sua personagem-título.

Como se não bastasse a trilha, Tornatore nos presenteia com uma das cenas mais belas do nascimento do amor, usando a metáfora da música e a coincidência da presença de uma mulher, inesperada, no momento em que o pianista improvisava um solo para ser gravado. Do improviso musical no tema da vida desse pianista, da visão da mulher, do símbolo da finitude humana nas teclas contadas de um piano, em oposição ao ilimitado oceano, nascem o amor. É belo, é triste, é fugaz e vale a pena rever e ouvir 1900 vezes.

13 de novembro de 2010

o clímax

1

Tudo começara, como sempre, com mais uma das brincadeiras de Rúbia. Vick achava que a amiga perdia um tempo precioso de sua vida com essas agências de encontro virtual. Rúbia deveria estar cadastrada em no mínimo três delas. A última, uma gigante no mercado americano, havia acabado de chegar ao Brasil, oferecendo cadastro gratuito e três meses de seus serviços sem custo algum para os solteiros em busca de um amor compatível. Rúbia não perdeu tempo. Assim que assistiu ao comercial da agência na televisão, levantou-se do sofá, em plena madrugada, ligou o computador e gastou mais de três horas para completar o cadastro do seu perfil por inteiro. E isso, até então, era tudo o que Vick sabia.
"Eu não entendo. Para que você vai se cadastrar em mais uma dessas agências, se as outras três não deram em nada?", Vick perguntou à amiga, em tom de desaprovação, mas escondendo um riso debochado. As duas estavam no apartamento de Rúbia, relaxadamente acomodadas em almofadas grandes e coloridas que ela amava espalhar pela sala. Cada um daqueles almofadões havia sido comprado numa feira hippie diferente. Vick observava Rúbia atentamente, enquanto esta dava longas baforadas num cigarro mentolado. 
"Vick, você é tão retrógrada... O mundo inteiro está cadastrado em agências de encontros. Na pior das hipóteses, você fica conhecendo gente nova e interessante. A coisa é completamente inofensiva", e expirou a fumaça mais uma vez, com um gesto afetado das mãos, vendo as espirais subirem até a luminária de bambu no teto.
"É perigoso se você der informações pessoais demais, Rudinei, você sabe disso. E é isso que você sempre faz", a moça falou, calmamente. Ao ouvir seu verdadeiro nome, o lobo frontal do cérebro, aquele que controla os impulsos violentos, preencheu-se de sinapses perigosas na mente de Rudnei. "Rúbia", como era conhecido por todos e assim exigia ser chamado, pôs-se de pé e, do alto do seu um metro e oitenta e cinco, esbravejou contra Vick:
"Que ridículo me chamar de 'Rudinei' só para fazer seu ponto, garota. Patético querer me lembrar que eu não tenho uma boceta de verdade só porque a sua, au naturelle, é inútil!". Os olhos dele, muito escuros, estavam agora impenetráveis, sólidos feito granito, e sua boca, coberta de gloss dourado, tremia de cólera e humilhação.
Imediatamente, a garota arrependeu-se de ter chamado o amigo pelo nome de batismo. Rudinei era muito mais feminino do que ela mesma jamais seria. Era, em cada fibra do seu ser, uma mulher, embora houvesse nascido um homem. Suas mãos tinham dedos longos e finos, com unhas sempre impecavelmente pintadas de esmalte claro; o corpo era coberto de uma penugem clara e macia, e não por pelos crespos e fartos de um homem da sua idade; os cabelos eram naturalmente lisos e lustrosos, feito um manto de seda negro, que ele deixara crescer até o meio das costas e usava sempre soltos ou com uma tiara de pequenos brilhantes. Devido aos hormônios femininos que tomava mensalmente, desde os 14 anos, os seios já haviam despontado consideravelmente, e eram pequenos e firmes, com mamilos escuros e pontudos. Possuía uma linha de cintura natural, coxas torneadas e um traseiro muito mais respeitável do que os das outras mulheres do trabalho. Rudinei era, acima de tudo, disciplinado em esculpir diariamente seus músculos na academia do bairro. Não era uma drag queen, e muito menos um traveco de esquina. Homem algum que o visse, maquiado e com suas roupas sempre muito sensuais e femininas, diria que ele era portador de um incômodo cromossomo "Y".
"Desculpe, Rúbia", a moça lhe disse, os olhos cravados no piso de azulejo antigo do apartamento. "É que eu me preocupo com essas coisas, com você. Foi sem querer..."
"Você não dá a mínima para a minha segurança, Vick. O que você não admite é que eu tenha uma porção de homens, homens de verdade, aos meus pés, enquanto você fica encalhada, fria feito um sapo de brejo". Ele ainda estava com muita, muita raiva de ter ouvido aquele maldito nome que o fazia se lembrar da sexualidade que abominava.
"Também não precisa apelar, Rúbia. Eu estou solteira por opção. E não sou fria, não".
"Ah, não, eu é que sou, ha, ha, ha". Ele agora iria rechaçá-la até não poder mais. Vick teve ganas de sumir por um buraco recém-aberto no piso, fugir do olhar acusador daquele homem que era, na verdade, sua única amiga. "Você tem muito, mais muito mais problemas sexuais do que eu, querida. E de identidade também. Solteira por opção?". O escárnio derramava de seus dentes brancos e lábios finos, atingindo-a em cheio. "Ou não seria porque, quando você se apaixona por um homem, não consegue se deitar com ele, hein? E, quando se deita, não sente nem a menor cócega, hein, Maria Vitória?". Pronto. Era o fim da noite. Rúbia enfurecera-se, com razão, e quisera dar-lhe o troco. "Maria Vitória". Esse nome que ela considerava ridículo, o nome com o qual seus pais, católicos praticantes, haviam-na registrado, era um estigma para aquela moça. Ela não se espantava de ser frígida, acabrunhada e introspectiva. Que mulher na face da Terra, dotada de um nome duplo tão cafona como "Maria Vitória", poderia se liberar para o mundo, para o próprio corpo? Ela se levantou, foi até a cozinha do apartamento de Rúbia e lavou rapidamente o copo em que estivera bebericando um pouco de tônica. Não suportaria ouvir mais uma palavra sequer da amiga.
"Agora você vai fugir, Maria Vitória? Vai voltar para a sua bat-caverna em plena noite de sábado, vai?". Rúbia era mais cruel do que uma mulher, porque era homem, ansiava por ser uma mulher de verdade e sabia que jamais o seria. "Chega, Rúbia. Por favor. Já pedi desculpas. Pisei na bola. Não precisa ficar jogando merda no ventilador por isso...". Ela já estava a dois passos da porta, pronta para voltar, sim, para o seu casulo, o seu cantinho escondido na cidade, sua bat-caverna sem Batman e muito menos Mulher-Gato. Olhou para trás e viu Rúbia, de braços cruzados, as pernas compridas numa pose altiva. Parecia até uma modelo, daquelas que ela via nos desfiles do São Paulo Fashion Week. Os olhos de Rúbia flamejavam, mas havia lágrimas retidas neles. Lavar roupa suja sempre doía, para quem lavava e para quem as pendurava no varal, também. "Vejo você na segunda, Rúbia", ela falou suavemente, quase num sussurro de medo, e se dirigiu à maçaneta. "Deixe que eu abro a porta para você, sua tonta. Se não, você não volta mais." Era Rúbia que, com três passadas, atravessara a distância total da sala até onde ela estava. Pôs a mão de dedos longos e lindos no ombro da amiga e falou, agora num tom mais ameno: "Desculpe, garota. Eu fiquei ofendido. Não me chame de Rudinei nunca mais, viu? Eu não ouvia esse nome há mais de dez anos. 'Ofendido', não. Eu fiquei ofendida. Viu o que um simples nome pode fazer, mocinha?". Vick olhou para Rúbia e, sem se segurar mais, abraçou-a apertado, soluçando sem parar. "Desculpe, Rúbia, eu sei que esses fantasmas da minha vida acabam me fazendo falar e fazer coisas que eu não penso de verdade...". Os ombros dela sacudiam, as lágrimas manchavam o top que Rúbia usava aquela noite, mas nenhuma daquelas duas pessoas parecia se importar. Rúbia afastou-a gentilmente do seu abraço e olhou bem dentro dos olhos verdes da amiga: "Escute, você precisa se resolver. Só tem 28 anos, garota. Não dá para ficar assim para sempre, você entendeu?". Sim, ela entendia perfeitamente. Mas entre "entender" um problema e "resolver" um problema, havia um abismo de diferença. "Rúbia, não me chame mais de 'Maria Vitória', também...". Rúbia meneou a cabeça e fez um gesto de desprezo com as mãos: "Quem é essa, Vick? Não conheço ninguém com esse nome.". As duas sorriram, mas na paleta de cores dos sorrisos, aqueles eram amarelados, pálidos, frágeis e duvidosos. Mas, ainda assim, eram sorrisos. Pior seria se tivessem terminado a noite em guerra. Na guerra, tudo é sempre pior.


A semana passava arrastada na agência de publicidade onde Vick e Rúbia trabalhavam. Arrastada para Rúbia, que não via a hora de a sexta-feira chegar para ela se encontrar pessoalmente, pela primeira vez, no sábado, com alguém de uma daquelas agências. Estavam trocando emails há mais de três meses, mas não haviam querido se falar ao telefone. Optaram por se conhecer pessoalmente, mantendo uma aura de mistério e élan até o momento definitivo do encontro. Para Vick, a semana se arrastava como uma lesma ao sol porque, simplesmente, ela não tinha nada programado para o fim de semana. Afortunadamente, havia trabalho demais tanto para Rúbia, que comandava uma seção de design gráfico, quanto para Vick, que integrava a equipe de produção. O trabalho focava e distraía as mentes conturbadas das duas. Elas eram amigas desde os tempos de ESPM. Entraram juntas, formaram-se juntas e, naquela mesma agência, estagiaram e foram contratadas. Sua parceria funcionava porque uma não representava concorrência para a outra; ao contrário, seus trabalhos se complementavam e, numa cidade gigantesca e inóspita como São Paulo, era um privilégio que duas pessoas trabalhassem no mesmo lugar e tivessem certo grau de amizade. Assim, a solidão que se sentia entre os arranha-céus e avenidas entupidas de automóveis não chegava a ser tão desoladora. No trabalho, apenas os superiores diretos de Rúbia e Vick sabiam seus verdadeiros nomes. Todos os outros pouco mais de cem funcionários chamavam-nas dessa maneira, e nenhum, Vick apostava sua alma nisso, desconfiava que Rúbia não fosse uma das mulheres mais belas da agência.
Vick era de Campinas, e tinha vindo para São Paulo para estudar e se mudar, definitivamente. Sua relação com os pais sempre fora conturbada, ela nunca quisera seguir a religião deles, nem seus arcaicos preceitos morais e, como se isso já não fosse suficiente, em Campinas todos os seus familiares, vizinhos e poucos amigos chamavam-na de "Vitorinha". Em São Paulo, ela era Vick. E ponto final. Rúbia era de Ubatuba, amava sua mãe como a ninguém no mundo, era órfã de pai e, de vez em quando, recebia "dona" Fátima para passar com ela uma temporada na cidade grande. Vick tinha 28 anos e Rúbia, 35. Eram ambas jovens, problemáticas, mal-resolvidas e ainda acreditavam poder se apaixonar de verdade. 
Mas este era o problema maior de Vick: apaixonar-se. Ela já havia se apaixonado umas poucas vezes, disso não desconfiava um minuto sequer. Mas, apaixonada, só sabia ser servil aos namorados na cama, entregando seu corpo a eles como quem entregasse a própria alma, como se o seu corpo fosse um presente, uma oferta especial e única. Mas Vick tinha um pavor atroz de perder sua alma quando a dividia com um namorado, medo de, ao entregá-la ao objeto de sua paixão, perder sua própria identidade de "Vick" e não passar da simplória, carente e sentimental Maria Vitória. Ela se lembrava de uma poesia que lera há anos na faculdade, que dizia que as almas são incomunicáveis e que, portanto, cabe às pessoas deixar que seus corpos se comuniquem, e não suas almas. Vick nunca gostara, ou melhor, nunca concordara com aquele poema. O que ela mais desejava no mundo era ser reconhecida pela sua alma, e não pelo seu corpo. Queria, no amor dos corpos, que sua alma emergisse à flor da pele e entrasse em comunhão com a alma do outro. Nessa falta total de comunicação entre corpos e almas, Vick não sentia desejo algum quando se apaixonava, embora só se permitisse deitar-se com alguém, e apenas, se estivesse apaixonada por ele. E, na ausência de desejo, seu corpo não sentia prazer algum, restando-lhe, após o coito, uma alma vazia e um corpo dormente.
Há alguns meses, Rúbia lhe emprestara um exemplar de um livro antigo, com folhas amareladas, e lhe pedira que lesse tudo, página por página, porque, segundo a amiga, aquele livro seria sua redenção pessoal e sexual. Vick deu-lhe um riso torto e amargo, e respondeu: "Que palhaçada, Rúbia. Desde quando literatura tcheca faz as vezes de um terapeuta sexual?". Rúbia encarou-a, muito séria: "Você não sabe o que está falando, querida. A mulher desse livro tem os mesmos problemas que você tem. Parece que o autor se baseou na sua vida para escrever!". Vick folheou a brochura e passou os olhos por algumas páginas, rapidamente. Disse, sem tirar os olhos das páginas: "Rúbia, a mulher está em plena Boêmia invadida por soldados russos. O que isso pode ter a ver comigo?"
A outra perdeu a paciência e tirou-lhe o livro das mãos. Folheou-o até encontrar um capítulo específico. Entregou-o de novo à Vick, dizendo: "Pronto, preguiçosa. Você não vai ler tudo mesmo. Então, leia apenas esses capítulos aqui, e você vai ver do que estou falando. Vai ter sua solução, como a mulher do livro". Vick pôs, então, um marcador na página, fechou o livro e guardou-o na bolsa de couro grande que usava. "Vai ler?", Rúbia perguntou, incisiva. "Vou, santa. Prometo".
Naquela mesma noite, depois do trabalho, Vick devorou os capítulos que Rúbia havia marcado para ela. E, realmente, ficou espantada com a semelhança entre ela e a personagem tcheca. Segundo o autor, aquela mulher só se libertaria da prisão de sua alma, sendo capaz de distinguir o amor do ato de amor, se pudesse se entregar a alguém desconhecido, a alguém por quem jamais fosse capaz de se apaixonar. No dia seguinte, Vick devolveu o livro à Rúbia e, constrangida, lhe disse: "É. O caso é o mesmo. Mas eu não vou fazer o que ela fez para chegar ao clímax, Rúbia. Ficar com alguém desconhecido? Sem me apaixonar? Só na Europa Oriental mesmo...". Rúbia suspirou profundamente. Ela, diferentemente de Vick, sabia que o amor era totalmente diverso do sexo, e que a alma e o corpo não foram feitos para dialogar na cama. Mas ela, Rúbia, era ele, afinal. Talvez isso ajudasse um pouco. Depois daquele dia, nunca mais comentaram sobre o livro, nem sobre os problemas da personagem, que eram os mesmos de Vick.

3

Três dias antes do encontro de Rúbia, o destino e suas garras peçonhentas resolveram interferir. A moça contraiu uma virose típica de verão, e não conseguia parar em pé, abatida por náuseas, febre e diarréia. Fora ao médico, que não lhe receitara mais do que soro para hidratar a paciente, água e repouso. Muito repouso. Deu-lhe também um atestado, com o qual ela poderia tirar até cinco dias de licença na agência. "Isso é inacreditável. Justamente nesse fim de semana...", ela fazia um muxoxo e voltava a vomitar no balde que Vick pusera ao seu lado, no chão. "Tem certeza que não tem remédio para isso mesmo, Rúbia? Você está péssima. Só esse soro não vai adiantar, não.". A outra fulminou-a com os olhos pretos, cercados por olheiras profundas e arroxeadas: "É claro que tem remédio, Vick. Beijar na boca, namorar, transar... Mas como se faz isso nas minhas condições?". Vick virou o rosto e riu baixinho. Como ela queria ter a disposição, a libido de Rúbia... 
Era sexta-feira, quase dez da noite. Vick havia se prontificado para dormir na casa da amiga e tomar conta dela, embora o humor ácido de Rúbia já a estivesse contaminando. De qualquer forma, não havia nada melhor a fazer, e ela sabia que, se precisasse, Rúbia faria o mesmo por ela (se bem que tinha lá certas dúvidas. A morena não trocaria um "gato sarado" por uma amiga adoentada, será...?). Foi até a cozinha, serviu-se de um copo de club-soda e um biscoito cream-cracker. Para Rúbia, trouxe mais soro. Mas a amiga, nesse pequeno intervalo, já tinha ido ao banheiro. Quando voltou, jogou-se na cama do quarto. "Eu nunca me senti tão mal em toda a minha vida, Vick...". Ela foi até Rúbia e entregou-lhe o copo com soro. A outra fez cara de quem não iria mais beber aquela água salgada, meio doce, mas Vick insistiu: "Ande, Rúbia. Ou você acha que um Campari cairia melhor agora? Sem enrolação. Tem que beber tudo". Levantou-se, foi até a sala e trouxe um DVD, um lançamento, para que as duas tivessem pelo menos duas horas de distração. Ligou a TV e pôs o disco para começar. Voltou-se para Rúbia e disse, à guisa de "melhoras": "Eu faria qualquer coisa para ajudar você, amiga. Mas parece que é só isso mesmo. Soro, repouso e filminho com motocas alucinadas". E riu para ela.
Mal o filme havia começado, Rúbia pediu-lhe pelo controle-remoto. Parou a reprodução. Vick encarou-a, do almofadão com motivos africanos onde estava esparramada: "Qual é? Tem o Tom Cruise, Rúbia. O filme nem começou e você já quer tirar?". Rúbia estava séria, olhando-a fixamente. Um alarme disparou na mente de Vick. Será que ela poderia mesmo ter um mal-súbito ali? Teve medo. "O que foi, Rúbia? Você está se sentindo pior?". Ela não respondeu no ato. Ficou fitando o teto, seus longos cabelos pretos caindo pelo travesseiro, as mãos cruzadas ao peito, o rosto sem maquiagem alguma. Ainda assim, ela era feminina e bela. Um espanto. Virou o rosto e mirou o verde translúcido dos olhos de Vick, seu rosto triangular pequeno, enfeitado por minúsculas sardas cor de canela no nariz e nas maçãs-do-rosto. Sua boca não era fina como a de Rúbia, mas levemente carnuda, num formato de coração. Baixou os olhos para o colo de Vick, com seios redondos e fartos, onde o cabelo ruivo natural da amiga vinha se acomodar. Observou sua cintura marcada, as pernas modeladas, estiradas no almofadão, e os pés calçados com os tênis mais fora de moda que ela podia conceber. Por que Maria Vitória não via o quanto era bonita e sensual, mesmo assim, desleixada como andava?  "Escute, Vick, tem uma coisa que você pode fazer por mim e que vai me melhorar muito". Ela se levantou, imediatamente. "OK. Pode dizer. O médico disse que você podia tomar uma canjinha, se quisesse. Eu aprendo a fazer uma em cinco minutos. Quer?". Rúbia suspirou, mais entediada do que cansada. E foi direto ao assunto, como sempre o fizera em toda a sua vida. "Eu quero que você vá ao meu encontro amanhã à noite, no meu lugar".
Vick ficou olhando para Rúbia, sem dizer palavra alguma. Olhava para aqueles olhos pretos e fundos e não dizia absolutamente nada, como se Rúbia tivesse-lhe dirigido em polonês. Uns três minutos se passaram sem que nenhuma delas dissesse nada. Então, Rúbia quebrou o silêncio: "Entendeu, Vick? Amanhã. Nove da noite. Você. Encontro. Num barzinho da Paulista. É isso que eu quero que você faça por mim."
Vick soltou uma gargalhada histérica e alta, quase nervosa. "O que é isso, Rúbia? Essa virose está afetando o seu cérebro também? Isso não tem cabimento nenhum! Eu, num encontro, no seu lugar. Que tipo de soro alucinógeno seu médico mandou você tomar, hein?". Rúbia bufou dessa vez, completamente impaciente: "Que chilique desnecessário, Vick. Até parece que você é a bicha aqui. Não tem nada de mais. Além do mais, qual foi a última vez que você saiu para um barzinho com um sujeito legal? Hum... Deixe-me ver. No segundo período da faculdade?" Vick corou. Sua vida social era mesmo desastrosa, mas daí a sair num encontro às cegas, era demais para ela. Tentou usar argumentos lógicos para dissuadir a amiga: "Rúbia, essas agências de encontro por computador pedem fotos para fazer o cadastro. Fotos, Rúbia. Você tem quase um metro e noventa, eu sou baixinha, ruiva e tenho sardas. Você tem essa cabeleira negra e não anda; desfila. Viu? Não faz sentido. Você vem falando com esse cara por email há meses. E tem mais. Você... quer dizer... não sei como você faz essas coisas, nunca perguntei, mas ele deve estar esperando por um...". Rúbia levantou a mão bruscamente, para que Vick se calasse. Estava constrangida, agora. E Rúbia raramente ficava constrangida. Ela lhe disse, a voz serena, em pequenas pausas: "Eu nunca digo que não sou, bem, que sou... você sabe. Para eles, eu sou uma mulher e pronto. É por isso que, como você mesma disse há uma semana, meus encontros não dão em nada. Como esse, de amanhã, também não daria em nada se eu fosse. Eu fico me escondendo nessas agências, entendeu?".
Vick baixou os olhos, extremamente envergonhada com a revelação de Rúbia. Sentia vergonha por ela e por si mesma. Jamais imaginara que Rúbia poderia esconder a própria identidade a esse ponto. Vick simplesmente não conseguia tirar os olhos do copo que ficara no chão, perto de uma mesinha. Um silêncio sepulcral baixou entre as duas, feito um nevoeiro espesso, úmido e frio. Até que Vick ouviu a amiga chorar. Chorar alto, soluçando. Ela nunca a tinha visto chorar até agora. Ficou paralisada, sem conseguir se levantar e ir até ela. Tudo o que conseguia fazer era olhar para o rosto de Rúbia, o rosto de Rudinei, crispado de tristeza e vexame, com lágrimas escorrendo em profusão. Sua boca, sempre pintada e sensual, era agora um esgar de dor. Então Vick viu, de relance, o homem que vivia ali e que, naquele corpo de homem, com alma de mulher, sofria. E se escondia. Como ela se escondia de seu próprio corpo na prisão de uma alma fria e solitária.
As duas permaneceram quietas, sem que Vick movesse um músculo de seu corpo, até que Rúbia parasse de chorar completamente. Olhou, então, para Vick. Era apenas Rudinei agora, sem glamour, sem salto-agulha, sem máscaras: "Faça isso por mim, Vick. Vai ser bom para você, vai ser bom para mim. Eu vou viver essa aventura por você, através do seu corpo. Quando ele puser os olhos em você, vai se encantar. Eu nunca deixei de ser homem, sabe, Maria Vitória. E você é incrivelmente atraente e desejável. Muito mais do que uma mulher de mentira como eu ou do que essas bonecas falsas das colunas sociais". Vick levantou-se e sentou ao lado da amiga. Queria que ela não dissesse aquelas coisas, não queria que Rúbia demonstrasse fraqueza, não queria uma sessão de análise agora. Ali, era ela, Vick, quem era fraca, e não Rúbia. Segurou sua mão e a apertou com firmeza: "Pare de dizer essas besteiras, Rúbia. Você é muito mais mulher do que tantas mulheres que eu conheço, do que eu, e...". "Quieta, Vick. Eu tenho os meus motivos para me esconder nesse corpo. Mas e você? Faça isso, querida. Por nós duas. Na pior das hipóteses, você vai tomar seu mesmo club soda de sempre, bater um papo e voltar para a casa antes da meia-noite. E sem correr o risco de virar abóbora, não é?". As duas riram. E, na paleta dos sorrisos, aquele riso delas era vivaz, com matizes psicodélicas que só uma alma que não se comunica com seu corpo pode imprimir a um sorriso. 

4

Vick nunca se sentira tão nervosa e insegura em sua vida. Mas já perdera tanto, e se doara tanto, que uma pequena e inofensiva aventura como aquela não poderia ser pior do que tudo pelo que passara até então. Rúbia lhe deu o endereço exato do bar onde o sujeito estaria esperando por ela, às nove em ponto, e lhe mostrou uma foto dele, que havia impresso há um tempo. Vick tomou a foto nas mãos como se ela fosse uma chave. A chave para um desconhecido que ela precisava encontrar, para conhecer a si mesma. Contemplou o rosto dele. Era um homem de pele clara, com cabelos escuros, lisos e fartos e um sorriso bonito. Ele tinha os dentes caninos pontudos e grandes, o que lhe dava um certo charme, ela pensou consigo mesma. Tentou distinguir a cor dos olhos dele, mas não conseguiu. Eram escuros, mas não eram castanhos, nem pretos.Que cor seria aquela...? 
Rúbia quis lhe dar informações completas sobre o perfil daquele homem, mas Vick negou veementemente. Não quis saber seu nome, sua idade, onde morava, sua profissão, nada. Ela faria exatamente como a moça tcheca do livro que Rúbia lhe havia emprestado, há meses. Aquele homem seria o seu desconhecido, num encontro fortuito e casual, uma coincidência pela qual seria impossível que ela se apaixonasse. E ele era, de fato, muito bonito. Até atraente, ela admitiu para si mesma, um pouco embaraçada. Ele seria seu bilhete de entrada para o seu próprio corpo, alguém que a ajudaria a manter a alma de fora e, quem sabe, sem paixão, sem afinidades, sem nomes, sem futuro, nem passado, ela não pudesse simplesmente sentir desejo? 
Rúbia a obrigou a comprar uma roupa nova para o encontro. A princípio, Vick protestou, disse que tinha roupas boas em casa, mas, depois de muita insistência da amiga, acabou capitulando. Foi ao shopping mais próximo da casa de Rúbia e escolheu um vestido preto, de frente-única, com um decote em "V" casual na frente. A atendente da loja a auxiliara, e muito, mas Vick não contaria isso para Rúbia, embora soubesse, bem em seu íntimo, que a amiga era esperta demais para acreditar que ela tivesse escolhido um vestido tão apropriado sozinha. Para calçar, escolheu scarpins pretos, tradicionais. Não se preocupou com acessórios. Usaria os de Rúbia, com certeza.
Começou a se arrumar, na casa da amiga, às seis da tarde. Rúbia, agora sentindo menos náuseas e um pouco mais forte, secou-lhe os cabelos com secador. Vick quis prendê-los num coque frouxo, mas Rúbia lhe disse que aquilo seria suicídio social no primeiro encontro. Escovou-lhe as mechas ruivo-acobreadas até que ficassem brilhando. Deixou o cabelo de Vick naturalmente ondulado, para que ela se sentisse única entre as outras mulheres com madeixas tingidas, escorridas e minguadas. Maquiou seu rosto com perfeição, usando tons de pêssego e uma sombra verde, que lhe ressaltava os olhos. Na boca carnuda, pediu que a amiga usasse um brilho transparente: "Sua boca já é rosada, Vick. Fica linda assim". Quando acabaram, já eram oito horas. Até que Vick pegasse um táxi e chegasse à Paulista, seria o tempo contado. Antes de Vick se dirigir à porta, Rúbia trouxe um pequeno cordão dourado com um brilhante em forma de gota e brincos para combinar. Afastou-se alguns passos, para ver a amiga por inteiro. Sorriu, e disse: "Puxa, garota, se eu não fosse mulher, juro que levava você para a cama agora.". As duas deram uma boa gargalhada. Rúbia olhou para a amiga, antes de ela sair pela porta e, séria agora, disse-lhe: "Vou torcer por você. Pelo seu corpo, Vick. Deixe a alma para outro dia, viu?". É o que Vick pretendia. Mas não sabia, realmente, se seria capaz de fazê-lo. 

5

O bar era pequeno e aconchegante e, inacreditavelmente, não havia fila para entrar, nem uma multidão do lado de dentro, esperando para ser atendida. Não deveria ser um lugar da moda, o que era ótimo para o gosto de Vick. Será que fora Rúbia ou o rapaz quem escolhera aquele local para o encontro? Bom, aquele detalhe não lhe interessava. Era apenas um local, sem nome, indistinto, como qualquer outro bar da Paulista. Nada para chamar a atenção de sua alma.
Procurou pelo sujeito nas poucas mesas bem distribuídas pelo bar. Não demorou a encontrá-lo. Suspirou fundo e caminhou até ele, que levantou o rosto do cardápio que estivera lendo e fitou-a. Não disse nada. Vestia uma camisa pólo vermelha, jeans e sapatos pretos. Ele devia ter uns... Não, Maria Vitória. A idade dele não interessa. Nada de pessoal. Só converse sobre banalidades. Ele não fazia ideia de quem seria aquela ruiva, mas Vick já o conhecia. Disse-lhe: "Oi. Tudo bom? Posso me sentar?".
O sujeito franziu as sobrancelhas, olhou para um lado, depois para o outro e sorriu, muito sem graça: "Escute, moça, não me leve a mal, mas eu estou esperando alguém, sabe. É... meu primeiro encontro". Vick já estava preparada para aquela reação. Tirou uma foto de Rúbia da bolsa e colocou-a sobre a mesa, de frente para ele. "Eu sei. Eu sou o seu encontro essa noite". E, sem perder tempo para não perder a coragem, puxou a cadeira e se sentou, a sua frente. Nos planos de Vick, aquela seria a hora em que ele ligaria para a agência de encontros para reclamar aos berros, sairia do bar sem olhar para trás, ou chamaria a polícia. Mas ele riu. Simplesmente riu. "Isso é uma daquelas pegadinhas, mocinha? Porque eu sou o cara mais fácil de cair em pegadinhas que você e a Rúbia vão conhecer!". E continuava rindo. Seu riso era tão genuíno que contagiou Vick. Em segundos, ela ria também. E sentia as mãos menos trêmulas e as costas menos tensas. Olhou para ele e esperou que ele fixasse o olhar nela. "Escute, a Rúbia não pôde vir hoje. E pediu para que eu viesse em seu lugar. Somos muito amigas. Acho que ela não queria dar um bolo em você". O homem olhou a foto de Rúbia, ponderou por alguns instantes e, depois, dirigiu-se à Vick. "Bem, ela poderia ter me mandado um email e avisado que não viria. Mas, pelo jeito, desistiu na última hora e mandou uma suplente, não é?". A fala dele era direta, sem sarcasmo, nem ironia. Apenas um senso de humor afinado. Vick sentiu-lhe a alma cutucar lá no fundo e ignorou o senso de humor adorável do rapaz. Agora não era a hora para a sua alma. Era a hora de Vick. "É. Pode ser. Mas, se você não quiser perder a viagem, a gente pode passar o tempo aqui, beber alguma coisa e falar mal da Rúbia, o que acha?". Ele baixou os olhos para a foto de Rúbia mais uma vez e, em seguida, mirou Vick. Era a primeira vez, desde que se sentara a sua frente, que ele realmente olhava para ela.
A moça sentiu aqueles olhos de cor indefinida passeando morosamente pelo seu rosto. Viu que ele sorriu de leve quando, aproximando-se mais para perto dela, notou que seu nariz pequeno e levemente arrebitado e as bochechas eram salpicadas de sardas marrom. Ela não enrubesceu nem se sentiu constrangida. Apenas experimentava uma sensação completamente nova e deliciosa de ser observada, escrutinada por um desconhecido. Em momento algum baixou o rosto, nem tirou os olhos dos dele. O sujeito, agora, reparava nas ondas de seus cabelos, que caíam sobre os ombros numa cascata espessa e macia. Viu-o baixar os olhos para o decote, que mostrava a curva alta dos seios e mais sardas que se escondiam ali. Notou que ele, sem perceber, mordia o lábio inferior, de leve. Ele tinha lábios finos, mas bem delineados, e de um tom escuro, de terracota. Deixar-se ser observada por tanto tempo, sem dizer palavra alguma, e vê-lo mordiscar seu próprio lábio acelerou o sangue de Vick. E ela se assustou com essa reação do corpo. "Sabe o que eu acho?", ele perguntou, a voz um pouco mais baixa e rouca do que antes. "O que?", ela emendou. "Eu acho que você é a Rúbia, mas não me mandou uma foto de verdade. E sabe o que mais? Foi uma bobagem, porque você é muito mais bonita do que essa moça da foto que eu vi no site". Ela não sabia o que dizer. Não esperava que ele fosse pensar algo assim. Remexeu-se na cadeira, pigarreou, olhou-o diretamente e disse: "Eu não sou a Rúbia. Você vai perceber isso durante a noite, porque vai ver que eu não sei nada, absolutamente nada de você". Ele ficou quieto, apenas olhando para ela. Depois, chamou o garçom. "Então, você quer beber alguma coisa?", dirigiu-se a ela, num tom neutro. "Claro. Um club-soda, por favor". "Desculpe, moça, mas não temos club-soda. Pode ser tônica Schweppes?", o garçom interveio. "Pode, sim, por favor". "E você, amigo, bebe o que?". O sujeito estava sorrindo, de orelha a orelha. Vick e o garçom ficaram olhando para ele, sem entender o motivo de um riso tão largo. O garçom pigarreou. "Claro, desculpe, chefia. Eu quero uma Schweppes, também.". O garçom saiu e Vick sorriu para o homem a sua frente, que lhe disse: "Eu jamais imaginei que alguém, além do meu pai e de mim, pudesse gostar de água tônica. É, você não é a moça com quem eu conversei esses meses, se é que o nome dela é Rúbia. Aquela moça dizia que só bebia Campari". Vick soltou uma gargalhada. Era verdade. Rúbia só tomava Campari, em qualquer bar que fosse. "Viu? Não falei que você ia acabar percebendo que eu não sou ela?". E apontou para a foto da amiga. "Por isso nunca acreditei nessas agências de encontro pela internet", continuou. "Então, você não sabe quem eu sou?", ele perguntou,  inseguro. "Não", ela respondeu, emendando em seguida: "E não é fantástico?". Ele franziu as sobrancelhas. Devia estar achando aquele jogo muito interessante. "Bom, garota, isso não pode ficar assim. Muito prazer, eu sou o...". "Não!". Vick falou alto, chamando a atenção das pessoas em volta e assustando o sujeito. "Desculpe. Eu... bem, eu não gostaria que você me dissesse o seu nome. É muito importante para mim que eu não saiba o seu nome, a sua idade, o seu trabalho, nada pessoal, entendeu?". Ele sorriu meio de lado, desconfiado, mas, sobretudo, muito curioso. "Isso é algum tipo de fetiche seu?", perguntou-lhe. Vick pensou por alguns segundos e riu consigo mesma, dando um "adeuzinho" à alma. "É. Pode-se dizer que sim".
O garçom voltou com as bebidas e eles tiveram tempo para, em silêncio, espiarem um ao outro. "Ele é tão bonito, cabelo bonito, olhos misteriosos, esses caninos de vampiro...", ela pensava. E foi tomada de assalto por um frio na barriga, uma comichão que lhe subiu até o pescoço. Sentiu calor. Então, ouviu-o perguntar: "Mas e eu? Posso saber seu nome ou, nessa fantasia, ninguém pode saber nada de ninguém?". Ele era rápido. "Você pode saber o meu nome. Isso não tem problema. Eu sou Vick. Prazer". A gargalhada dele ressoou pelo bar: "Vick? Como aquela latinha que a gente compra na farmácia? Agora, sério, garota, qual é o seu nome?". Ela riu, contagiada pela gargalhada dele, mas sentiu uma pontada de leve no orgulho. Na agência, todos achavam seu nome, ou melhor, o apelido pelo qual ela fazia questão de ser chamada, o supra-sumo do cool. Ele era a primeira pessoa que ela conhecia que associava seu nome ao produto da farmácia. Ele continuava olhando para ela, numa atitude inquisitiva. Vick ponderou por pouco tempo. Até quando ela continuaria a culpar seu nome de batismo por todos os problemas que ela tinha na cama? Podia até ser um nome cafona, mas não seria a origem de tanta neurose sexual, disso ela tinha consciência. "Vick é o meu apelido. Eu me chamo Maria Vitória". E pronunciou seu nome abertamente, olhando-o nos olhos. De repente, ali, no anonimato do flerte, seu nome soou-lhe leve e casual. O homem sorriu e suspirou: "Maria Vitória. Que bonito o seu nome. Combina com você". "Combina comigo? Por que?". "Porque é diferente, é incomum. E você não tem nada de comum para mim". Ouvi-lo dizer aquelas palavras amoleceu cada músculo do corpo dela, encheu-lhe a boca d'água e turvou-lhe os olhos por um segundo. Ela olhou para ele, para os olhos dele, para a boca dele. Quanto mais irreal e inédito aquele princípio de desejo parecia para ela, mais desejo ela sentia por ele, num processo de retro-alimentação. Sem perceber, ela estendeu uma mão sobre a mesa, enquanto a outra ia até a base do seu pescoço, que parecia arder em febre. Ele olhava fixamente para ela, muito sério. Levantou-se de chofre, pegou a cadeira e colocou-a do lado de Vick. "Pronto. Daqui, senhorita Maria Vitória, eu posso ficar mais perto dessa surpresa incrível que você trouxe para mim essa noite". Vick sentiu o hálito dele bem próximo, cálido, ainda amargo por causa da tônica. Ela não poderia se apaixonar por alguém cujo nome desconhecia. Não acreditava em paixão à primeira, nem à segunda vista. Mas podia desejá-lo. E compreendeu que o desejava justamente porque ela, sua alma, não estava ali naquele momento, e que não fazia cobranças nem gerava expectativas. "Sabe o que eu estou pensando, Maria Vitória?". Ela nem se deu o trabalho de responder. Tentava inutilmente controlar a respiração. "Eu estou pensando porque aquele maldito site não enviou você para mim há muito mais tempo". Ela começou a protestar: "Mas eu não vim por causa do site, já disse...", quando ele puxou seu rosto gentilmente pela nuca e tomou-lhe a boca por inteiro. Ela sentiu-lhe a língua percorrer cada canto de suas gengivas e dentes, num beijo demorado, molhado, lascivo. E quente. Inacreditavelmente quente. Abraçou-o pelo pescoço, tentando chegar seu corpo o mais perto possível do dele. Quando seu seio esquerdo roçou-lhe o peito, de leve, ela sentiu o bico se eriçar até doer. E a cada resposta natural e instintiva do seu corpo, mais excitada ela se sentia. Ele acariciou seu pescoço e beijou-a na base do queixo, na orelha, na nuca. Ela aspirou o perfume que ele usava, e ficou inebriada por aquele cheiro de madeira que exalava dele. Vick roçou uma coxa contra a outra e sentiu seu sexo completamente úmido. Temeu soltar um gemido ali, num bar pequeno e não muito cheio da Avenida Paulista. Virou o rosto para ele e, quando ouviu sua própria voz, teve certeza absoluta de que sua alma estava a milhas dali; apenas seu corpo, incomum, como ele havia dito, um corpo único, falava, respirava e ansiava por mais naquele momento: "Por favor, vamos para outro lugar".


Foram no carro dele, para o apartamento dele, que era bem perto dali. Agora ela tinha certeza de que a escolha por um local tão retrô só poderia ter sido dele. Ele morava num prédio pequeno, de cinco andares. O elevador estava ocupado, então ele a puxou pela mão e subiram as escadas, ele na frente, beijando e lambendo cada um dos dedos da mão dela. Abriu a porta, puxou-a para junto de si e fechou a porta com o pé. Ambos riram da loucura que tudo aquilo representava. Vick olhou o apartamento de relance. Não queria xeretar nada, como tinha feito a moça tcheca do livro de Rúbia. Percebeu, vagamente, que era um apartamento organizado, limpo e claro. Tinha uma única parede vermelha ao fundo. Mas ele não lhe deu tempo para analisar a decoração. Encostou-a numa parede mais próxima e começou a beijar todo o seu rosto, invadindo-lhe a boca, descendo pelo pescoço e para o colo. Ele respirava forte, Vick podia ouvir e sentir aquela respiração. Tomou-lhe um dos seios nus na mão e gemeu alto. O gemido dele era o que faltava para que Vick perdesse o resto da razão, da alma que ainda tinha até aquele momento. Trouxe-o para mais perto de si, abaixando sua cabeça de encontro ao seio. Ele puxou-lhe o decote e, por um minuto, ofegante, observou os seios dela. Estavam próximos de uma luminária acesa, e Vick podia ver seu próprio corpo todo banhado por uma luz amarela, o cabelo muito escuro dele roçando-lhe a pele sensível dos bicos, sua língua quente lambendo-a por inteiro, as mãos grandes que ele tinha percorrendo a linha da sua cintura, os quadris e o ventre, agarrando-a pelas nádegas, massageando, explorando, afastando-lhe a calcinha por baixo do vestido e fazendo-a sentir seus dedos abrirem sua carne com gentileza. Vick olhava tudo, sentia-se bela e desejável, e desejava aquele homem como a nenhum outro antes. Ele se afastou por um instante e fez menção de apagar a luminária. "Não", ela disse, num sussurro. "Eu quero luz". Ele riu alto, satisfeito, abraçou-a e levantou-a do chão por um instante. Olhava para ela, para o rosto dela. "Você é linda, Maria Vitória". Quando a colocou de volta novamente, foi fazendo-a escorregar pelo corpo dele, seu vestido subiu na direção contrária e ela sentiu-lhe o sexo teso, pulsando com urgência contra a sua barriga. Ele tirou a camisa, os jeans e os sapatos, enquanto ela, impaciente, tirava o próprio vestido e os scarpins. Ele pegou sua mão e a levou para o quarto. Acendeu a luz. Aquela, como a da luminária da sala, também era amarela. Vick segurou-lhe pelo rosto por um momento, e olhou bem dentro daqueles olhos. Eram cinza. Ela riu. Só assim, bem de perto e com muita luz, podia-se ver a cor dos olhos daquele homem. Os dois estavam ainda de pé. Ele lhe tirou a calcinha e ajoelhou-se entre as pernas dela, segurando suas coxas com firmeza e fazendo Vick abri-las para ele. Ela ficou completamente tonta, sequiosa e amolecida, quando ele lambeu seu sexo demoradamente, por inteiro, até o períneo, com a ponta da língua ágil, bem ali, ajoelhado em sua frente. Ela acariciou seus cabelos, sentindo de longe o cheiro dele, já se acostumando com aquele cheiro. Com as pernas bambas, ela se deitou de costas e puxou-o para si. O cinza dos olhos dele estava da cor do chumbo agora, e ela sabia que o desejo dele era igual, se não maior que o seu. E aquela certeza lhe enchia mais o corpo de tesão. "Você tem os olhos verdes e as sardas mais lindas de São Paulo, Maria Vitória", ele disse, antes de penetrá-la. Os dois se movimentavam, viravam, rolavam pela cama, suavam e não tiravam os olhos um do outro. Os pelos do peito dele roçavam seus seios e ventre, ela o beijava intensamente e podia senti-lo por inteiro dentro de si. O desejo só fazia crescer, e ela começou a ficar agoniada. De repente, sentiu uma pressão no baixo-ventre, uma contração involuntária e deliciosa, e arregalou os olhos. Ele se virou depressa, deitou-se de costas e colocou-a sobre ele, segurando-a pelos quadris e fazendo-a esfregar-se nele, enquanto ia e vinha dentro dela. A pressão aumentou, um calor louco subiu do seu sexo para o peito dela e ela sentiu que iria gozar. Segurou uma das mãos dele e falou, as palavras entrecortadas pela respiração descompassada: "Eu... quero... eu preciso... saber o seu...". Ele a olhou dentro dos olhos e disse, antes que os dois chegassem ao clímax: "Eric. Meu nome é Eric, Maria Vitória".

7    

Ela acordou antes dele, e só agora pôde olhar o apartamento. No quarto onde dormiram, ele abraçado a ela, com a cabeça junto a um dos seios, havia uma estante com alguns livros e uns carrinhos de ferro antigos. Lentamente, ela rolou para fora dos braços dele, temendo acordá-lo. Pegou um lençol da cama e enrolou o corpo com ele. Descalça, nas pontas dos pés, foi até a estante. Livros de Cálculo. Virou para trás. Ele dormia tranqüilamente, ainda na posição em que o havia deixado há instantes. Seria engenheiro...? Olhou para o rosto dele. Havia algumas rugas finas ao redor dos olhos, mas seu corpo era firme, de alguém que praticava algum esporte. Teria uns 38, 40 anos...? Olhou as mãos dele. Ali, sim, havia mais rugas. Uns 43, 45, talvez...? Voltou para a sala, onde as roupas dos dois continuavam juntas, numa trouxa embolada e prenhe de intimidade. Abaixou-se e pegou a camisa dele. Que perfume seria aquele...? Inspirou profundamente e, à mera lembrança do cheiro do sexo dele, seu corpo se arrepiou. Não, não e não. Ela não podia querer conhecer detalhes dele, não deveria. Já sabia até demais. Sabia que ele e o pai gostavam de Schwepps, intuía sua idade e profissão, sabia que ele guardava coisas antigas e era gentil, gostara de sua voz e do seu bom humor... Ela se apaixonaria, ele certamente não se apaixonaria por ela, sua alma voltaria ao corpo, ela nunca mais sentiria o que sentira na noite passada e, de volta à bat-caverna, sentiria saudades dele. Saudades de Eric. Do corpo e da alma de Eric. Começou a vestir o vestido depressa. Se saísse agora, antes que ele acordasse, evitaria todo esse tormento. Mas, então, ouviu a voz dele, sonolenta e mansa, vindo do quarto: "Maria Vitória? Volte para a cama, Maria Vitória... Estava tão mais quente e cheiroso com você aqui, moça sardenta...". Ela não respondeu. Segurava a respiração. "Maria Vitória?", ele a chamou novamente. "Olhe, se você não está me respondendo porque prefere ser chamada de pote de bálsamo para desentupir nariz, pode esquecer, garota. Seu nome é lindo demais, você é linda demais para isso". E repetiu o nome dela, em sílabas, com a voz doce e desejosa da manhã: "Maria Vitória...". "Vem, moça sardenta, a gente tem um domingo de sol pela frente e um monte de coisas para contar um para o outro. Mas, antes, eu quero você, Maria Vitória. Preciso de você. Agora. Volte para a cama". Ela tirou o vestido e voltou para o quarto, totalmente nua. Da cama, ele observava o corpo dela, em plena luz da manhã, que entrava pela janela do quarto. Vick deixou-se ser admirada. Com ele, ela também admirava o próprio corpo. Em frente ao Eric, estavam Maria Vitória e sua boba, juvenil e frágil alma. Calmamente, como uma gata, ela foi até ele. "Sabia que você tem dentes de vampiro, Eric?". Ele riu. "É, eu sei. E tenho nome de vampiro também, você não acha?". Os dois riram. Ele a puxou para si e beijou sua boca demoradamente, com mais intimidade agora do que antes. Ela sentiu o desejo crescer dentro de si. Como seria possível, agora que sentia que podia se apaixonar? Ela o empurrou gentilmente, seus olhos verdes já começando a marejar, detalhe que não escapou a Eric. "Escute, Eric, eu... e se você não... sabe, eu quero dizer que...". Ele estendeu o braço e pôs dois dedos sobre os lábios dela, calando-a. "Eu sei, Maria Vitória. Também tenho medo. E teria ainda mais medo se você não estivesse com medo. Mas se você prometer que pode se apaixonar por esse velho engenheiro aqui, minha surpresa sardenta, eu prometo que só vou levar você em bares que servirem club-soda. Combinados?". Ela sorriu e, na paleta de sorrisos genuínos, aquele era um sorriso de Van Gogh, exuberante e luminoso. Deitaram-se com Eric, naquela manhã, Maria Vitória e sua alma, que agora podia amar e gozar também. 

12 de novembro de 2010

eu, quixote

"Don Quixote", Pablo Picasso
Não sei viver de outra forma que não seja através da minha faceta quixotesca, esta que impera. Há moinhos de vento reais em meu universo, contra os quais posso e devo lutar, mas me faltam a coragem e a força. Há também moinhos  verdadeiros contra os quais insisto em lutar, mas perco sempre. E há os imaginários e belos moinhos que, dragões alados, imprimem um colorido único em meu olhar. Generosamente impulsiva, nobre, mas desconectada da realidade formal e "conveniente", sou como Quixote, um cavaleiro andante em busca do absoluto. Mas, em oposição à personagem clássica, ainda não retornei de fato ao meu vilarejo para descobrir que não, não há heróis no mundo real. 

Não sei viver pelo "caminho do meio", como aconselham os budistas. Ainda escolho um lado ou outro da estrada para firmar meus pés. Pode ser o caminho errado, na maioria das vezes ainda é, mas minha capacidade diplomática é, de fato, um tanto falha, quiçá inexistente.

Não sei viver, sonhar, amar, odiar, caminhar, orar, lutar, esperar, nem escrever "pela metade". Sou uma unidade sólida, um monólito anacrônico, que carrega seus fardos e glórias por inteiro, aonde vá. A metade que me falta, ou que já me faltara, é a metade que não existe e que jamais vislumbrarei. É a ilusão da metade  de um outro alguém, de outro lugar, de outra realidade que, como num reflexo convexo, tapeia a visão e burla a identidade. Cada indivíduo é a metade de sua própria metade, e se não conseguir juntar as peças para se fazer por inteiro, inexistirá a posteriori.

Não sei "lavar as mãos". O nível de pilates em meu sangue é negativo. Defendo meus amigos, mesmo que eles não o tenham me pedido, digo o que ninguém ousaria dizer, embora todos pensem o mesmo que se passa em minha mente, ainda que isso me valha cicatrizes, frustrações e um cansaço abissal do mundo e  da gente incógnita. Ergo mãos, braços e corpo inteiro "à palmatória", baixando a guarda e abandonando débeis escudos, simplesmente porque não conheço outra forma de conviver em sociedade.

Não sei "racionalizar". Tento arduamente, dia após dia, mas, derrotada, ainda vejo-me cativa de uma passionalidade démodé num mundo veloz, atroz e absolutamente racional. Penso, sim, antes de agir ou, do contrário, já estaria trancafiada num manicômio ou em Albatroz. Mas não penso mais do que três dias (o tempo limite para livrar qualquer cidadão "em dúvida" dos médicos ou de um oficial da policia). Passados três dias durante os quais tento optar pela voz da razão, é minha alma que fala mais alto, aflorando-me ao corpo e conduzindo-o doravante.

Não sei mentir, nem para aqueles que amo, nem para os que pouco convivem comigo, nem para mim mesma. Há vezes em que consigo omitir determinados fatos, principalmente se estes forem poupar o outro de um aborrecimento desnecessário. Mas, quando o sujeito da omissão ou de uma provável mentira sou eu, é a verdade que prevalece. Não há mentira que seja melhor do que a pior verdade. Por não ser capaz de mentir para mim mesma, por vezes antecipo derrotas, permito que o pessimismo inunde o cais da minha consciência e, por antecipação, visto o manto negro do luto e envolvo-me num casulo vazio e frio. Então, a verdade vem emergir, e leva com ela as traças e o mofo das páginas velhas e rasuradas que teimam em habitar meus livros.

Não sei cultivar a atitude blasé, que impede que as imagens feias, indesejadas e absurdas do cotidiano invadam a alma do indivíduo através de seus olhos. Porque eu vivo de olhos abertos, para a beleza e para o vergonhoso do mundo. Ambos entram-me por olhos adentro e, feito espectros de um universo que não é o meu, habitam minha memória. Mas lá, no compartimento emocional da memória, creio existir um mecanismo que busca o belo até no que é triste, e feio, e vergonhoso. E muitas vezes o triste, pela fugacidade de sua natureza, o feio, pela particularidade de sua essência, e o vergonhoso, pela descrença alheia que carrega consigo, acabam justamente parecendo belos para mim. E, não raro, na busca do belo para sobreviver à derrota do torpe, entristeço-me e abraço a melancolia. Porque, na alegria fútil e irreal das multidões, nos sorrisos pasteurizados dos "amigos" e na leniência do "cada um por si" (e quem por todos?), não consigo mais enxergar o belo.

Não sei me contentar em seguir uma linha reta e conveniente, ainda que seja sólida e certa. Se me faltar a ideia de sentido, tal caminho não me basta. Faltando-me o sentido na vivência das coisas, sobram-me o torpor e os questionamentos. E, tal qual uma mula velha e caturra, empaco no meio do caminho, vendo o ir e vir das multidões em seu prosseguir enquanto eu, em busca de sentido no que, talvez, não haja sentido algum (porque às vezes as coisas não devem ter sentido, já que são um fim em si mesmas), estatelo-me ao chão, cavando a terra em busca de "porques", lascando unhas, ferindo as mãos e perdendo tempo, trens, bondes e oportunidades.

Não sei viver sem ideologias e motes. E, perdida entre ideologias que poucos veem ou compartilham comigo, transformo-me num objeto obsoleto, numa peça de museu, sem funcionalidade alguma ao mundo real e tangível dos acontecimentos. De passional, passo a ser a utopia em forma de mulher, isso quando toda e qualquer utopia já morreram há tempos e, enterrados, já não incomodam nem salvam ninguém.

Não sei delatar, acusar nem suspeitar do outro. Quando em raras ocasiões uma suspeita vem pousar em meus ombros, espanto-a feito a uma gralha. E, num mundo irreal-ideal em que cada um conhece seus próprios limites e obrigações, recuso-me a delatar, embora não escape à delação alheia. Perco sempre nesse jogo, é inevitável. Mas o que me importa é a batalha que travo comigo mesma: saio em frangalhos da luta contra o outro, mas em paz e incólume das guerras que travo com minha própria consciência.

Não sei abandonar o romantismo, a idealização do amor, da família e da amizade. Sei que tudo muda, que não há bem que dure, nem mal que perdure, mas, ainda assim, espero assistir ao último por de sol da minha vida com alguém que também ame e valorize o poente e seus matizes, como eu. Sei que pais são seres como você e eu, passíveis de erros, calúnias e traições, mas ainda os considero os melhores amigos e conselheiros que alguém pode ter. Sei que minhas idealizações são patéticas e talvez nunca existirão em minha vida, mas não consigo soterrá-las em prol de uma existência mais prática e menos saudosista. A esperança é um sentimento perene em mim, que convive aos trancos e barrancos com o realismo que me ordena abrir os olhos e abandonar expectativas vãs.

Por essas e outras, sou um Quixote solitário e louco, em guerra contra moinhos que bufam, esmagam e trituram sonhos, sim, mas que também movem o mundo. Falta-me o contra-peso de um fiel escudeiro, Sancho Pança. Eu gostaria de escapar a cada uma dessas quixotescas armadilhas, mas a essência, o imaterial que percorre cada sinapse minha, parece ser imutável. Admito, de peito aberto (mas não sem um sentimento incômodo de constrangimento), que quem, como eu, pensa demais, vive de menos. E que já estou farta de ver a vida passar por mim, num campo onde espero pelo último dragão, o mais poderoso e cruel, cujo peito atravessarei com minha lança persistente. Farta porque sei que esse dragão inimigo não passa de um velho e abandonado moinho. Há de chegar a hora em que eu abandone o cavalo, o chapéu e o bigode do cavaleiro sonhador e crie asas e couraça, cuspa fogo na hora certa e vá voar e lutar pela vida.