5 de novembro de 2010

como andar de bicicleta

Ditados populares não existem à toa. E não é à toa que repetimos esses ditados, quiçá inadvertidamente, como papagaios a dizer "louro, louro, curupaco", sem saber o que ou como nos expressar. Ditados populares antigos, principalmente os de meus ancestrais, são aqueles de que mais gosto. E não me importa o quão caipira eu pareça quando digo, por exemplo, "pé de galinha não mata pinto". Solto esta pérola quando sapeco a bunda macia, gordinha e branquela da minha cria, aos três anos já um molequinho genioso e arretado. Há situações que não mudam nunca; continuo usando os ditados que meu pai ouviu do pai dele, que ouviu de sua mãe, e por aí vamos, nessa lengalenga infinita de família.

O céu de ontem estava particularmente inebriante. Estrelas pontilhavam seu manto negro, e conseguíamos ver com precisão as "Três Marias", que os astrônomos chamam de "Cinturão de Orion", o "Cruzeiro do Sul" e Marte, o Planeta vermelho que, à distância, nos parece apenas mais uma estrela, só que maior e mais brilhante, meio alaranjada. A rua estava praticamente deserta, com exceção de um ou outro doido-varrido a caminhar quase às onze da noite. Um vento fresco, quase frio, soprava nas folhas da mangueira e na grama alta aqui de casa. Mas, quando a vontade de andar bate forte, não importa a hora, não importa o local, não importam as convenções que restringem o faro, o paladar e o desejar da gente. Se a vontade de viver o chama, escute. E saia, mesmo que seja tarde da noite, mesmo que esteja de pijamas, mesmo que tudo ao seu redor lhe diga para ligar a televisão e embotar-se com um filme chato ou um documentário tedioso. 

Vi uma bicicleta antiga, dessas de cestinha à frente e garupa atrás. Pertence à minha prima há anos. Era nela que ela levava suas meninas à escola, gritando de felicidade na garupa da mãe. É uma bicicleta azul, de ferro resistente, que faz aquele rangido gostoso quando a gente pedala. Rangido que aguça a memória e nos leva direto para a infância, quando o tempo não passava, os carros eram sem graça e todo dia era dia de São João. Não perdi mais tempo. Subi na bicicleta e, simplesmente, pedalei. Havia no mínimo vinte anos que eu não pedalava uma bicicleta. No princípio, bambeei um bocado, tive uma certa dificuldade com os freios, quase subi num barranco, mas, em cinco minutos, pedalava como se nunca tivesse passado um dia sequer sem aquela velha, azul e adoravelmente barulhenta bicicleta. O ditado, claro, veio-me automaticamente ao pensamento. "Tem coisas que não se esquece; é como andar de bicicleta".

Meu filho, que estava elétrico porque havia dormido à tarde, viu a mãe pedalando de vestido comprido pela rua e não se conteve: "Mamãe, quero andar também!". Sorri. Ele nunca andou de bicicleta, muito menos na garupa de uma. Mas aquele pedido, a bicicleta, a noite, as estrelas e o vento eram o chamado da vida. Eu não podia recusá-lo. Coloquei um casaco vermelho com capuz azul no menino e disse-lhe que aquele era o momento certo para andar na garupa. Ele deu gritinhos histéricos de pura e plena felicidade. Pedi que não retirasse o capuz porque, com ele, talvez a bicicleta alçasse voo, como naquele filme que havíamos visto outro dia, o do E.T., lembra? O molequinho quase desmaiou de emoção. Coloquei-o na garupa, pedi que abrisse bem as perninhas e que me agarrasse com força à cintura. Ao primeiro ranger das rodas e com o vento roçando-lhe de leve o rostinho protegido pelo capuz, fiz meu filho feliz aquela noite. E a felicidade dele me encheu de vida. 

Contornamos o centro da cidade, fomos até o Grêmio, entramos um pouco estrada de terra à dentro, fizemos a volta, passamos pelo coreto e pelo único botequim aberto, com três pinguços meio mortos, meio vivos, passeamos por ruas que, para ele, são simplesmente ruas, mas que, para mim, são como as linhas da minha mão, passado, presente, destino e futuro. Pedi que meu filho olhasse para as estrelas. Ri muito quando ele me respondeu: "Não posso, mamãe. Se eu olhar pra cima, cai o capuz". Era verdade. E, caindo-lhe o capuz, o vento poderia deixá-lo resfriado. E, o mais importante, não poderiamos alçar voo sem aquele capuzinho azul. Então, pedi-lhe que respirasse fundo e sentisse aquele cheiro. "Que cheiro bom é esse, mamãe?". Respondi-lhe que era o cheiro do mato molhado de orvalho, da terra, da noite. Ele me pediu se poderia levar aquele cheiro e a bicicleta para casa. Sorri, novamente. "O cheiro, filhote, você leva na imaginação. A bicicleta, a gente pede a Tia Lu, tá bom?".


E.T., Steven Spielberg
Éramos uma figura engraçada de se ver, se houvesse alguém àquela hora para nos observar: um molequinho pequeno, rindo e falando sem parar, de calças compridas azuis e tênis marrom, agasalhado pelo seu casaco preferido, vermelho com um gorro mágico azul, com bracinhos curtos e maozinhas gordas agarradas à mãe; esta, com os cabelos presos num coque frouxo, chinelos de dedo cor de abóbora, visual e esteticamente assustadores, e com um vestido florido de alcinhas, comprido até os pés, agora suspenso e amarrado até a metade das coxas, para que não embolasse na corrente e nos desse um tombo histórico. Descendo a rua de casa, virando à esquerda e atravessando a ponte antiga, alçamos voo, meu filho e eu, numa bicicleta azul cheia de histórias, rangidos e magia.

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