12 de novembro de 2010

eu, quixote

"Don Quixote", Pablo Picasso
Não sei viver de outra forma que não seja através da minha faceta quixotesca, esta que impera. Há moinhos de vento reais em meu universo, contra os quais posso e devo lutar, mas me faltam a coragem e a força. Há também moinhos  verdadeiros contra os quais insisto em lutar, mas perco sempre. E há os imaginários e belos moinhos que, dragões alados, imprimem um colorido único em meu olhar. Generosamente impulsiva, nobre, mas desconectada da realidade formal e "conveniente", sou como Quixote, um cavaleiro andante em busca do absoluto. Mas, em oposição à personagem clássica, ainda não retornei de fato ao meu vilarejo para descobrir que não, não há heróis no mundo real. 

Não sei viver pelo "caminho do meio", como aconselham os budistas. Ainda escolho um lado ou outro da estrada para firmar meus pés. Pode ser o caminho errado, na maioria das vezes ainda é, mas minha capacidade diplomática é, de fato, um tanto falha, quiçá inexistente.

Não sei viver, sonhar, amar, odiar, caminhar, orar, lutar, esperar, nem escrever "pela metade". Sou uma unidade sólida, um monólito anacrônico, que carrega seus fardos e glórias por inteiro, aonde vá. A metade que me falta, ou que já me faltara, é a metade que não existe e que jamais vislumbrarei. É a ilusão da metade  de um outro alguém, de outro lugar, de outra realidade que, como num reflexo convexo, tapeia a visão e burla a identidade. Cada indivíduo é a metade de sua própria metade, e se não conseguir juntar as peças para se fazer por inteiro, inexistirá a posteriori.

Não sei "lavar as mãos". O nível de pilates em meu sangue é negativo. Defendo meus amigos, mesmo que eles não o tenham me pedido, digo o que ninguém ousaria dizer, embora todos pensem o mesmo que se passa em minha mente, ainda que isso me valha cicatrizes, frustrações e um cansaço abissal do mundo e  da gente incógnita. Ergo mãos, braços e corpo inteiro "à palmatória", baixando a guarda e abandonando débeis escudos, simplesmente porque não conheço outra forma de conviver em sociedade.

Não sei "racionalizar". Tento arduamente, dia após dia, mas, derrotada, ainda vejo-me cativa de uma passionalidade démodé num mundo veloz, atroz e absolutamente racional. Penso, sim, antes de agir ou, do contrário, já estaria trancafiada num manicômio ou em Albatroz. Mas não penso mais do que três dias (o tempo limite para livrar qualquer cidadão "em dúvida" dos médicos ou de um oficial da policia). Passados três dias durante os quais tento optar pela voz da razão, é minha alma que fala mais alto, aflorando-me ao corpo e conduzindo-o doravante.

Não sei mentir, nem para aqueles que amo, nem para os que pouco convivem comigo, nem para mim mesma. Há vezes em que consigo omitir determinados fatos, principalmente se estes forem poupar o outro de um aborrecimento desnecessário. Mas, quando o sujeito da omissão ou de uma provável mentira sou eu, é a verdade que prevalece. Não há mentira que seja melhor do que a pior verdade. Por não ser capaz de mentir para mim mesma, por vezes antecipo derrotas, permito que o pessimismo inunde o cais da minha consciência e, por antecipação, visto o manto negro do luto e envolvo-me num casulo vazio e frio. Então, a verdade vem emergir, e leva com ela as traças e o mofo das páginas velhas e rasuradas que teimam em habitar meus livros.

Não sei cultivar a atitude blasé, que impede que as imagens feias, indesejadas e absurdas do cotidiano invadam a alma do indivíduo através de seus olhos. Porque eu vivo de olhos abertos, para a beleza e para o vergonhoso do mundo. Ambos entram-me por olhos adentro e, feito espectros de um universo que não é o meu, habitam minha memória. Mas lá, no compartimento emocional da memória, creio existir um mecanismo que busca o belo até no que é triste, e feio, e vergonhoso. E muitas vezes o triste, pela fugacidade de sua natureza, o feio, pela particularidade de sua essência, e o vergonhoso, pela descrença alheia que carrega consigo, acabam justamente parecendo belos para mim. E, não raro, na busca do belo para sobreviver à derrota do torpe, entristeço-me e abraço a melancolia. Porque, na alegria fútil e irreal das multidões, nos sorrisos pasteurizados dos "amigos" e na leniência do "cada um por si" (e quem por todos?), não consigo mais enxergar o belo.

Não sei me contentar em seguir uma linha reta e conveniente, ainda que seja sólida e certa. Se me faltar a ideia de sentido, tal caminho não me basta. Faltando-me o sentido na vivência das coisas, sobram-me o torpor e os questionamentos. E, tal qual uma mula velha e caturra, empaco no meio do caminho, vendo o ir e vir das multidões em seu prosseguir enquanto eu, em busca de sentido no que, talvez, não haja sentido algum (porque às vezes as coisas não devem ter sentido, já que são um fim em si mesmas), estatelo-me ao chão, cavando a terra em busca de "porques", lascando unhas, ferindo as mãos e perdendo tempo, trens, bondes e oportunidades.

Não sei viver sem ideologias e motes. E, perdida entre ideologias que poucos veem ou compartilham comigo, transformo-me num objeto obsoleto, numa peça de museu, sem funcionalidade alguma ao mundo real e tangível dos acontecimentos. De passional, passo a ser a utopia em forma de mulher, isso quando toda e qualquer utopia já morreram há tempos e, enterrados, já não incomodam nem salvam ninguém.

Não sei delatar, acusar nem suspeitar do outro. Quando em raras ocasiões uma suspeita vem pousar em meus ombros, espanto-a feito a uma gralha. E, num mundo irreal-ideal em que cada um conhece seus próprios limites e obrigações, recuso-me a delatar, embora não escape à delação alheia. Perco sempre nesse jogo, é inevitável. Mas o que me importa é a batalha que travo comigo mesma: saio em frangalhos da luta contra o outro, mas em paz e incólume das guerras que travo com minha própria consciência.

Não sei abandonar o romantismo, a idealização do amor, da família e da amizade. Sei que tudo muda, que não há bem que dure, nem mal que perdure, mas, ainda assim, espero assistir ao último por de sol da minha vida com alguém que também ame e valorize o poente e seus matizes, como eu. Sei que pais são seres como você e eu, passíveis de erros, calúnias e traições, mas ainda os considero os melhores amigos e conselheiros que alguém pode ter. Sei que minhas idealizações são patéticas e talvez nunca existirão em minha vida, mas não consigo soterrá-las em prol de uma existência mais prática e menos saudosista. A esperança é um sentimento perene em mim, que convive aos trancos e barrancos com o realismo que me ordena abrir os olhos e abandonar expectativas vãs.

Por essas e outras, sou um Quixote solitário e louco, em guerra contra moinhos que bufam, esmagam e trituram sonhos, sim, mas que também movem o mundo. Falta-me o contra-peso de um fiel escudeiro, Sancho Pança. Eu gostaria de escapar a cada uma dessas quixotescas armadilhas, mas a essência, o imaterial que percorre cada sinapse minha, parece ser imutável. Admito, de peito aberto (mas não sem um sentimento incômodo de constrangimento), que quem, como eu, pensa demais, vive de menos. E que já estou farta de ver a vida passar por mim, num campo onde espero pelo último dragão, o mais poderoso e cruel, cujo peito atravessarei com minha lança persistente. Farta porque sei que esse dragão inimigo não passa de um velho e abandonado moinho. Há de chegar a hora em que eu abandone o cavalo, o chapéu e o bigode do cavaleiro sonhador e crie asas e couraça, cuspa fogo na hora certa e vá voar e lutar pela vida.

3 comentários:

  1. Anônimo23.5.11

    Todo utópico é quixotesco.
    Angústia e incertezas nos mantém vivos.

    "A utopia está lá no horizonte. Me aproximo dois passos, ela se afasta dois passos. Caminho dez passos e o horizonte corre dez passos. Por mais que eu caminhe, jamais alcançarei. Para que serve a utopia? Serve para isso: para que eu não deixe de caminhar". (Eduardo Galeano)

    Don Quixote morre quando "curado". Mas, curado de que senão de sua certeza? Era louco, pois colado ao imaginário descrito nos livros de cavalaria. É a certeza, e não a dúvida, que enlouquece: Em todos os manicômios há doidos malucos com tantas certezas! (Pessoa, F. Tabacaria).

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  2. Anônimo23.5.11

    "Ah, memória, inimiga mortal do meu repouso!"

    Miguel Cervantes

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  3. Querido Anônimo:
    seu comentário não poderia ser mais pertinente. Desta vez, conseguiu analisar o texto, assim como a autora, perfeitamente. Obrigada.
    Abraço grande!

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