16 de novembro de 2010

quebra-cabeça

Os quebra-cabeças que a gente costumava montar ou, no meu caso, tentar inutilmente montar, quando crianças, estão repaginados, de cara nova, com um upgrade fantástico graças à tecnologia que, de nova mesmo, não tem nada. A tecnologia é antiga, o preço é mais alto, o marketing, up-to-date, e a idéia, bem, a idéia é nova. E cruel para nós, adultos que, hoje, mal conseguimos montar aqueles cenários e bonequinhos do Lego (sim, Lego is back, e com força total). Então, eis a novidade: quebra-cabeças, agora, vêm em 3-D. Uau! Adquiri um, de 48 peças, com gravura da animação "Toy Story 3", da Disney-Pixar, pela bagatela de trinta reais. Estava em promoção. Achei que fosse um mimo ultra bacana para o meu filhote de três anos, já que ele, como todas as outras crianças do planeta, acredito, é fã do Buzz e do Woody. Dos outros personagens ele ainda não sabe o nome. Daí, inventa. E são os nomes mais loucos, criativos e incríveis que se possa imaginar.

Meu filho é como meu avô. Ele conhecia muitas árvores da mata, sabia o nome de todas aquelas madeiras, parecia mais um xamã da floresta para nós, seus pequenos e fiéis escudeiros-discípulos. Quando vovô não sabia o nome de uma determinada árvore, embora a reconhecesse e soubesse suas características, ele inventava um nome para ela. Lógico que não falava para a gente que estava inventando. Ele dizia um nome qualquer que lhe viesse à mente, tocava a madeira e, para nós, aquilo bastava. Uma árvore, um nome, um elo. Só anos depois, quando ficamos mais velhos, menos criativos, mais turrões e sem-graça, é que descobrimos que ele inventava alguns nomes. E daí? Os nomes que ele inventou continuam sendo usados na região até hoje. E garanto que, como os apelidos que meu filho inventa para os personagens cujos nomes reais ele desconhece, aqueles que meu avô inventou para as árvores estão muito mais vivos, porque têm cor e identidade próprias, estão intumescidos de criatividade e espírito e, por isso, florescem e dão frutos continuamente.

Mas, para um quebra-cabeças 3-D, haja criatividade, habilidade e visão macro da realidade. Espalhei as 48 peças no chão e meu filho ficou animadíssimo, tentando montar o puzzle. Confesso que, cinco minutos após olhar as peças miúdas "tremulando" na ilusão de óptica tridimensional, comecei a ficar meio tonta. Afinal, nasci ainda na década de 70, se bem que no finalzinho dela; o máximo, para mim, em termos de cognição  espacial, eram aquelas casinhas de madeira, com tijolinhos vermelhos, para empilhar uma sobre a outra. Meu filho foi guerreiro, praticamente um highlander. Tentou encaixar aquelas pecinhas psicodélicas por quarenta minutos enquanto eu, derrotada, humilhada, zonza e frustrada, já havia me jogado no sofá, amaldiçoando o infeliz que teve a idéia de complexificar algo complexo por natureza - o quebra-cabeças - adicionando o efeito 3-D em cada uma das peças. Dou a mão à palmatória. E pago cem contos de réis ao adulto da minha geração que conseguir montar o puzzle 3-D-mor dessa linha: nada menos que DUZENTAS peças. Com direito aos óculos, para, depois de montado, você conseguir praticamente "ver" o Woody galopando seu pangaré.

Quando se consegue finalmente encaixar a cabeça do Woody com seu chapéu, a imagem "se move", e a ilusão engana nossa retina e o centro do cérebro responsável pela decodificação visual. Ilusão. Mágica. Mas, então, eu movo a cabeça para a direita, depois para a esquerda, olho para o quebra-cabeças de longe, e o boneco me parece ter três olhos, uma boca à la Pablo Picasso, o chapéu meio que cai de lado, tem algo errado com essa imagem. "Tá certo, mamãe, é assim mesmo", meu filho garante. Mas não está. Eu desmonto as três peças que, arduamente, havíamos montado, negando-me a crer na ilusão, ou, simplesmente, não conseguindo ser enganada por ela, e o moleque fica zangado, falta me dar umas palmadas: "Mamãe, você não entende de quebra-cabeça. Deixa comigo". E assim o faço. Juntar peças em uma dimensão única já é complicado. Em três, então... 

Esse é o chato em crescer. Fora as obviedades da condição de ser adulto, tais como, contas para pagar, responsabilidades chatas, posar de correto, ético e exemplar para a sociedade, mais contas, não poder pintar o cabelo de azul e ir para o trabalho, ter hora para tudo (até para transar, valha-me Deus!), mais contas, enfim, o chato em crescer é que você perde a capacidade mágica de se permitir "iludir" pelo que é criativo, imoderado, poético e fora do comum. Meu filho ia encaixando aquelas peças e não via nada demais no fato de o Woody, aparentemente, ter três olhos. Meu avô inventava nomes para árvores e achava essa "botânica  particular" mais do que natural. Pablo Picasso pintava em não sei quantas dimensões, e também não via nada demais nisso. Artistas são crianças, nesse ponto. Poetas, também.

Acaba de me vir à mente a imagem de uma mãe, às voltas com as compras de supermercado, filas para o banco, trabalho para por em dia e um marido para vigiar, puxando seu filho pelo braço, apressada. "Vem, menino. Não fica olhando para o chão, que nem bobo!". A mãe é um adulto cheio de responsabilidades e praticidades da vida. O menino, com o bracinho dolorido pelo puxão da mãe, só está encantado, boquiaberto porque seus olhos de criança, olho do mundo, acabam de "capturar", no chão de cimento, uma imagem linda e única: um galhinho verde a brotar pela rachadura da calçada. Ele pergunta à mãe: "Será que ele vai virar uma árvore, mamãe?". Ela quase não escuta o filho. Pensa em qual marca de sabão em pó deve comprar essa semana. Mas o responde: "Árvore? Do que você está falando, Joaozinho? Vem, menino, que moleza!".

A gente cresce e vai ficando míope, acho. Desencantado. Ou, para seguir a vida, vai fechando os olhos em algumas ocasiões, colocando tapa-olhos e viseiras em outras, tampando ouvidos, emudecendo palavras e pensamentos, adultescendo e oxidando. A gente nasce, cresce, adultesce, desencanta, oxida e morre. E, nesse meio, breve tempo, perde a capacidade de se iludir. Perde essa capacidade ou se esquece dela. Às vezes, toupeiras cegas em que nos transformamos, deixamo-nos iludir pelo feio, pelo cruel, pelo avesso do mundo. Mas a mágica e a beleza da vida, um galhinho verde a brotar numa rachadura do calçamento, uma árvore com nome inventado, uma brisa carregada do perfume exótico da dama da noite ou o efeito tridimensional bacana de um quebra-cabeças, por esses a gente perde a capacidade de se iludir, ou melhor, de se encantar. E vai vivendo e fenecendo aos poucos, sem graça, nem poesia, nem óculos coloridos e 3-D para enxergar melhor, ou com mais alegria, a realidade chapada e cinza da vida.

3 comentários:

  1. Que belo! É difícil ler algo tão pleno quando se tem a mente tão moldada para um "Qual é a música?" que jamais se detém!

    ""Tá certo, mamãe, é assim mesmo", meu filho garante. Mas não está."

    Lembrei na hora deste bomgauchismo: "Cada um tem o seu ponto de vista. Encare a ilusão da sua ótica(...) Na visão da macrohistória nada gera um general, a visão do microscópio é o ópio do trivial(...) Sou cego, não nego, enxergo quando puder. Só vejo obscuro objeto, desejo indireto"

    Isso da visão dá pra tratados, né! Uma vez escrevi um daqueles posts trocadilhescos com isso, algo assim "Beauty LIES in the eye of the beholder". Vai saber, né! Está nos olhos? Mente nos olhos? Jaz nos olhos?

    Seria bom que pudéssemos ter essas inspirações todo dia, para podermos nos debruçar sobre o momento sem nos esquecermos que ele é tudo! O presente É o tempo todo, e o tempo todo um presente.

    Tá vou parar, se não vão dizer que estou postando na página alheia.

    Tenho aqui pro fim da semana um post em melomania, sobre o embotamento da visão poética pelo "pragmatismo" do cotidiano.

    Até!

    ResponderExcluir
  2. Rectius: "...,senão vão dizer", ou então me justifico pela elipse: "...,se não (paro) vão dizer", e aí muda a vírgula precedente em ponto e vírgula, ha!
    Paranoico vírgula! ha!

    ResponderExcluir
  3. Seus comentários são, no mínimo, um barato! E que digam o que quiserem! Como você disse, o momento presente não se chama assim à toa. É porque é dádiva, é dom, é presente. Dever (ou sustentáculo...?) nosso, seria, digo, é, enxergar cada um desses momentos e cavar inspiração, como Scarlett O'Hara a cravar as unhas na terra estéril em busca de alimento. Porque, nesse ponto de minha vida, a inspiração me alimenta, a escrita me sustenta, e comentários, como os seus e os de Milene, me revigoram.
    P.S.: Imagem não é nada. Ponto é vírgula e reticências são tudo!
    Até!

    ResponderExcluir