6 de janeiro de 2011

presente de Yemanjá


"a melancolia já não me apela mais, já não me seduzem dias só de chuva. acordo cedo. a melancolia já não me coloca mais conversas. e no azul claro já não perco mais o olhar em lágrimas. nem em álbum de fotografia me procuro mais. vela vermelha, incenso de canela, batom de morango. nostalgia não tem cor de aurora. e a melancolia não me dobra mais. casacos antigos e dizeres de Byron, toques de flauta a me encobrir. não. o dia tem cor de fogo, e quer se criar. a melancolia já não me costura mais em fios de retroceder. botas de marchar, música de pular, cantos de encontrar: são os tons de não lamentar. a melancolia já me é feia e nem digna de porta-retrato. não me emolduro mais nela ou imito suas dores no meu sentir. natural, caminhante, contemporâneo, aceso. flor de laranjeira pro dia começar." 

Essa pérola é de Ivy Gobeti, um presente que o mar trouxe para mim, como uma mensagem antiga numa garrafa, náufrago que eu me encontrava no momento em que a conheci. Essa é uma das minhas favoritas, e já se tornou uma espécie de oração matinal, que repito para acreditar, para fazer as palavras enraizarem-me alma a dentro através dos olhos. Mas essa leonina intrépida, poison ivy de língua ferina, olhos atentos e estatelados para o mundo e alma contestadora, tem muitos outros tesouros que ela oferta, de lambuja, para o mundo.

Menina-Ivy, que nasceu poesia, vive através da poesia e vai transcender pela poesia, é a dose de realidade de que todos precisamos para voltar ao centro, um morde-assopra gostoso que ela pratica com os olhos de âmbar rasgados pousados no rosto da gente. Estar perto dessa moça é sentir as moléculas se agitar ao seu redor e o espaço-tempo se dobrar pela vontade férrea dela de mudar o mundo, abrir a própria mente, queimar o cosmo e, ultra-leve, ser soprada pela brisa. As palavras de Ivy podem ser duras, e são, mas ela também age com uma doçura inacreditável quando quer.

Quando abri meus ouvidos e o meu espírito meio oco, meio anestesiado para Ivy, cheguei à conclusão óbvia de que eu seria alguém tremendamente infeliz se passasse por essa vida sem conhecer alguém como ela, sem rir e chorar com um ser humano tão forte, e ao mesmo tempo tão frágil, quanto essa garota pequena, de cabelos tingidos de fogo e gargalhada sonora. A capacidade de regeneração de Ivy é deslumbrante; essa menina é um fígado. E o carisma que ela exala de cada poro, irresistível.

Isso tudo eu intuía antes de saber que Ivy, além de ser chocolate com surpresa dentro, dona de uma autenticidade e uma coragem do tamanho dos estados de São Paulo, Rio de Janeiro e Paraná juntos, é também uma escritora inata, que rabisca os versos que a gente sempre quis fazer, mas nunca conseguiu colocar no papel, e arranca lágrimas dos olhos mais cegos e embrutecidos com a poesia latente, gema preciosa que ela produz. Eu sempre acreditei que gente assim como Ivy, que escreve aos borbotões e dá luz às palavras mais certas na hora mais incerta para o autor e mais perfeita para o leitor, fosse metade escritor e metade xamã, curandeiro de almas. Agora, tenho certeza disso.

Para terminar, mais uma pérola dessa erva que, de venenosa mesmo, não tem nada. Ivy está mais para flor de cajá, sol das cinco da tarde, picolé de açaí, sombra fresca e samba de raiz. A paulista branca mais preta de Maringá entrou na minha vida na raça, no grito, com confidências, conselhos e lições que eu nunca vou esquecer. Se você abrir as porteiras da sua alma um centímetro que seja, ela também vai entrar em sua vida, como um raio de sol descortinando auto-piedade, negação e mesquinhez. Pode até doer, em princípio. Mas é de um sentimento de libertação único. 

"Dos dias em que sonhava
Não sinto falta alguma,
Dos dias em que sonhava,
Eu, logo eu, a sonhadora
De nome e sobrenome,
Não me afeta sequer mera saudade,
Não me expressa sequer pouco traço,
Dos meus sonhos presos já não
Me constituo, já nem os prego
A mim nos meus sonos ou despertares.
Já não anuncio o dia em horas de esperar,
Já não espero as noites em horas de iludir.
Dos sonhos fica só a alma de sonhar,
Do longe se traz presente aos dias de realizar.
Dos sonhos já não conheço as promessas,
Que das pernas agora é só o prosseguir.
Nasce dos olhos só o olhar,
Nasce das mãos só o tocar.
Dos dias de sonhar não se faz nenhuma saudade,
Que de tudo que sempre amei sonhar,
E de tudo que sempre me quis em cantar,
Prefiro de nós não mais o querer,
Mas o fazer infinito que vem da chance de nossa idade."

2 comentários:

  1. Anônimo6.1.11

    ...
    não, jamais.
    não palavras.
    palavras são aqui ingratas,
    carregadas, conceituadas.
    minha gratitude é maresia,
    brisa, desapegada.
    sem mais palavras.
    Sempre desejei um dia sair pra onde ninguém me conhecesse antes, e que livre do que foi construído sobre mim eu me colocasse pra fora do jeito que tudo é aqui dentro. E que reação obteria? E quem seria eu? O lugar: Roberta. Quem seria eu: agora.

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  2. Porque tudo o que eu faço quando leio algo que você escreve é reler cinco vezes, sorrir de fora para dentro e chorar de emoção?

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