11 de novembro de 2010

luto

TV aberta não faz parte do meu cotidiano. Aliás, tenho visto cada vez menos televisão, relido cada vez mais os mesmos livros, e escrito minhas bobagens. Sempre observei muito tudo o que me rodeasse, as pessoas, as paisagens, a vida, o bizarro e o belo da vida. Há momentos em que eu espio, fotografo imagens, cenas inteiras na memória e a coisa fica por isso mesmo. Nessas horas, sou um compartimento imenso de lembranças do que vi. Outras vezes, observo, fecho os olhos para que a cena habite o infinito que mora em mim e, depois, escrevo sobre essas memórias. Muitas vezes, escrevo apenas sobre o que vi. Às vezes, escrevo sobre o que vi e vivenciei, o que é muito mais complexo. De qualquer forma, escrevo para expiar, para purgar. As palavras saem de mim em conta-gotas, por vezes aos borbotões, feito uma fonte a jorrar, enlouquecida e histérica. Mas elas, as palavras, precisam sair de alguma forma. Para que eu não enlouqueça com tantas lembranças e impressões, para que o compartimento emocional da minha memória se esvazie um pouco e ceda lugar a novas observações, para que eu, observando e vivendo, não desista de enxergar a beleza da vida. A escrita é meu calvário, meu purgatório, onde tento erguer minha cruz, seguir adiante e não ter minha alma refratada nesse processo. 

Por essas e outras, TV não faz parte do meu cotidiano. Porque ora me vejo congelada, no meio de um trânsito inimaginável, observando quem vai e vem, ou porque estou escrevendo sobre isso. Ou, também, porque estou no olho do furacão, chacoalhando feito vitamina num liquidificador gigante. Ou tentando fugir dele... Em qualquer dessas ocasiões, televisão não entra no meu cardápio. Entretanto, há sempre um "porém"; de repente você se vê inserido num cotidiano que não é o seu e acaba absorvendo hábitos que já haviam morrido em seu universo. Assim aconteceu um dia desses, quando acompanhei minha prima numa sessão noturna de cinema na Globo. Há anos não assistia a um filme em canal aberto. Mas minha prima estava ali, suas filhas e seu marido também e, venhamos e convenhamos, o filme era "O Príncipe das Marés", um favorito meu, com Nick Nolte e Barbra Streisand. Havia uns dez anos desde a última vez que eu vira aquele filme. Simplesmente tive que assistir novamente. O pessoal dormiu antes do final. Eu fiquei acordada, chorei um bocado e vi, dessa vez, "O Príncipe das Marés" com outros olhos. Olhos mais maduros, mais sofridos, mais descrentes.

"O Príncipe das Marés" fala, basicamente, do luto sob a óptica psicanalítica, já que envolve uma família de neuróticos, uma poetisa suicida e uma terapeuta, interpretada por Streisand. Fala, sobretudo, das memórias que nos assombram e da verdade, que nos liberta. Quando assisti ao filme pela primeira vez, em 1992, eu não passava de uma pré-adolescente atraída por dramas psicológicos - aquela seria a deixa perfeita para que eu fosse levada ao psiquiatra mais próximo, mas acredito que, naquela época, uma garota de 14 anos atraída por uma história densa como a desse filme, fosse visto mais como um sinal de rebeldia pelos meus incautos pais. De qualquer forma, o que não tem remédio, "blogueado" está. Aos 14 anos, eu não poderia entender que o filme era sobre luto, memórias e verdade, até porque nunca tinha vivenciado luto algum, que marcasse minha carne e minha memória.

Para quem nunca viu, o filme conta a história de um treinador de futebol americano desempregado (Nick Nolte), sulista até o dedão do pé, que vive um casamento fracassado e, de repente, tem que ir a Nova York para resgatar sua irmã, que acabara de tentar suicídio. Lá, esse capiau misógino é obrigado a fazer sessões de análise com a Dra. Lowenstein (Streisand), para tentar ajudar sua irmã, Savannah, que, em estado de choque, nada diz e tudo nega. Em outras palavras, o treinador precisa ser a consciência, a voz de sua irmã, se quiser ajudá-la, já que ela mesma está perdida dentro do próprio ego. Claro que Tom, este é o nome do personagem, resiste às sessões até o último minuto; ele é machão, machista, sulista e odeia Nova York. Mas, como ama sua irmã, e como a analista é interpretada pela belíssima Barbra, a coisa acaba fluindo. E flui ainda melhor quando Tom descobre que Susan, a terapeuta, é infeliz no casamento com um violinista frio e hipócrita e tem um filho com quem não consegue estabelecer uma relação de afeto. Logo, Tom começa a treinar o rapaz que, até então, só sabia tocar violino e destratar a mãe, como via seu pai fazer. Assim, o esporte, através do paciente de Susan, faz uma ponte entre mãe e filho. E abre as portas para Tom, que vê que ainda ama futebol e que pode, sim, voltar a trabalhar.

Mas a coisa não para por aí. Há segredos macabros na família de Tom, segredos esses que, talvez, representassem a origem da tentativa de suicídio de sua irmã. Nesse meio tempo, Tom e Susan se apaixonam, o relacionamento dele com o filho dela se estreita, mas, e aí está o nó dessa história, o treinador não fala nada que possa de fato ajudar sua irmã. Porque, também ele, é neurótico e vive em plena negação, mitigando o passado miserável que viveu com sua mãe, a irmã, um pai agressivo e um irmão que ele idolatrava. E, à medida que a roupa suja vai sendo lavada no consultório de Susan, a água vai ficando cada vez mais negra, mais bolorenta e mal-cheirosa, embora os dois se aproximem e se apaixonem cada vez mais. 

Aos 14 anos, eu só via a superfície da história, não percebia os matizes que a diretora, a própria Streisand, pintou propositadamente para colorir o enredo e complexificásutil à sociedade artística de Nova York, lustrosa em sua hipocrisia e distanciamento da realidade; julgava o filho de Susan, achando que ele fosse o diabo encarnado quando tratava a mãe como a um cão. Por isso releio livros e revejo filmes. O olhar da gente muda com o tempo, e acaba-se percebendo o detalhe que faltava para a obra fazer sentido pleno. Esse detalhe eu "pesquei" na reapresentação desse filme, que amo ainda mais agora, na TV Globo. E muitas impressões que eu tinha sobre o filme mudaram completamente. Bem, ainda não gosto do final, como não gostei em 1992. Mas, hoje, sei porque não gosto, ou melhor, não aceito a forma como o filme termina. 

"O Príncipe das Marés" é uma alegoria sobre o luto e, acima de tudo, sobre a necessidade de se vivenciar cada fase do luto, sem pular etapa alguma. Se há uma certeza na vida, é a de que vamos perder pessoas, empregos, bens, situações, apostas, enfim, vamos perder do momento em que nascemos até a hora em que assistimos ao último por de sol dos nossos dias. E o luto é a reação humana à perda. Ele pode vir brando, mediano ou desolador, mas sempre vem. E quem não sente, nem vivencia o luto por algo querido que perdeu, torna-se neurótico, partido em mil pedaços, sem a consistência firme da qual o ego necessita para que sejamos indivíduos inteiros e plenos. De acordo com a psicanálise tradicional, são cinco as fases do luto, quais sejam: raiva, negação, negociação, depressão e aceitação. Em suma, imagine que você acabou de perder alguém que ama profundamente. Primeiro, você é tomado por uma raiva colossal. Precisa sentir essa raiva, pois ela lhe dará forças para seguir pelas próximas quatro etapas. Depois, tenta negar a perda, numa tentativa de auto-preservação que não passa de uma sabotagem do subconsciente ao ego. Em seguida, negocia com a perda. Começa a ponderar como sua vida será, agora que essa pessoa não está mais presente. Na negociação, o indivíduo acostuma-se com a presença de uma ausência, que será para sempre. Então vem a depressão ou a culpa, principalmente se o enlutado tiver pendências com quem se foi, pendências que jamais serão resolvidas. É na depressão, e no choro e no recolhimento que vêm com ela, que o luto é mais facilmente percebido. Enfim, vem a aceitação da perda. Você faz as pazes consigo mesmo e com o que se foi. Página virada, você em frangalhos, mas vivo, liberto de neuroses, triste, mas consciente de que precisa seguir em frente. O luto é, assim, um tempo obrigatório entre duas fases da vida: aquela que deixamos porque nos separamos de alguém ou alguma coisa querida, e aquela que virá depois de os termos deixado partir, e que será completamente diferente da precedente.  

Quando, por qualquer razão, não se faz a passagem pelas diferentes fases do luto, e nessa ordem específica, o ser ferido pela perda fica agarrado a uma relação que já não existe e não consegue construir uma vida verdadeira e nova. As causas desses insucessos no processo do luto são múltiplas: falta de rituais sociais que favoreçam o decorrer do luto, insuficiência de informações necessárias sobre a maneira de lidar com o luto, incapacidade de se exprimir emocionalmente e sabe-se lá mais quais deficiências. Para Tom, sua mãe e sua irmã, o problema foi a negação. Perante o luto pelo qual a família do treinador passou, todos experimentaram a raiva inicial, mas estacionaram na negação da perda. A bem da verdade, no filme, surge aquela máxima freudiana de que "a culpa é da mãe", já que fora esta que proibira os filhos de expressar suas emoções mediante as perdas e, pior, ela os fez negar que tais perdas e as tragédias subseqüentes a elas aconteceram de fato. Savannah emudece e morre em vida, até tentar tirar a própria vida de verdade. Luke, o irmão mais velho que Tom reverenciava, rebela-se contra tudo e todos e acaba sendo assassinado. E Tom cresce em tamanho e forma, mas seu subconsciente é um pardieiro abandonado e o seu ego é completamente facetado, falido e débil. Por isso, por não ter vivenciado as fases de cada luto experimentado em sua vida, e por ficar estacionado na negação, Tom não consegue mais viver, trabalhar nem se relacionar com sua mulher e três filhas. Ele está à beira do abismo, mas não o percebe. 

No final, Tom consegue revelar os segredos que trancafiara em sua alma doente por mais de trinta anos, vivencia a negociação e a depressão e, falando por sua irmã, acaba por libertá-la dos mesmos traumas. E, abençoadamente, alcança a aceitação. Transforma-se num homem completo, capaz de amar e, o mais importante, de se permitir ser amado. Mas, inevitavelmente, põe um fim ao seu romance com Susan e volta para a esposa e para as filhas. Bem, eu ainda não gosto desse final, ou melhor, não aceito esse final. Porque o final é, de fato, perfeito. Se Tom ficasse com Susan e abandonasse sua família, ele continuaria em processo de negação e fuga. Além do mais, a produção é norte-americana, e yankees são, ao final e ao cabo, bastante puritanos e tradicionalistas. Não daria para a diretora acabar o filme com o cara refazendo a vida com sua linda psicanalista e largando a mulher chata e distante, suas três filhas, a mãe ultra-neurótica e sua irmã suicida para trás. Então, seria querer demais de um filme americano ou da vida real. De fato, ele precisa voltar para a família para provar para nós, espectadores, que o luto é uma experiência constante, que acontece o tempo todo em nossas vidas. Afinal, agora Tom teria que vivenciar o luto pela perda de Susan, a quem amou profundamente. E Susan, vivenciar o próprio luto pela perda de Tom, o único homem que a fizera feliz. Ah, mas tudo bem. Ela já era uma psicanalista mesmo, vai encarar esse pé na bunda na moral, não é...?

Bem, o filme não nos mostra como Susan encara seu luto pela perda do homem amado. O longa é sobre o príncipe das marés, ou seja, sobre Tom. Susan é a mulher, a psicanalista que salva esse homem do colapso e, fazendo nada mais que o seu trabalho, ajuda-o a reconstruir sua identidade. Claro que muito da reconstrução da identidade desse machão sulista e o fato de ele poder ter se aberto, revelado segredos e curado a si mesmo e à irmã, devem-se ao amor que Susan sente por ele, ao amor que Tom sente por ela, e a entrega comovente dos dois. Mas este é um filme sobre perdas e luto, e não sobre o desabrochar do amor. O final é perfeito, sim, mas para quem tem um pouco de dificuldade em entrar na fase de aceitação do luto, ou seja, eu e mais uns três bilhões de habitantes, no mínimo, fica aquele gostinho amargo de derrota e de abandono, não apenas por Susan, mas também por Tom, que precisa deixar a mulher de sua vida para voltar para as outras mulheres de sua outra vida.

Talvez por isso, pelo final, o filme seja tão perfeito. Faz a gente sofrer pelo luto do amor de Susan e Tom, mas nos força a encarar, por esse luto deles, as tais cinco fases, uma a uma. Fica a critério de cada um imaginar como Susan lidou com o seu luto, porque é Tom quem narra o final da história, revelando, dessa forma, seu estado de espírito e suas emoções ao perder, ou melhor, optar por perder Susan. Dela, tudo o que vemos são seus olhos azulíssimos marejados, o rosto coberto por uma tristeza infinita, quando vê Tom fumando novamente (ele havia parado), esperando-a na calçada em frente à clínica. Antes mesmo de ir até ele, ela já sabe que vai abandoná-la. Eles dizem um para o outro que já estavam preparados para aquilo, mas não estavam. Ninguém pode estar preparado para a perda de um amor, não pode ser possível. Eles se abraçam e, chorando e rindo ao mesmo tempo, a doutora Susan Lowenstein lhe diz: "Isso é o que eu mais amo em você, Tom. Você é o tipo de homem que sempre volta para casa".

Então, choramos todos por Susan. Bem, eu chorei, já que minha prima, seu marido e suas filhas já estavam para lá do quinto sono ao final do filme. Chorei por Susan em 1992 e tive ódio mortal de Tom então. Chorei por Susan em 2010, tive um pouco de raiva de Tom, mas, hoje, compreendo sua decisão. Compreendo. Mas ainda não aceito. Talvez, daqui a uns anos, eu reveja "O Príncipe das Marés" novamente. E talvez, então, eu já tenha aprendido a lidar com os meus próprios lutos, talvez tenha deixado de vez o meu lado romântico e absurdo, e nem chore mais por Susan. Ou talvez não. Talvez anos e anos se passem e eu continue me perguntando como aquela mulher voltou para o seu marido frio, que a traía e maltratava, e para uma vida de vazio, sem alegrias e sem Tom. Porque não dá para acreditar que, mesmo estudando anos e anos de Sigmund Freud, uma mulher apaixonada possa levar seu luto na flauta.

Para terminar, e para deixar que cada um dos poucos heróis que me acompanham aqui no blog tirem suas próprias conclusões, um detalhe fonético e semântico que, para mim, é o que mais dói, e por isso, talvez, seja o mais belo desse filme: Tom chama Susan, o tempo inteiro, de Lowenstein, um nome judeu alemão, pronunciando a letra "w" com o som de "u", como normalmente se faz na língua inglesa. Você o ouve dizer, por duas horas, assim: "Louenstin". Mas, no finalzinho, ao cruzar uma ponte e contar para quem assiste ao filme que aquela mulher fora o seu divisor de águas, sua alma, seu sopro de vida, ele repete seu nome incessantemente, como a chamar por ela, mas, desta vez, da forma correta, com o "w" soando como "v". E o que você escuta, o golpe fatal, é algo como "Love-nstein, Love-nstein, Love-nstein...". Haja força para tanto luto.
Assista ao trailer original de 1991     

Um comentário:

  1. Ah. Nem preciso dizer que a trilha sonora, de James Newton Howard, é a cereja do bolo...

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