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Cacto xique-xique |
em que eu fui semente
encroada dentro da polpa ressecada
de um xique-xique do nordeste
que mata a sede do cangaceiro,
mas lhe queima a garganta por dentro.
Nesse tempo,
além de semente áspera e espinhosa,
eu era também casulo vazio
porque nunca pudera imaginar
que casulos valeriam de morada para alguém.
O meu não era um mundo de lagartas, nem borboletas.
Naqueles dias
eu aspirava ao encontro primordial,
ao amor e à união de corpos,
à comunhão de almas
e a semanas a fio sem momento algum
de solidão, nem tempo para pensar na semente que eu era.
Então, fui aos poucos esquecendo
que um dia a semente haveria de brotar.
Deixei de pensar em mim
e, passando pela vida com olhos enevoados,
procurei, busquei e andei em círculos,
míope na alma, sem saber ao certo onde estacionar.
Então veio o tempo da seca, da sede e do cinza.
Meu solo transformou-se em caatinga inóspita
onde espinhos desconhecidos rompiam a terra endurecida
e feriam a carne dos que moravam em mim.
Não havia água que me saciasse
a sede de vida, de alegria e euforia.
Então veio a chuva, os temporais e a enchente
que levou consigo o pior de mim
e o melhor de mim
a água lavou-me a esperança, mas não a renovou
apenas desbotou suas cores, agora pálidas
e levou embora a semente, perdida na enxurrada
Depois veio o tempo
em que eu fui colo, cesta e quiçamba
a levar em mim todo o peso que eu acreditava
ter deixado para trás.
Esqueci-me de pensar no que eu era, mais uma vez
ou em quem poderia ser, se não fosse apenas o querer do outro.
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"Depois de muito bater suas asas, Jeffrey se cansou e decidiu tentar algo diferente" |
em que eu acreditei ser colibri, a voar de balão
leve, solto a flutuar, sem peso, nem memória
para ver o mundo de longe e tomar fôlego,
fazer apontar em minhas costas pequenos cotos
que virariam asas a impulsionar minha pequena e poderosa bola de gás.
Mas descobri que, de balão, havia pouco em mim
e que os cotos que me brotaram nas omoplatas
jamais chegaram a se alongar,
majestosos e esguios como eu os idealizara.
E, de plumas e penas, não vi nem rastro
eu, balão ou colibri, não alçaria vôo tão cedo, tão nunca...
Talvez eu fosse mais âncora que navio,
mais casca que semente,
mais galho que colibri
mais galho que colibri
e mais trem do que balão.
Uma maria-fumaça lenta e barulhenta
a recordar antigos quereres,
projetos inacabados, todos pesos mortos
Eu, trem, recordava, tic-tac, recordava, tic-tac
e nos trilhos que circundavam meu coração,
ia apitando nas paradas,
deixando passageiros antigos com suas malas mofadas,
abrigando novos viajantes, com diferentes bagagens,
sem deixar de ser a lenta, deslocada e vazia maria-fumaça.
Houve um tempo em que eu, semente, quis amor
quis união, flores a perfumar e frutos a viscejar
mas, na seca, com os olhos empoeirados
e turvos pela terra vermelha e hostil,
descobri que eu não cabia no amor
e que a solidão em mim era maior que a própria caatinga.
Nos tempos de casulo,
a esperança veio pousar nos galhos da minha árvore
e eu me descobri lagarta, adormecida e sonolenta
e desejei ser borboleta colorida e translúcida
para voar leve, flutuar sem os pesos da memória
nem a apreensão pelo futuro incerto.
Foi um tempo de pleno e exuberante sonhar
em que, da fresta de meu casulo
já não me imagiva apenas borboleta
mas também girassol, flamboyant e ipê amarelo
O sol brilhava em meu norte
e, para mim, jamais se desviaria para o poente.
Mas, então, depois da seca e da enchente
depois da semente, do casulo, dos trens e dos balões
veio a época dos céus nublados
e da garoa fina que não encharca, mas adoece.
Ainda sem saber se voava ou voltava aos trilhos,
observei o sol se esconder de mim, aos poucos.
O sol se foi como sempre terminam os dias:
colorindo o céu com matizes tão lindos e sedutores
que distraem o olhar da gente fascinada e crédula.
De amarelo, veio o laranja embriagador, brincando de esconder com a nuvem
e o vermelho-cereja, acenando um adeus à francesa,
para dar lugar ao púrpura sereno e triste, que antecede a noite.
Agora não sei mais que formato tenho
não saberia dizer se o que me prende
são âncoras imaginárias ou histórias impossíveis,
dessas que autor nenhum se atreveria a publicar.
Vislumbro, de longe, meu sol a fazer morada no poente
e sinto a brisa fria gelar-me os vagões. Vagos vagões...
Hoje nem almejo mais o amor
porque, na caatinga, a realidade da seca
manda o amor às favas
e dá boas vindas à realidade
que não tem borboletas, girassóis nem ipês
e muito menos sol para um canteiro apenas.
e muito menos sol para um canteiro apenas.
Hoje eu, trem, balão, semente e pólen
Quero apenas paz para germinar.
Paz para poder sorrir,
coragem para poder seguir
e força para encontrar a mim
ou criar um outro eu.
Com ou sem sol.
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