4 de novembro de 2010

novembro


"Café Terrace à Noite", Van Gogh

No último domingo, quando os eleitores de Dilma comemoravam sua vitória definitiva nas ruas, eu caminhava sozinha, olhando as poucas poças d'água que se acumulavam no chão. Havia chovido à tarde, mas a terra estava tão quente que a água evaporara quase instantaneamente do solo. Já passava das oito da noite, e o comércio estava todo fechado, com exceção de duas farmácias e uma padaria com poucos bolos e pães para oferecer. A única rua movimentada da cidade era a principal, onde o pessoal se encontrava para prosear, namorar e tomar um lanche no Café.

Eu caminhava apressada, para despertar o corpo, amortecer a mente e fazer o sangue circular mais rápido, com mais vivacidade. Além de as ruas estarem escuras, ninguém me reconhecia por ali, embora eu tivesse passado muitos dias de minha adolescência naquela cidade. O anonimato é um bálsamo, quando se busca forças dentro da própria solidão. Você pode caminhar pelas ruas, olhar outros transeuntes, permitir que eles olhem para você, mas, no conforto (i)rreal do anonimato, você pode ser quem quiser, quando está de passagem por uma cidade. Naquela noite, eu era uma forasteira cheia de si, andando de cabeça erguida e espinha ereta, olhando as casas e seus moradores assistindo ao "Domingão", ouvindo de longe o blá-blá-blá ébrio de Fausto Silva.

Ao ver aquelas casas de família, com portões de ferro, quintais gramados, pequenas árvores em frente e gente amontoada na sala, ao redor da televisão, vivenciei a mais dúbia das sensações: senti-me livre e leve, quase superior por não ser parte daquela massa provinciana de pessoas que pensavam serem aquela cidade e aquele programa de tevê o umbigo do mundo. Mas, por outro lado, senti uma solidão massacrante dentro do peito, porque eu nunca teria uma casinha com quintal gramado, um portão de ferro a ranger, uma sombra fesca a minha porta, a paz provinciana inestimável e uma família grande para assistir à televisão comigo. 

Vi um pai empurrar sua cria (um molequinho de uns quatro anos, de cabelos louros e olhinhos escuros, que acenou para mim timidamente) num carrinho que imitava uma Ferrari. Uma dúzia de senhores jogavam baralho no calçadão e, ao passar por eles, ouvi que falavam de uma mulher que havia traído seu marido depois de trinta anos de matrimônio. Eles falavam alto, não era eu quem procurava por mexericos. De vez em quando um motociclista passava por mim, pilotando lentamente. Muitas bicicletas rodavam por ali também. Era domingo. E domingo é sempre igual, com seu ritmo arrastado, em qualquer lugar do planeta. 

Comprei pães de queijo, uns remédios dos quais não precisava, de fato, e parei no Café para um cappuccino. Este é o meu ritual de anonimato e solidão: uma cidade que não é a minha, uma padaria ou um Café, um expresso ou um cappuccino, sentar-me à beira da rua e ficar espiando o povo ir e vir, como se eu fosse um marciano que tivesse acabado de chegar àquele local. As moças vestiam-se como se estivessem indo a um baile de gala, com roupas da última moda e scarpins de saltos altos e finíssimos. Os rapazes, frescos e perfumados, tinham os cabelos engomados com gel, camisetas justas e braços enlaçados às cinturas de suas namoradas. Carros passavam, a cada dez minutos, com música animada e alta. Aguns pais tomavam sorvete com os filhos e as esposas. No prédio a minha frente, uma garota, de sua sacada, acenava para outra, sentada à mesa ao meu lado, gritando-lhe que estaria pronta em vinte minutos. Eu e um bêbado de cabelos compridos, do outro lado da rua, próximo a uma farmácia, éramos os únicos sozinhos. Eu sorri, um sorriso agridoce. O anonimato lhe protege, ilusoriamente, por pouco tempo. Em meio à solidão, você estufa o peito, apruma o corpo, toma um cappuccino que não passa de café com leite e finge para si mesmo estar absolutamente contente com sua plena liberdade e bagagem cultural incomparável. Mas, lá no fundo de suas entranhas, tudo o que se quer é estar perfumado, abraçado à namorada, ou com o moral tão alto a ponto de se vestir, em pleno fim de domingo, como se estivesse indo a um baile.

Arrependi-me de não ter levado um livro ao Café comigo. No meu ritual de anonimato, sempre tenho um livro como companheiro, assim como os dândis carregavam suas bengalas, envaidecidos. Um livro é sempre um bom amigo e, na pior das hipóteses, um excelente escudo. Dei uma última olhada naquele cenário, tomei o resto do meu cappuccino e fui em direção ao carro, que estava a quadras dali. Caminhava mais devagar agora, e olhava as vitrines das lojas. Roupas em profusão, acessórios aos milhares, sapatos, sapatos e mais sapatos, lojas de brinquedos. O comércio fechado, com suas vitrines a expor mercadorias estáticas, sem um vendedor a oferecê-las, sempre dá uma sensação estranha de melancolia. Por isso dizem que o comércio, os burgos, são a alma de uma cidade. Pode ser...

Uma vitrine, em particular, capturou meu olhar. Era uma clínica médica. Não tinha mercadoria alguma a oferecer e, lá dentro, o salão estava completamente escuro e solitário. Mas, sobre a mesa da recepção, havia uma árvore de natal pequena, coloridíssima, completamente iluminada, com pisca-piscas, bolas douradas e uma estrela na ponta. Não deveria ter mais do que sessenta centímetros. Aquela árvore me assustou como se fosse um bicho-papão em pleno domingo de eleição. "Árvore de Natal?", pensei comigo. "Mas já?". Refiz o trajeto de volta ao calçadão, para ver se as outras lojas também já estavam enfeitadas para as natividades. Suspirei de alívio. Ainda não. Ao que me pareceu, apenas aquela clínica médica dava boas-vindas a Noel com antecedência quase duvidosa. Ou, talvez, o susto fosse mesmo "culpa" minha, que não corro atrás do tempo e, ao vê-lo passar, penso que ansiosos são os outros cinco bilhões de habitantes e não eu, a nostálgica.

É novembro. Dezembro bate às portas e, com ele, o natal, as árvores, os pisca-piscas, os presentes, as festividades. Não sei como ainda não me acostumei com a rapidez do tempo. De uma maneira muito infantil, patética até, a cada ano espero que as pessoas se esqueçam do natal, do reveillon e, calvário-mor, do carnaval. Mas elas nunca se esquecem. E a arvorezinha iluminada sobre a mesa da recepção daquela clínica está lá, de prova, para me mostrar isso.       

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