29 de novembro de 2010

querido diário



Você vai se sentir um diário super importante e, com certeza, suas páginas vão se inflar de tanto orgulho e lisonja ao saber que o último diário onde eu escrevi foi uma agenda verde da Company. O ano era 1996, mas a agenda datava de 1994. Por dois anos de atraso em relação à realidade temporal, uma velha agenda verde se transformou em diário. Antes deste, eu costumava ganhar diários da minha professora de inglês, uma senhora britânica com quem eu sempre tomava chá orange pekoe com leite e inesquecíveis cookies de aveia e chocolate no final das aulas. O primeiro diário que ganhei teve a capa bordada de azul e vermelho. Nunca me enderecei a ele como "querido", e muito menos "diário". Simplesmente escrevia pensamentos, rabiscava poesias tolas, contava fatos que eu acreditava serem segredos, mas que não passavam de mera elucubração pré-adolescente. Minha professora de inglês fez muitos diários para mim, sabe. Ela comprava um caderno pequeno, pintava ou bordava capas em papel carton e, depois de terminada a sua arte, levava o caderno e as capas para uma gráfica, para encaderná-los. Você pode conceber gesto mais afetuoso e simbólico, diário?

Ninguém deveria receber presentes tão incríveis com menos de 18 anos porque, fatalmente, descuidei-me dos diários que minha professora me dera e eles se perderam em mudanças, velhos armários e sótãos que eu nunca mais vou abrir. Sabe, não sinto a menor falta das bestagens que, evidentemente, escrevi naquelas páginas. Mas arrependo-me terrivelmente de não tê-los guardado, porque cada um deles era um trabalho artesanal simples, belo e único que aquela senhora britânica fazia para mim. Até hoje me assusto com a quantidade de beleza e simplicidade que deixamos passar por nossas vidas, em oposição ao mundaréu de quinquilharias com as quais abarrotamos nossas casas, os porões e a memória. Imagine, amigo, que, se o cérebro de cada indivíduo fosse dotado de um HD com direito à "lixeira", assim como um computador, e se fôssemos contemplados com as opções "esvaziar lixeira" e "reconfigurar HD", cada um de nós morreria de assombro com o número de arquivos que simplesmente escolheríamos por "deletar", e o pouco que optaríamos por "gravar na unidade C:". Para você a coisa também não é fácil, não é, companheiro? Afinal, ao menor sinal de rasura da vida, arrancam-lhe as páginas outrora escritas com devoção e ternura. Tal amputação deve lhe doer bastante, diário, mesmo que não sejam suas aquelas memórias extirpadas. Se quiser desabafar, pode contar comigo em qualquer dia. 

Mas, voltando à vaca fria, são uma e trinta e cinco da madrugada de segunda-feira. Faz um calor abafado e bolorento, porque chovera muito durante a semana e o sol saiu para rachar nesse domingo. Quando isso acontece, a umidade toma conta de tudo, e a gente se sente como legumes cozinhando no vapor. Aliás, e é essa minha deixa, diário, eu posso até me sentir cozinhar como um legume nesse verão úmido, mas eu não sou mais um legume. Confesso que, nos últimos meses, esses em que não escrevi para você, as raras vezes em que me olhava no espelho, era um maço de brócolis que eu via. Ou uma couve-flor injuriada e murcha. Às vezes, um nabo feio e insosso. Certo sábado, juro que fui uma berinjela "de vez" e magrela. Meu hálito tinha cheiro e gosto de berinjela. Nos últimos meses, fui também repolho, cenoura, alho-poró e cebola. A fase da cebola, em especial, foi um castigo que eu realmente nunca imaginei merecer. Legumes eu fui, diário. Pronto. Falei. Legumes do fundo da quitanda, da última caixa do caminhão que tombou na estrada, hortaliças rolando na beira do asfalto, um maço de brócolis sem flor, vegetando no tempo-espaço. Só não cozinhei antes porque o calor chegou para rachar a moleira mesmo há umas poucas semanas. Não cozinhei, mas vegetei um bocado.

Mas, hoje sinto-me tomada de uma alegria e vitória imensas, daí o fato de estar lhe escrevendo depois de tantos anos, sumida como estava. Parei diante do espelho, há uns três dias, de olhos fechados, paralisada de temor de ver, no lugar de um rosto, o bulbo coberto de manchas, brotos e terra de um inhame. Suspirei, juntando forças para abrir os olhos. Que eu fosse um tubérculo, então. Mas, ao menos, deveria limpar a terra e cortar os brotos da raiz, não concorda, diário? Abri um olho, depois o outro. E vi olhos, nariz, boca, cabelos, testa e pescoço. Eram meus. Não era mais um legume o que eu via. E havia um sorriso discreto nos lábios que vi refletidos no espelho, amigo. Dentes brancos, bem alinhados e com dois caninos pontudos. Pelos caninos, soube que os dentes eram, de fato, meus. E só então, passada a surpresa e o assombro de um ex-vegetal, reconheci que, se aqueles lábios e dentes eram meus, o sorriso também era.

É isso, diário. A fase horti-fruti passou. Sobrevivi a cada fotossíntese, do brócolis à cebola. Boiei nos labirintos da memória como vagens levadas pela correnteza de um riacho, vegetei em estado vergonhosa e dolorosamente latente, mas, ainda assim, nenhum daqueles legumes apoderou-se de mim. Tá bom. Talvez em parte, por algum tempo. Mas podia ter sido pior, diário. Imagine: eu poderia, em minha fase cebola e alho-poró, ter parado no fundo de uma panela fumegante, para temperar outros legumes e servir de sopinha de neném. Ai, então, meu amigo, não teria sido apenas cômico, mas deveras trágico também. Hoje à tarde fui-me olhar no espelho, para ter certeza absoluta de que nenhum broto de beterraba estivesse nascendo em meu nariz. Havia apenas um pequeno, fino e arrebitado nariz. E meus velhos, nostálgicos e saudosistas olhos cor de mel. E dois caninos pontudos, branquinhos. Opa! Se vi os caninos, é porque havia ali um sorriso. E, enquanto lhe escrevo essas linhas, estou sorrindo. Sobrevivi aos delírios kafkianos que atormentaram-me a identidade nos últimos meses. Escapei da panela e do caldeirão, amigo. Agora, posso retomar minha caminhada, com boas e velhas botas de cangaceiro, um chapéu de vampiro e a esperança de que, na próxima curva, ou em outra mais adiante, hei de encontrar os pedaços que faltam a  esse meu coração de manteiga.

8 comentários:

  1. E os caninos que dilaceram carnes, sorriem quando o rosto não é mais um legume...coincidência?! kkkk acho q não! No fim, mais uma página virada.. que beleza! parabéns! texto fantárdigo! =D

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  2. Lindo Roberta!! Lindo!!

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  3. Obrigada, querido! Os caninos que dilaceram, sorriem. Não é coincidência, não é? Não poderia.
    Fantárdigos são os seus textos, amore! Beijo...

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  4. Nat, obrigada, amiga, irmã de desprazeres... Saudade de você. Por que eu sumo tanto?

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  5. É, que bom que aos expressos sempre é dado atingir outras estações!
    Está, aliás, expresso no calendário a existência de outras estações! Dizem mesmo que, no Brasil, não importa em qual se esteja, o sol tá lá! Os chás... os chás têm seu lugar!

    "Seat and drink Pennyroyal Tea
    Distill the life that's inside of me..."

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  6. Exatamente, amigo. Está expresso que haja outras estações, não apenas dessas de se fazer brilhar o sol, mas também novas paradas, trilhas diferentes, destinos, enfim.

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  7. e quem nunca foi um chuchu??! =/

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  8. Às vezes a conotação da palavra "chuchu" pode ser adorável. Ou, no mínimo, pornográfica. O que não vale é ser chuchu aguado e gauche na vida.

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