1 de novembro de 2010

caatinga


Cacto xique-xique
Houve um tempo
em que eu fui semente
encroada dentro da polpa ressecada
de um xique-xique do nordeste
que mata a sede do cangaceiro,
mas lhe queima a garganta por dentro.

Nesse tempo,
além de semente áspera e espinhosa,
eu era também casulo vazio
porque nunca pudera imaginar
que casulos valeriam de morada para alguém.

O meu não era um mundo de lagartas, nem borboletas.

Naqueles dias
eu aspirava ao encontro primordial,
ao amor e à união de corpos,
à comunhão de almas
e a semanas a fio sem momento algum
de solidão, nem tempo para pensar na semente que eu era.

Então, fui aos poucos esquecendo
que um dia a semente haveria de brotar.
Deixei de pensar em mim
e, passando pela vida com olhos enevoados,
procurei, busquei e andei em círculos,
míope na alma, sem saber ao certo onde estacionar.

Então veio o tempo da seca, da sede e do cinza.
Meu solo transformou-se em caatinga inóspita
onde espinhos desconhecidos rompiam a terra endurecida
e feriam a carne dos que moravam em mim.
Não havia água que me saciasse
a sede de vida, de alegria e euforia.

Então veio a chuva, os temporais e a enchente
que levou consigo o pior de mim
e o melhor de mim
a água lavou-me a esperança, mas não a renovou
apenas desbotou suas cores, agora pálidas
e levou embora a semente, perdida na enxurrada

Depois veio o tempo
em que eu fui colo, cesta e quiçamba
a levar em mim todo o peso que eu acreditava
ter deixado para trás.
Esqueci-me de pensar no que eu era, mais uma vez
ou em quem poderia ser, se não fosse apenas o querer do outro.

"Depois de muito bater suas asas,
Jeffrey se cansou e decidiu tentar algo diferente" 
Houve também o tempo
em que eu acreditei ser colibri, a voar de balão
leve, solto a flutuar, sem peso, nem memória
para ver o mundo de longe e tomar fôlego,
fazer apontar em minhas costas pequenos cotos
que virariam asas a impulsionar minha pequena e poderosa bola de gás.

Mas descobri que, de balão, havia pouco em mim
e que os cotos que me brotaram nas omoplatas
jamais chegaram a se alongar,
majestosos e esguios como eu os idealizara.
E, de plumas e penas, não vi nem rastro
eu, balão ou colibri, não alçaria vôo tão cedo, tão nunca...

Talvez eu fosse mais âncora que navio,
mais casca que semente,
mais galho que colibri
e mais trem do que balão.
Uma maria-fumaça lenta e barulhenta
a recordar antigos quereres,
projetos inacabados, todos pesos mortos

Eu, trem, recordava, tic-tac, recordava, tic-tac
e nos trilhos que circundavam meu coração,
ia apitando nas paradas,
deixando passageiros antigos com suas malas mofadas,
abrigando novos viajantes, com diferentes bagagens,
sem deixar de ser a lenta, deslocada e vazia maria-fumaça.

Houve um tempo em que eu, semente, quis amor
quis união, flores a perfumar e frutos a viscejar
mas, na seca, com os olhos empoeirados
e turvos pela terra vermelha e hostil,
descobri que eu não cabia no amor
e que a solidão em mim era maior que a própria caatinga.

Nos tempos de casulo,
a esperança veio pousar nos galhos da minha árvore
e eu me descobri lagarta, adormecida e sonolenta
e desejei ser borboleta colorida e translúcida
para voar leve, flutuar sem os pesos da memória
nem a apreensão pelo futuro incerto.

Foi um tempo de pleno e exuberante sonhar
em que, da fresta de meu casulo
já não me imagiva apenas borboleta
mas também girassol, flamboyant e ipê amarelo
O sol brilhava em meu norte
e, para mim, jamais se desviaria para o poente.

Mas, então, depois da seca e da enchente
depois da semente, do casulo, dos trens e dos balões
veio a época dos céus nublados
e da garoa fina que não encharca, mas adoece.
Ainda sem saber se voava ou voltava aos trilhos,
observei o sol se esconder de mim, aos poucos.

O sol se foi como sempre terminam os dias:
colorindo o céu com matizes tão lindos e sedutores
que distraem o olhar da gente fascinada e crédula.
De amarelo, veio o laranja embriagador, brincando de esconder com a nuvem
e o vermelho-cereja, acenando um adeus à francesa,
para dar lugar ao púrpura sereno e triste, que antecede a noite.

Agora não sei mais que formato tenho
não saberia dizer se o que me prende
são âncoras imaginárias ou histórias impossíveis,
dessas que autor nenhum se atreveria a publicar.
Vislumbro, de longe, meu sol a fazer morada no poente
e sinto a brisa fria gelar-me os vagões. Vagos vagões...

Hoje nem almejo mais o amor
porque, na caatinga, a realidade da seca
manda o amor às favas
e dá boas vindas à realidade
que não tem borboletas, girassóis nem ipês
e muito menos sol para um canteiro apenas.

Hoje eu, trem, balão, semente e pólen
Quero apenas paz para germinar.
Paz para poder sorrir,
coragem para poder seguir
e força para encontrar a mim
ou criar um outro eu.
Com ou sem sol.

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