31 de janeiro de 2011

busca

Eu procuro a mim
no claro e no escuro.
Busco o tronco de mim
a partir de raízes que acredito serem minhas.
Sob o sol que escalda e cega
procuro os brotos e folhas de mim,
esse verdejar fragrante da aurora.
Nas torrentes que embrulham de chumbo o céu
saio à caça das flores de mim,
pétalas miúdas e tímidas à chuva,
que temo permitir que desabrochem
num eu desnudo, exposto em carnes de rude girassol.
Eu procuro as frutas de mim
cerne de sensualidade, humores e cor
onde habitam as sementes e o miolo de mim,
o âmbar ancestral que acolhe o que sou.
Eu busco a mim
na solidão da clausura
e na balbúrdia das praças públicas.
Eu busco a música de mim
quando todo o clamor que ouço é silêncio,
e a quietude de mim
no momento em que o menor ruído retumba.
Eu procuro os elos de mim,
correntes partidas e cadeados perdidos
em naufrágios distantes da costa.
Procuro os destroços de mim
que bóiam à deriva, sem farol a guiar
nem porto para aonde retornar.
Eu busco a leveza de mim
perdida no sótão da esperança
e nos porões da memória.
Arrasto-me com o peso de uma âncora,
fantasma que sou, acorrentado e ignorante
do poder do etéreo
frente à crueza dos grilhões.
Eu procuro a motivação de mim,
energia primal que desperta a mente
do torpor da rotina insípida
e faz do corpo matéria vivaz
em meio à massa estanque da resignação.
Busco os projetos de mim
filhos natimortos de sonhos enterrados,
primos moribundos de desejos latentes.
Nos trilhos paralelos da linha
procuro a rachadura indelével
onde meu trem descarrilou
e ao vento que varre o tempo e as estações
ouço um chamado distante que já não reconheço mais.
Eu revolvo a terra de mim
onde escarafuncho certezas outrora férteis
hoje um solo estéril de indagações.
Busco o mar aberto de mim
em que sol, sal, correntes e ondas
possam arrastar tijolos e destelhar o mundo
para que o rio plácido de mim
tenha para aonde fluir.
Eu procuro o mistério de mim
no cassino de almas onde a regra
é apostar aberto, para ganhar ou perder.
No salão de espelhos tortos onde me perco,
em meio ao eco cristalino de pensamentos
e passos trôpegos, minha caminhada solo,
eu busco a completude de mim,
para deixar de lado os ensaios vãos
de encontrar minha metade.
Eu busco a razão de mim
quando olhos, boca, coração e pulmões
são nada além de sentidos vaporosos,
sentimentos que prendo em frágeis gaiolas de gravetos
de onde até o mais arisco dos pássaros poderia escapar.
Eu procuro a coragem e a tenacidade de mim,
castelã por essência, soldado por opção,
entrincheirada em barricadas de medo e insegurança,
travando batalhas que não vejo como minhas.
Em cada passo que dou adiante
com o poente às costas,
eu procuro a sombra de mim que,
feito Peter Pan, tento costurar aos pés
para não perder meu reflexo negro,
que é companheiro, alterego e irmão. 
Eu procuro a mim,
a argila que moldou-me o ser,
destacada das formas e das mãos dos oleiros,
para que no barro úmido e cru de onde eu venho
possa contemplar a mim, sem lapidação.
Procuro a mim.
Busco-me mais do que vivo,
mais ainda do que vejo
e por lugares que nunca visitarei porque,
na caçada constante de mim,
talvez perca o balão dourado e displicente
que seria o passaporte para mim.

28 de janeiro de 2011

férias

teve reencontro, madrugadas varadas, ferida remexida
pirraça, andança sem fim, sombra de barraquinha
ruptura, topada, tombo, dor de barriga
e teve sol...

telefonema perdido, chamada esperada, mensagem trocada
feira de artesanato, picolé de tapioca, bala de coco
vitrines coloridas, guaraná, sacola pesada
e teve mar...

novela das oito, areia no lençol, broa de milho
foto revelada, pose destrambelhada, visita sem avisar
coca-cola gelada, sono das seis, violeiro a cantar "por brilho"
e teve céu azul...

ventania, chapéu de fita, ombros ardidos
confissão de derrotas, vitórias antigas, promessas renovadas
piada de quem já foi, fofoca de quem veio, o eu desconhecido
e teve gaivota...


teve corpo suado, corpo cansado, viagem comprida
menino perdido, menino encontrado, palmada doída
os anos distantes, contados nos dedos, realidade vivida
e teve tatuí...

choro de raiva, de sono, de angústia
saudade que fica, certeza da sorte, azar atribuído
risada escancarada, ciúme velado, secreta balbúrdia
e teve brisa...

casa de pernas pro ar, um cachorro invocado, sete bichanos
nova ilusão de amor, pastel pra dois, recomeço cuidadoso
filho dormente, nora carente, muita manga pra pouco pano
e teve sombra...

três gerações, esperanças acesas, desejos perenes
trânsito fluido, guarita aberta, fúria de mar em almas juvenis
gargalhada abafada, cumplicidade de vilões, compromisso de herói
e teve Cris...

pra Crica, a Cris, minha meia irmã inteira.

25 de janeiro de 2011

marolas

inconsciente publicável
fechado
pra balanço
expresso inestimável
mar(a)rejado
de remanso...

23 de janeiro de 2011

arbitrário

livre arbítrio é o agridoce tempero do homem
essa liberdade de se sentar à beira da encruzilhada
olhar para uma estrada, embevecer-se com outra
e poder escolher que rumo tomar numa empreitada

liberdade é presente, vício e também escravidão
quando o espaço exíguo de uma vida
é preenchido por possibilidades inúmeras
quando escolher torna-se uma agonia desmedida

em optar há sempre um que de zarpar pro mar
e nesse navegar solitário, de embargo supremo
observar o vento lamber as velas e salgá-las de lágrimas
para no susto do último momento tomar pra si os remos


livre arbítrio poético, em que escolha rima com hedonismo
só existe na cartola do mágico charlatão e na francesa pronúncia
porque ser livre pra escolher é determinar rumos, abrir guardas, mas cerrar janelas
para alocar no mesmo balaio o mérito da liberdade e o demérito da renúncia

por isso há os que preferem seu destino traçado de antemão
para que não se tornem humanos condenados à liberdade
responsáveis por suas escolhas, grandiosos como deuses
mas apequenados pela renúncia ressentida da outra extremidade

pois para cada escolha há uma renúncia na devida proporção
e na justa medida, refletida do outro lado do espelho do ser
onde se vê o norte da escolha a tomar e o sul da renúncia a amargar
o céu da boca do homem livre, palato estrelado já a fenecer

22 de janeiro de 2011

humano

humano é tentar, atentar e gozar
tesar, escalar e sonhar
despencar, murchar, acordar
e dormir até a lua com o sol rivalizar

é humano gargalhar e inundar-se de lágrimas
o sal do mar infinito que a mim e a ti habita
humano é encher-se de orgulho e mágoa
pra bufar devagar e expelir o veneno que te agita

humano é ser filho e pai e mãe e genro
e não saber exatamente o que se é, para aonde vais
a quem pertence e a que deus servir
e perder-se em dédalos de onde tua fé extrais


é humano olhar para o meio dia do céu
e assombrar-se por não ver estrelas ali
sentir-se miúdo em meio a graúdos
que desconhecem o teu tupi-guarani

humano é ansiar pela solidão e, ao lado dela
perceber que sozinho não estás completo
mas que é num voo solo que entras no mundo
e nu, cego e só é que finalizarás teu trajeto

é humano esse teu medo da morte
da partida dos teus e da tua
porque não compreendes a finitude das coisas
que em tua alma imensurável nem a fé atenua

humano é a montanha, o mar e o verde que te cercam
e o perdão que ofertas mesmo a teu pior tirano
é humano tudo o que a tua vida orienta
pois não sendo-humano, és apenas mero marciano


para Lu, a mãe de Cindy e de todos os peludos abandonados, uma surpresa humana inesquecível.

20 de janeiro de 2011

moda de viola

eu jazz, tu blues e ele samba
mas na verdade o que todos fazemos
além de desejar, errar e acertar
é levar a vida num rock antigo
pra suar o peito de quem vai dançar

nós valsamos para que eles observem
e no salão lotado de manequins espectrais
fazemos da salsa e do mambo uma doutrina
juntando ao molejo brejeiro e sequioso dos amantes
os passos em campos de jasmim das bailarinas

eu, chá, chá, chá, tu, dois pra cá
"olhos nos olhos, quero ver o que você faz"
ensina-me teu groove jovial, que te ensino meu secreto portento 
sem pisar em meus calos, embaraços do passado
nem em teu calcanhar, aquiles do abismo do tempo


quando na chuva, eu frevo, tu sombrinhas
e sem perder o compasso vemos amainar a garoa
que vai-se embora serena, como de lá veio, pacata
sem que nem eu nem tu percebêssemos
como o improviso sutil no tema de uma sonata

para os coices da vida, tombos doloridos de alazões
eu rebolo e tu lambadas, para me defender das estátuas
endurecidas e nuas, que não sabem rodopiar
e à tardinha, exaustos do baile, nós sentamos à beira da estrada
que é comprida feito o horizonte, mas tem a luz do luar

eu jazz, tu blues e ele samba
mas na verdade, o segredo que só sabe quem dança
no silêncio da noite e em meio ao burburinho do dia
quando o forró da vida é tão cruel que fogem os bailarinos
é que nós, juntos, somos moda de viola, pura maestria

desdizeres (parte 2)

"Homem com a faca e o queijo na mão, passa manteiga no pão".

santo recomendado não faz milagre, mas santo nada recomendado faz ménage (milene portela @ http://papelpequeno.blogspot.com);
vingança é um prato que não se come; enfia-se goela abaixo da vítima;
para solteiro(as), à noite todos os (as) gatos(as), e nem tão gatos(as), são pardos;
depois da tormenta, sempre vem uma chuvinha chata de março;
de grão em grão a galinha se cansa de ciscar;
quem cedo madruga, fica com sono o resto do dia;
quem ri por último é porque não entende a piada;
quem tem telhado de vidro pode espiar o vizinho e saber a hora certa de jogar a pedra. Pela janela.
quem desdenha é porque a oferta não vai valer a compra;
os últimos continuarão sendo os últimos, a não ser que furem a fila;
nem tudo o que reluz é efeito do speed da rave de semana passada;
um é pouco, dois é ótimo, três dá briga entre a esposa e a amante;
diga-me com quem andas e te direi se teu facebook terá muitas notificações;
para a maior parte das panelas, não há tampas, só papel laminado.
panela velha é que faz comida queimada e grudada nos fundos;
amigos, amigos; amantes à parte;
beleza põe mesa, enche os olhos e a braguilha, estende o lençol, faz a cama...
errar uma vez é humanamente aceitável; duas, condenável; três, inadmissível;
roupa suja se lava na casa dos pais, na lavanderia, na dona Luíza ou deixa acumular um tempo;
querer é querer; sonhar é querer; poder é querer e poder;
quem tem boca vai a uma balada e dá uns beijos à francesa;
quem é vivo sempre dá umas sumidas, não liga e, depois, se finge de desentendido;
dos males, nenhum deles;
quem ama o feio é chacota de todo mundo na ceia de Natal;
quem canta seus vizinhos espanta;
quem cala finge que compreende;
quem conta um conto aumenta umas cem páginas;
pior cego é o míope, que pega os ônibus da vida errados;
pau que nasce torto às vezes vira bela árvore;
não deixe para outra vida o que você já deveria ter feito nesta;
há sempre um chinelo velho para um pé doente, só que perdido pela casa, onde ninguém encontra;
filho da onça nem sempre nasce pintado; pode ter sido cruza com leopardo...
caiu na rede, pode ser peixe, lata de refrigerante, saquinho de chips, vídeo caseiro da vizinha com o namorado...
entre marido e mulher não se mete nada.

19 de janeiro de 2011

lua

o ideal é que eu fosse sol
e brilhasse das seis da alvorada às sete e meia do poente
em dias úteis, domingos e feriados inclusos
horário de verão e de inverno, e com raios rutilantes
que vazassem por nuvens de amargura e pelo pó das saudades
mas a tristeza de todas as estrelas
(e o sol é uma delas, só que grande, pesado e cego)
é que se apagam com o tempo
demora muito, dizem os astrônomos
mas chega o dia em que se extinguem no firmamento
e essa é a tristeza mais bela que se possa conceber porque
mesmo extintas, as estrelas ainda emanam seu brilho louco
e lindo e hipnótico, lá dos confins do cosmo, o mesmo brilho que
o teu mais antigo ancestral e o meu viram quando
apaixonados, subiram os olhos para o céu e,
ignorantes do fato, nem podiam imaginar que
uma daquelas namoradas coladas
naquele teto de veludo negro e silente
já poderia há tempos ter partido deste mundo...


ah, sim, o ideal mesmo é que eu fosse estrela
para irradiar, encantar e apaixonar a quem espiasse
mesmo à distância, mesmo quando eu estivesse extinta
(ou momentaneamente apagada...)
mas o fato é que sou lua, cíclica e senhora de uma fase oculta
que desconheço e, incansável, procuro definir, delimitar, exibir 
e, para quem observa a lua de longe, em sua beleza de metal líquido
a imagem é tudo, e a sede, a fome, o desejo, a paixão e a razão, nada
por isso a lua assusta quando vai sumindo no manto do céu,
até restar de sua abundância cheia e luminosa de prata nada além
de um halo invisível, pálido e indistinto, cercado de nevoeiro.
Curioso disso mesmo é que, quando nada se vê de mim, lua morta no céu,
chamo-me Nova, porque, introspectiva e distante do sol, apagada
e fria, hei de me renovar e fazer-me nova, como fazemo-nos todos
entretanto, pupa pronta para abandonar o casulo lunar, volto a sair de dentro
de mim mesma em alguns dias; vai-se embora o medo do sol, da vida e
do mundo e, crescente, desnudo-me tímida no firmamento entre outros, apenas
uma ponta iluminada enquanto o resto de mim ainda está escuro e nostálgico.
Mas é quando cresço que estou risonha no céu, sou a meia-lua das feiticeiras
exuberantes, o sorriso do gato de Alice, o quarto-crescente dos alquimistas.
Então, no auge de mim, quando uivam os lobos, as paixões e as certezas,
estou cheia a brilhar, jorrando prata sobre os amantes, agregando crianças
na praça e abrindo damas-da-noite nos jardins. Se não posso ser sol, era lua
cheia que eu queria ser, todas as noites, para liqüefazer em brilho
o melhor de mim que não posso expor a todo momento.
E por tal impossibilidade é que volto a minguar, e apenas metade de mim
fica clara, feliz e otimista, iluminando o futuro, enquanto a outra, distante do
sol, ainda se mantém enraizada ao saudosismo, à poeira do passado e
inevitavelmente, ao brilho das estrelas que já se extinguiram há muito.

pro amigo Matheus, que me  "presenteou" com a inspiração para essa poesia. 

18 de janeiro de 2011

desdizeres (parte 1)


a quem não tem cão é mais prudente que não cace;
melhor pássaro algum na mão do que uma ave muda;
quem muito espera nada alcança;
a primeira impressão é a que mais facilmente se esquece;
a fruta proibida normalmente é a que está podre;
agua mole em pedra dura, tanto bate que desanima;
águas passadas movem moinhos antigos e ainda enferrujam novos;
a união faz a desunião;
a cavalo dado olham-se dentes, patas, cascos, sela...;
devagar não se vai a lugar algum, ou só até a esquina;
há males que vêm para matar direto;
manda quem pode, desobedece quem tem vontade de mandar também;
quem casa, quer escritório de advocacia e testemunhas;
vaso ruim quebra e os cacos ainda arrancam-nos pedaços;
um dia é da caça e o outro, provavelmente também;
canja de galinha faz mal a quem sofre de síndrome do cólon irritável;
em terra de cego quem tem um olho é o oftalmologista de lá.

dos verbos

eu sonho
tu ages
ele joga
nós esperamos
vós dançais
eles prosseguem

que eu aja
que tu sonhes
que ele dance
que nós esperemos
que vós prosseguis
que eles joguem

16 de janeiro de 2011

jogo de azar

o azar e a sorte são irmãos siameses
amalgamados de tão forma em cativeiro 
que mal se pode distingui-los no desconhecido
dos dias que devoram enamorados por inteiro

caim e abel, anjos caídos
as faces de espelhos polidos e planos
dispostos de frente um para o outro
de modo a repetir infinitos enganos

o azar da sorte reside no "sempre vou te amar"
e anda de mãos dadas com o "nunca amarei ninguém" a sorte do azar
assim, imunes entre si, é nos apaixonados
que os irmãos vem sua frustração descontar


mas os tiranos esquecem, reles mortais
que os deuses os uniram pelos pés
de maneira que não podem caminhar sozinhos
sem sofrer os desmandos das marés

porque o mar, os deuses e o amor jogam juntos
e com eles vão-se a sorte e o azar
uma sombra indistinta na porteira do destino
este que chega disfarçado de brisa a soprar...

pfff...

e com o vento sem cheiro nem cor
abre-se a porta do cassino, muda a maré, vira-se o jogo dos amantes
o azar se veste de sorte e esta tira o dia para dançar
e na surpresa boa de um dia, a aposta volta a ficar empolgante

14 de janeiro de 2011

Centésima

Esta é a viagem número cem do Expresso. Para comemorar, resolvi mandar a modéstia às favas e postar um presente que a querida Ivy me escreveu, lá em seu trem, o Sujeito Simples, Sujeito Composto. Achei mais do que adequada para essa ocasião uma poesia que, naturalmente, me deixou "cem" palavras. Mais uma vez, obrigada, "senhorita brisa". E obrigada a você, leitor e amigo, que sempre me acompanha aqui, em cada viagem (in)consciente desse Expresso. 

A Roberta da Enseada

O nosso encontrar foi meio gritado.
Não, foi gritado.
Ela gritou primeiro, nem era comigo.
Mas eu ouvi.
Tem gente que entra assim pela porta:
Com o que tem, do jeito que está.
A Roberta da Enseada
Reclama de ser rodriguiana,
Mas eu digo a ela:
Que mal tem celebrar o mestre
No seu cotidiano?
Abraça o cenário, as personagens.
O nosso desenrolar também foi gritado.
Despeja conteúdo, despeja pela voz,
Despeja pela areia, despeja pela cerveja quente.
Quem sabe de si descobre isso quando sabe de alguém
Como parte do que é.
O mar sabe que ali esteve um encontro gritado.
Eu quis que ela continuasse gritando com o resto
Como gritou comigo: arrombo de si, no que se faz de melhor.
Quis que ela continuasse ... sendo aquele mundo de grito
Pros outros mundos que se aproximavam,
Que não eram a beira da praia,
Que eram a beira da não loucura que não a pertence.
A ela só a loucura rodriguiana, aquela teatral,
A ela só a digna de ser encenada.

por Ivy Gobety
em http://sujeitosimplesujeitocomposto.blogspot.com

luto?


Espanta-me constatar que a idéia de "luto" na Região Serrana esteja associada ao cancelamento de reservas em hotéis de luxo e ao conseqüente marasmo do turismo local. O mesmo aconteceu no ano passado em Angra dos Reis e em Ilha Grande, quando a tragédia de semelhantes proporções inundou as emissoras de televisão com imagens ao vivo de desabamentos e, simultaneamente, da queda das ações no mercado imobiliário. Entretanto, tal declínio representou uma oportunidade de ouro para a classe C, normalmente tão distante das ilhas paradisíacas de Angra. Em função dos desabamentos e das mortes, nunca fora tão barato, conveniente e atrativo viajar e se hospedar naqueles locais, mesmo que o nouveau touriste trouxesse de recordação a imagem de equipes de resgate como fundo em suas fotografias com os filhos, a sogra, a nora e o totó. 

O cenário não vai ser diferente com Petrópolis, Teresópolis, Friburgo e redondezas. Basta ler a notícia anexada ao link no topo deste post. Se os hotéis e a economia de lazer perdem por um lado, as construtoras e o mercado imobiliário já se adaptam rapidamente às novas tendências apocalípticas. Se você sempre sonhou morar na cidade onde D. Pedro II passava amenos verões, mas nunca teve bala na agulha (leia-se "poder aquisitivo") para tanto, esse é o seu momento. Claro, o cheiro de entulho e a atmosfera irreparável de perda, em todos os sentidos, dos moradores, pode incomodá-lo a princípio. Mas, em todo caso, os fins justificam os meios e, afinal, nada como ter uma grande propriedade na "cidade imperial". Em outras palavras, tudo, absolutamente tudo vale a pena quando a alma é extremamente pequena.

Sempre amei Ilha Grande e a Região Serrana e os poucos seres humanos que me conhecem e me amam de fato sabem que de imparcial e Pilatos eu não tenho nem um único fio de cabelo. Na ocasião da tragédia na Ilha, eu poderia ter me hospedado no lugar que mais amo no Estado do Rio por uns quinze dias, na melhor época do ano - o sol já voltava a brilhar, lembro-me bem - e pagar pouco mais de cem reais por isso. Morar em Petrópolis, lecionar em uma das escolas em estilo neo-clássico de lá e caminhar pelas ruas salpicadas de azaléias sempre foi um sonho meu. Se vendesse meu apartamento, poderia comprar um terreno e talvez, quem sabe, ainda me sobrassem uns trocados para o pão e o café da semana.

Entretanto, acredito em certos compromissos e valores, laços que tenho mais comigo mesma do que com o mundo. Não pude estar na Ilha para dar auxílio direto aos desabrigados, mas não seria capaz de veranear em suas praias enquanto o povo observava suas casas em escombros. Não sou filiada à Cruz Vermelha, de maneira que não estarei em Petrópolis para resgatar um órfão da enchente, mas não me aproveitaria do estado de emergência pública para comprar um terreno baldio na cidade dos meus sonhos. Este é o compromisso que tenho não com quem perdeu suas vidas, seus parentes e suas casas, mas comigo mesma, para que eu não perca minha própria identidade e rumo.

Ainda em tempo: já estou bem crescida para saber que o capitalismo faz as engrenagens do mundo girar. Não é minha intenção aqui promover o apedrejamento público de donos de hotéis e imobiliárias. A mim, eles me parecem mais do que corretos; estão fazendo seu trabalho, vendendo, comprando margarina sem gordura trans, colocando a comida na mesa, alimentando os filhos e os cachorros, fazendo o mundo girar. Errada estou eu, que mantenho um blog e não ganho um centavo por isso. O que me surpreende é o título da matéria: "Região Serrana Está de Luto". Oras, se é para falar de mercado, queda nas vendas, hotéis vazios e o diabo econômico a quatro, qual a razão de se mencionar luto? Luto de quem? Luto pelo que? Alguém aí "desce" uma Itaipava gelada porque essa está difícil de engolir.

gente

adoro pessoas, mais até do que os bichos
gente grande e pequena, amarela e azul
que dorme de dia e trabalha à noite
e junta as economias pra viajar pro sul

gosto de gente que ri e amo quem chora
porque a lágrima é o tempero da vida do poeta
e gente que desobedece às regras do jogo
é a espécie que mais facilmente me completa

desajuizados, insanos e febris me fascinam
pois são gente como você e eu, apenas com mais coragem
andarilhos que percorrem trilhas de formigas
e se expõem ao mundo sem um traço de maquilagem

crianças e velhos, gente diferente mas igual entre si
a cara e a coroa da mesma moeda humana
sorrisos em gengivas rosadas, débeis e verdadeiros
o princípio e o final de cada vida cigana


adoro pessoas que adoram a deus e também os descrentes
porque para mim fiel, infiel e deus é tudo gente
girando num ciclo de semente, galho, flor e fruto
do qual cada um de nós, deuses, é onisciente

mulheres que pensam como homens
e homens que sentem como mulheres
esses são gente por quem me apaixono
pois escapam de rígidos e tediosos caracteres

gente que fala, gente que cala
heróis por vocação, líderes acidentais
todos gente que sua, que ama e que odeia
gente rara ou comum, todos desiguais

adoro pessoas pelo grotesco natural que são
e por optarem pelo belo, pelo único e pelo comovente
mas há também pessoas que nem reconheço como tal
espectros que não fazem mais do que fugir de gente

13 de janeiro de 2011

trens


o trem passou pela estação sem parar
e eu nem estava lá para perdê-lo
acreditava que ele só partiria em viagem
quando estivéssemos juntos no mar
mas seu apito sonoro, qual bafejo distante
um adeus metálico, a me rasgar os sonhos
lembrou-me que trens, assim como rios
não atracam no mar, pois são viajantes

12 de janeiro de 2011

triângulo

pode-se fugir de quase tudo no mundo
embora escapar e postergar soluções
não seja aconselhável o tempo todo 
se você quiser ter crédito na praça

pode-se fugir de compromissos sociais tediosos
como jantares com os amigos da empresa
e o karaokê com seus primos do interior
até do natal, do ano-bom e do carnaval dá pra escapar

pode-se fugir de idéias obsessivas
que consomem a mente como a noite engole o dia
pois todo bom ser humano que se preza
tem um sótão trancado com seus fantasmas ocasionais

pode-se fugir do tempo e das marcas que ele traz
comendo grãos, peixe cru e outras iguarias do gênero
e correndo quilômetros sem sair do lugar
além de hipertrofiar músculos e embotar pensamentos


pode-se fugir até das mais honrosas responsabilidades
e comprar uma passagem só de ida pra Sibéria
onde o viajante há de se imobilizar num cubo de gelo flutuante
pra morar à deriva da vida, numa eterna pilhéria

pode-se fugir de si mesmo, ápice do escapismo
fechando as janelas para o sol, tampando os ouvidos para o dia
dá até pra cobrir os olhos, selar os lábios com breu
e deixar de ser humano pra virar um sonho de confeitaria

pode-se fugir dos pais, dos filhos e do entardecer
dá pra escapar ao chamado da guerra e nunca virar soldado
ou então fugir dos pedidos de paz e abraçar batalhas sem fim
mas não é tão fácil escapar do amor sob fogo cruzado

gárgula

os planos, a lógica, a determinação / deles
os horários, a agenda, o calendário / dos outros
as molduras, os despertadores, os discursos / coletivos
ah, como tudo isso te dá sono...

mas não é um sono para que durmas
nem para que relaxes do cansaço da lida
ou para que recuperes o fôlego depois do amor
é mais um sono de trevas, para que adormeças em vida

com a tua mente embotada e a visão enevoada
acabam te transformando num personagem indistinto
onde interpretas um enredo que não é o teu
e, na vereda sorumbática do alheio, tua história se perde num labirinto

dédalos para ti, projetos e alvos para eles
que em posse de palheta, pincéis e giz
cromatizam o teu mundo como pintores cegos e autoritários
à revelia das cores que há muito tonalizam tuas retinas


nada há de mais temeroso do que dormir de olhos abertos
essa labilidade morosa, comprida feito sombra de fim de tarde
que devora teus sonhos, tua identidade e razão
até sobrar nada além da fábula que alguém escreveu para ti

até a moldura do quadro que não pintaste
encerrar uma vida inteira entre quatro varetas rígidas
até as cores que escolheram para adornar o teu sorriso
se tornarem de fato os tons incrustados do teu pranto

porque é na clareira borrada que teu choro abre na face
que percebes, ainda anestesiado de letargia, mudo e alquebrado  
que passaras a vida dormindo, na forma de um pequeno gárgula
antes vivo, hoje petrificado, inofensivo e coberto de limo e pássaros...

... que tu, estátua, observas voar para o horizonte. Apenas até aonde teus olhos baços podem alcançar.

(a)temporal

habitam-me nuvens gordas e baixas, um mil-folhas de cinza
cumulus prenhes de tempestades e vendavais
que tomam meu silêncio de assalto às trovoadas
e imploram pelo pranto torrencial das enchentes

arrebatam-me as insanas chuvas de verão
a iluminar os céus escuros da memória, porões do ser
com relâmpagos que rasgam o tempo feito chicotes
e expõem carnes, desnudam pensamentos

controlam-me a fúria das marés e a loucura das ondas
um oceano inteiro que meu infinito contém
mas escapam-me pelos olhos as ressacas do mar
que engole galés, as naus incautas do inconsciente


sobrevive em mim o contraste triste de cores e sombras
que tingem o horizonte logo depois do temporal
pinceladas vãs, por onde o sol morteiro tenta irradiar
a timidez branda dos raios mais insistentes

reinam em mim os ventos mais retumbantes
soberanos que destelham castelos e varrem paixões
mas que, exaustos da luta, bafejam no ar o perfume
vaporoso, cândido e fresco das manhãs

afloram de mim o calor e a sede dos desertos
mas também o frio glacial da solidão e da guerra
pois habitam-me continentes inteiros, mil estações
que governam o vasto de mim, furacão que o corpo encerra   

9 de janeiro de 2011

crisálida

o sol brilha, escaldante e fluorescente lá fora
mas dentro do casulo, onde a pupa espera pela mutação
os raios fulgurantes não penetram

a crisálida resiste, insistente
e se prende à casca, do idêntico modo
como o caranguejo insiste em não rumar para o norte

mas o sol vai ficando mais rutilante
a medida que o dia ocupa sua majestade
e o pedacinho de lua que havia, volta a se esconder

e escondem-se todos, em retroalimentação
a lua, do sol, o presente, do futuro
e a noite, do dia, como a pupa, do calor

e, ainda assim, a redoma da vida que nos protege e cega
sabe que não se pode esconder do sol nem da chuva pra sempre
e a natureza entra-nos alma e consciência adentro, pra verdejar

nascem-nos brotos virgens na casca
flores nas pontas dos galhos cinza e retorcidos
e frutos polpudos e aromáticos no cerne do corpo

então a luz entra pela janela e cega-nos
pequenas toupeiras assustadas e prenhes de auto-comiseração
defendendo-se da vida, da trasmutação e da felicidade

mas, em seu tempo, vão-se embora o temor pusilânime
a insegurança e a mania de viver na aurélia
e a borboleta, aprendendo a voar e se afeiçoando às próprias cores...

flap, flap, flap...

... sai ao sol do meio-dia, a ganhar o mundo.

8 de janeiro de 2011

noite estrelada

quando o véu da noite veio cobrir o firmamento
olhava para a lua, um arco crescente delgado
ainda difuso no colorido das nuvens
e pensava se ele olharia para aquele mesmo céu

o negrume ia devorando o dia, devagar
para dar morada ao brilho amarelado de vênus
que se finge de estrela só para enfeitiçar os amantes
mas estaria ele com os olhos voltados para os astros?

a cantoria das cigarras e dos primeiros grilos
preencheu o vazio entre ela e o mundo
e o cheiro da noite que inspirou com vigor
pareceu trazê-lo para mais perto, como o faria um telescópio

o verde das árvores feneceu com o adeus do sol
e elas pareceram ainda mais vivas e cúmplices agora
negras e silentes contra a nesga azul-escuro do crepúsculo
e em algum lugar, a anos dali, ele olharia para a lua

talvez à beira do rio, dono de um correr manso
aspirando a terra molhada pela última chuva
ouvindo outros grilos, quiçá uma cigarra
e sorrindo à visão de um pirilampo solitário

ajeitaria os cabelos, cruzaria os braços
e ficaria ali por alguns segundos, a ver o céu
que era o mesmo céu que ela sorvia com o olhar
e talvez a infinitude do cosmo os fizesse sentir menos distantes

porque tudo é centesimal diante do firmamento 
e passageiro quando comparado com as estrelas
e não há dor nem saudade que perdurem
quando há estrelas no céu e cantoria de cigarras

"A Noite Estrelada", Vincent van Gogh

7 de janeiro de 2011

pipi

a felicidade é um riscar de fósforo
chama que se consome inteira em segundos
e deixa na memória a imagem da luz e do calor
difusos, iridescentes e breves


a gente sabe disso desde criança
quando o pai brinca de cavalinho na sala
e a mãe conta uma história para dormir
prazeres intensos, incomparáveis e breves


a gente sabe disso desde adolescente
quando o coração bate agitado no peito
e parece parar por causa do primeiro amor
inocente, único e breve


a felicidade é breve, como é breve a vida
e, adultos confusos e cegos que nos tornamos
esquecemos que o fugaz nos escapa ao controle
que é ilusório, obtuso e efêmero




tudo isso a gente sente, intui e sabe de cor
desde a primeira vez em que a felicidade pousa no ombro
feito borboleta colorida, bolha de sabão
leves, ligeiras e breves


cadê? voou! cadê? estourou...
porque tudo o que é lindo, é breve
e a beleza que mora num quarto de hora
é rara, necessária e finita


como a pétala da dama da noite
e o aroma doce que ela exala no quintal
como o laranja psicodélico do crepúsculo
que os pintores e fotógrafos teimam em capturar


disso tudo eu sempre soube, nunca deixei de acreditar
mas só me dei conta da simplicidade da alegria essa noite
quando vi meu filho acordar, acender a luz do lavabo
fazer pipi sozinho e voltar a dormir


tudo isso muito breve
muito simples e, no entanto, inesquecível
um momento fugidio e unico, talhado na memória 
só pra fazer uma mãe eternamente feliz

6 de janeiro de 2011

presente de Yemanjá


"a melancolia já não me apela mais, já não me seduzem dias só de chuva. acordo cedo. a melancolia já não me coloca mais conversas. e no azul claro já não perco mais o olhar em lágrimas. nem em álbum de fotografia me procuro mais. vela vermelha, incenso de canela, batom de morango. nostalgia não tem cor de aurora. e a melancolia não me dobra mais. casacos antigos e dizeres de Byron, toques de flauta a me encobrir. não. o dia tem cor de fogo, e quer se criar. a melancolia já não me costura mais em fios de retroceder. botas de marchar, música de pular, cantos de encontrar: são os tons de não lamentar. a melancolia já me é feia e nem digna de porta-retrato. não me emolduro mais nela ou imito suas dores no meu sentir. natural, caminhante, contemporâneo, aceso. flor de laranjeira pro dia começar." 

Essa pérola é de Ivy Gobeti, um presente que o mar trouxe para mim, como uma mensagem antiga numa garrafa, náufrago que eu me encontrava no momento em que a conheci. Essa é uma das minhas favoritas, e já se tornou uma espécie de oração matinal, que repito para acreditar, para fazer as palavras enraizarem-me alma a dentro através dos olhos. Mas essa leonina intrépida, poison ivy de língua ferina, olhos atentos e estatelados para o mundo e alma contestadora, tem muitos outros tesouros que ela oferta, de lambuja, para o mundo.

Menina-Ivy, que nasceu poesia, vive através da poesia e vai transcender pela poesia, é a dose de realidade de que todos precisamos para voltar ao centro, um morde-assopra gostoso que ela pratica com os olhos de âmbar rasgados pousados no rosto da gente. Estar perto dessa moça é sentir as moléculas se agitar ao seu redor e o espaço-tempo se dobrar pela vontade férrea dela de mudar o mundo, abrir a própria mente, queimar o cosmo e, ultra-leve, ser soprada pela brisa. As palavras de Ivy podem ser duras, e são, mas ela também age com uma doçura inacreditável quando quer.

Quando abri meus ouvidos e o meu espírito meio oco, meio anestesiado para Ivy, cheguei à conclusão óbvia de que eu seria alguém tremendamente infeliz se passasse por essa vida sem conhecer alguém como ela, sem rir e chorar com um ser humano tão forte, e ao mesmo tempo tão frágil, quanto essa garota pequena, de cabelos tingidos de fogo e gargalhada sonora. A capacidade de regeneração de Ivy é deslumbrante; essa menina é um fígado. E o carisma que ela exala de cada poro, irresistível.

Isso tudo eu intuía antes de saber que Ivy, além de ser chocolate com surpresa dentro, dona de uma autenticidade e uma coragem do tamanho dos estados de São Paulo, Rio de Janeiro e Paraná juntos, é também uma escritora inata, que rabisca os versos que a gente sempre quis fazer, mas nunca conseguiu colocar no papel, e arranca lágrimas dos olhos mais cegos e embrutecidos com a poesia latente, gema preciosa que ela produz. Eu sempre acreditei que gente assim como Ivy, que escreve aos borbotões e dá luz às palavras mais certas na hora mais incerta para o autor e mais perfeita para o leitor, fosse metade escritor e metade xamã, curandeiro de almas. Agora, tenho certeza disso.

Para terminar, mais uma pérola dessa erva que, de venenosa mesmo, não tem nada. Ivy está mais para flor de cajá, sol das cinco da tarde, picolé de açaí, sombra fresca e samba de raiz. A paulista branca mais preta de Maringá entrou na minha vida na raça, no grito, com confidências, conselhos e lições que eu nunca vou esquecer. Se você abrir as porteiras da sua alma um centímetro que seja, ela também vai entrar em sua vida, como um raio de sol descortinando auto-piedade, negação e mesquinhez. Pode até doer, em princípio. Mas é de um sentimento de libertação único. 

"Dos dias em que sonhava
Não sinto falta alguma,
Dos dias em que sonhava,
Eu, logo eu, a sonhadora
De nome e sobrenome,
Não me afeta sequer mera saudade,
Não me expressa sequer pouco traço,
Dos meus sonhos presos já não
Me constituo, já nem os prego
A mim nos meus sonos ou despertares.
Já não anuncio o dia em horas de esperar,
Já não espero as noites em horas de iludir.
Dos sonhos fica só a alma de sonhar,
Do longe se traz presente aos dias de realizar.
Dos sonhos já não conheço as promessas,
Que das pernas agora é só o prosseguir.
Nasce dos olhos só o olhar,
Nasce das mãos só o tocar.
Dos dias de sonhar não se faz nenhuma saudade,
Que de tudo que sempre amei sonhar,
E de tudo que sempre me quis em cantar,
Prefiro de nós não mais o querer,
Mas o fazer infinito que vem da chance de nossa idade."

infância



nunca acreditei que a colher lambida
fosse capaz de azedar o doce
nem que beber do copo de alguém
entregasse seus segredos


não acho que palitar os dentes depois do almoço
seja a maior gafe do mundo
nem que comer frango com as mãos
choque a burguesia de fato


minhas mochilas nunca foram da moda
e meus tênis eram de lona
quando as meninas se sentavam comportadas
era a mim que as professoras repreendiam


jamais ninei meus ursinhos
nem colecionava barbies
minha verdadeira especialidade
era brincar de escolinha com as bonecas


nas enchentes na fazenda
ficava entediada com a sessão da tarde
e na companhia da criançada da escolinha
me esbaldava com as poças de lama


nunca dancei ballet nem fiz natação
e se pudesse voltar no tempo
ficaria de fora dos dois
só para aprender capoeira


eu achava que me casaria com o superman
e chorei quando ele perdeu para o apocalipse
hoje sei que o clark não existe
mas ainda acredito em mocinhos e vilões


meu pai não me deixava comer cheetos
nem tomar sacolé da esquina
o que não pode ter sido uma boa decisão
porque hoje não resisto a nenhum deles


muita coisa mudou de lá pra cá
minhas pernas espicharam, meu cabelo escureceu
e eu virei um adulto tuberoso e aborrecido
mas ainda lambo a colher do doce

(des)toada


eu, que sempre fui tieti de Chico
ouvindo suas profecias e lamentos em muitas vozes
a ponto de beber um cale-se de vinho na ceia
deveria saber que um retrato em branco e preto
raramente fica apenas no soneto

5 de janeiro de 2011

enseada


caminhava pela areia lisa e sem pedras da praia
e firmava o olhar no horizonte a sua frente
morada do sol, a se esconder atrás do morro de pedras
fazendo sombras compridas onde as ondas vinham quebrar

os dela eram tamancos de madeira do verão de outrora
mas seus pés segiam nus, num andar cadenciado
marcado pelo bater constante das sandálias
que lhe pendiam displicentes das mãos morenas

a brisa soprava forte em seus cabelos
deixando em desalinho o penteado, o vestido
mas também a sua mente que, distante
vagueava à lembrança de uma promessa de outro carnaval

clac-clac-clac-clac...

ela deveria ser a unica moça sozinha na enseada
a marchar em linha reta, em direção ao poente
com os olhos fixos na espuma que lhe lambia os pés
e o peito oco, ressoando uma canção de amor

clac-clac-clac-clac...

os pulmões ela enchia da maresia úmida e salgada
e levantava o rosto para o céu, para observar as garças 
que, na maré vazante e com o sol baixo no horizonte
rasgavam a água num vôo rasante para pescar

o sorriso ela ofertava a crianças e casais
e as mãos livres ela batucava ao longo do corpo
a fingir de percussão e harpa
num dueto que apenas a sua alma ouvia

não deixava pegadas nem trilha
pois as ondas logo vinham beber em seus rastros
e fazer da presença dela naquele porto uma ausência
como o barco à deriva, inimigo do cais

clac-clac-clac-clac...

ela deveria ser a unica moça triste na enseada
onde os risos, a cantoria e os copos faziam festa
para aquela gente eufórica, com fome de celebrar
onde a ninguém seria permitido sucumbir à saudade

clac-clac-clac-clac...

fixou os olhos na bola vermelha do sol
sentindo-os arder e marejar
e achou impróprio para alguém, à beira-mar
se permitir salgar o rosto sem o refresco de um mergulho

perdeu de vista o porto para aonde deveria retornar
e parou de contar as tantas vezes em que olhou para trás
esperando pelo resgate que ela sabia não existir
como sentia inexistentes as cordas, os nós e o recomeço

a ela só faziam companhia o eco das garças
e o chamar soporífero das marolas, pra lá da arrebentação
onde ela imaginava, mais por otimismo do que por intuição
morarem os sonhos antigos e o querer perene da estiagem 

clac-clac-clac-clac...

ela deveria ser a unica moça a jogar com a sorte na enseada
porque havia caminhado tanto, de tão longe
para simplesmente não estar ali
para inadverditamente desejar voltar

clac-clac-clac-clac...

chegou ao final da praia, onde a areia abraçava o morro
para aonde ela não podia mais caminhar
e achou impróprio, para alguém tão longe de casa
esperar pela mensagem do náufrago numa garrafa

pois não haveria mensagem, não poderia haver 
não haveria sinal luminoso, ela não poderia esperar
nada que lhe redesenhasse o destino, há muito traçado
e atado a seus pés, tal qual a âncora de navios assombrados 

voltou as costas para o sol, que ainda resistia à chegada da lua
viu desenhada na areia a silhueta negra, longa como o tempo
e fechou os olhos para o norte, tampou as narinas para o vento
para poder retornar ao cais, peixe fora d'água, a esmorecer

clac-clac.
tic-tac-tic-tac-tic-tac...