23 de novembro de 2010

entressafra

Já há algum tempo, algumas pessoas me incentivavam a ter um blog. Confesso que nada parecido com expor minhas idéias dessa maneira jamais tenha passado pela minha cabeça. Eu me entregava às minhas dilações literárias, rascunhava-as em qualquer papel que encontrasse e, se alguém não o guardasse, acabava perdido, esquecido ou em alguma lixeira. Então, numa tarde, um grande amigo (um daqueles que me encorajavam a ter um blog) acabou por me convencer. Estávamos no trabalho, mostrei-lhe um texto que tinha feito e ele mesmo "montou" o esqueleto do blog para mim. Chamou-me ao computador e disse: "Pronto. Agora, é só postar e deixar com a sua cara". Então nos ocorreu que precisávamos de um nome para o blog. Eu não tinha a menor idéia.

Não sou muito boa em nomear coisas, principalmente se não tiver pensado um pouco sobre o assunto com antecedência. Geralmente intitulo o que escrevo quando o texto já está acabado, então, dar luz a um nome para o blog foi a pior das experiências iniciais. Olhei para o meu amigo e disse: "Que nome ele pode ter? Me dá uma idéia!". Ele olhou para o teto, segurou o queixo por alguns segundos, pensativo, e disparou: "Sei lá. Porque você não coloca uma coisa meio louca, tipo 'escalafobética'?". Encarei meu amigo muito séria: "Jura? Mas você me acha escalafobética?". Lá vinha uma crise de identidade em meu encalço... Meu amigo riu, não levando a coisa muito a sério, sábio que é, e respondeu: "É. Você tem umas coisas meio escalafobéticas, sim". Suspirei, conformada. Então tá. De uma tentativa fracassada de trocadilho, nasceu o nome desse blog, ou melhor, não o nome, mas a URL, o endereço dele no universo virtual. É lógico que, minutos depois de ter o esqueleto montado, vi que nada que eu pudesse expor, mesmo que virtualmente, poderia soar tão nonsense como "Escalo-Alfabéticas". Pedi socorro a meu amigo, que me explicou que eu poderia mudar o título do blog como e o quanto quisesse, mas não o endereço. A não ser que nós excluíssemos aquele e criássemos outro. Trocamos um olhar cúmplice e, diante da preguiça que tomou conta de nós, a URL ficou.

Esse blog nasceu em 23 de setembro de 2010. Existe, portanto, há dois meses. Àquela época, eu vivia um momento de euforia e muitos risos, caminhando a alguns centímetros acima do chão. Talvez não fosse apenas euforia. Talvez eu estivesse, pura e simplesmente, feliz. Feliz como há muito não conseguia me sentir. Mas, por motivos sombrios, que eu mesma ignoro, acho melhor olhar para trás e considerar aquele um período de euforia. Para tornar as coisas mais leves, mais fáceis de engolir. O primeiro nome que dei ao blog, levada pelo momento que vivia, foi "Trens e Balões". Era, com certeza, um título melhor do que o da URL, e o escolhi porque sempre acalentei o sonho de voar num balão e viajar sobre um trem de ferro, desses bem antigos e vagarosos, numa noite enluarada. Entretanto, o título dizia ainda mais sobre aquele momento da minha vida: eu me sentia como um balão colorido, cheio de gás, flutuando mansamente no anil do céu com o qual sempre sonhara, mas apenas me sentia assim.

'Estação de São Lázaro", Claude Monet

O que sempre fui, e nunca deixei de ser, é um antigo trem de ferro, anacrônico e deslocado entre as muitas conveniências modernas, rodando e rangendo sobre os trilhos, muitas vezes em círculos, outras, percorrendo distâncias incríveis só para chegar à velha estação e, em algumas paradas, descarrilando e perdendo o norte. Essa contradição me incomodava. Tudo o que eu queria era ser um balão leve e colorido e lindo, mas os vagões e correntes jamais me permitiriam flutuar. À medida que fui dolorosamente tomando consciência disso e aceitei a idéia de escrever a vida sobre os trilhos, rangendo e contornando montanhas, bufando fumaça a cada suspiro resignado de mais um sonho esquecido e sepultado, deixando passageiros antigos e embarcando novos, enfim, quando olhei-me no espelho e ouvi um apito de trem, e não um chamado de gaivota, resolvi que esse blog seria um expresso.

Mas todo expresso vem de algum lugar e vai para algum lugar, mesmo que em jornadas cíclicas. Então, meu expresso haveria de vir do inconsciente, este que dita muitas das minhas decisões e subjuga o centro do meu eu. Saída: Id. Destino: Construção do Ego. Assim, e não das costelas de Adão, nem de um bom trocadilho, nasceu o nome desse blog. E, de fato, ele faz as vezes de divã, onde tento organizar pensamentos, escrever sobre eles e descobrir um pouco mais sobre o destino dos meu vagões, sobre como se faz para reconstruir um ego multifacetado, dicotômico e esfacelado pelo tempo que não existe, pelo tempo que já passou e pelo tempo real, em que devemos seguir viagem sempre, mesmo às cegas, para não sermos atropelados pelo próximo trem que já apita atrás de nós. 

Não sei até quando vou me sentir como apenas mais um passageiro do meu próprio trem. Às vezes me surpreendo com esse cansaço, quase um temor de me sentar à cabine do maquinista. Olho a paisagem pela janela de uma das cabines e vejo árvores, céu, pessoas e casas num borrão indistinto, como se estivesse passeando numa pintura de Monet, através de seus olhos tomados pela catarata. Vejo cor em algumas paradas. Noutras, o cinza domina o cenário com matizes de chumbo e sombreados melancólicos. Rio comigo mesma quando tais pensamentos tomam forma de palavras escritas. E penso que, a mim, não me basta ser apenas a maquinista desse trem, mas também alguém com dom para a pintura, que saiba manusear aquarelas, paletas e pincéis com desenvoltura estratégica para pintar as paisagens como melhor lhe convier. 

Talvez tudo isso não passe de um bando de elucubrações inúteis, que vêm rondar o sótão da minha morada como corvos e pousar sobre meus ombros. Eu deveria saber que corvos, além de feios e agourentos, cagam. Portanto, não poderia deixar nenhum deles pousar em meus ombros. Afinal, dizer "xô" não é algo tão trabalhoso quanto limpar a sujeira dos pássaros da memória. Por outro lado, penso em quais partes de mim eu deveria renunciar para ser menos trem e mais maquinista, menos pensamento e mais ação, menos querer e sonhar e mais construir. Mas, a bem da verdade, ignoro se são "renunciáveis" as partes do eu que definem um indivíduo, sua essência e suas cores. Pergunto-me se, de renúncia em renúncia, não chegará o dia em que os contornos que definem a pessoa que eu vejo no espelho, vão se volatilizar até a transparência, até não haver mais contorno algum, só a essência, sem molduras. Como uma casa sem número. Ou um blog sem nome, nem URL.

Nesse meio tempo, ouço o vento soprar nas estátuas, o cantar distante de um canário e a água correndo devagar no leito de um rio. Fecho os olhos e sinto o cheiro da estrada de terra molhada de chuva, da fumaça da lenha queimada e de lençóis recém lavados, estendidos no varal. Timidamente, coloco o rosto para fora da janela e sinto a luz do sol de inverno, dourada e suave, tornar-se cada vez mais branca e escaldante à medida que o verão vem tomando seu lugar. Abro os olhos, temendo ver apenas um borrão da paisagem que me cerca. Mas seus contornos já vão se formando novamente, com vagar, mas persistentes. Não sei desenhar, nem pintar. Nunca soube. Então, nesse meio tempo, escrevo.              

4 comentários:

  1. "Eu me sinto um estrangeiro, passageiro de algum trem, que não passa por aqui, que não passa de ilusão..."

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  2. Faço suas as minhas palavras. Mas, cara, não é possível isso! Não dá para se sentir estrangeiro e passageiro do próprio trem o tempo todo!!! Alguma dica...?

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  3. Invada a cabine, defenestre o maquinista, e maquine sua própria trajetória! Fácil, né! Nem fudendo! hahah!

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  4. É isso. Não é fácil, mas é possível. Uni-vos!

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