1 de janeiro de 2011

feliz ano, velho

Em mais um réveillon - sim, ele sempre acontece, não importa o quanto você se enclausure dentro de si mesmo - o que pode ser mais inconveniente, doloroso e martirizante, além de testar nossa resistência ao extremo: enfrentar a passagem de ano, com direito a lentilhas, branco, azul ou amarelo e sete tsunamis para pular SOZINHO, ou toda a mesma, velha e boa pantomima COM OUTROS SERES HUMANOS? Tome-se, por exemplo, o cliché máximo do "adeus, ano-velho" na casa de praia. Não importa em qual litoral você decida espichar seu corpo cansado, após cinco horas de engarrafamento e muito biscoito de polvilho e cerveja de quinta para espantar o calor e o mau humor; se o destino para a passagem de ano for a casa de praia, tanto sozinho quanto acompanhado você terá alguns contratempos a enfrentar mesmo antes de os primeiros fogos explodirem na orla.

Primeiro cenário: você, sem qualquer acompanhante de natureza romântica, nem filhos e muito menos cachorros ou papagaio. Viajar para o litoral sozinho pode lhe dar a impressão, à primeira vista, de que você está em um daqueles cursos de imersão para indivíduos mal tratados pela vida, que decidem sair numa viagem de auto-descoberta do tipo “comer, rezar, amar” e chegar à triste conclusão de que os restaurantes são caros e super lotados, os templos, muito aquém da sua necessidade de correção espiritual e amar... Bem, amar na virada do ano, com Sidra Cereser manchando o seu figurino branco e arruinando seu penteado à la Beyoncé pode ser bastante utópico.

Há diversas maneiras de se fortalecer individualmente. Há os que pulam de pára-quedas; outros, embrenham-se na Floresta da Tijuca por cinco dias, tentando sobreviver à praticamente tudo com apenas um iPhone como munição; alguns trabalham quinze horas por dia, ganham rios de dinheiro e, como um teste de resistência, não gastam absolutamente nada; tem gente que, para se fortalecer até o último fio de cabelo, jura fidelidade até que a morte os separe – o que, em última análise, tem o mesmo peso de assumir uma vida de celibatário abertamente. Mas o ápice da auto-afirmação, incontestavelmente, é viajar sozinho no réveillon. Você freqüenta cada um dos restaurantes super lotados, caminha calmamente pela orla sob o escaldante sol tupiniquim, toma cinco ou trinta picolés de limão, visita os shoppings locais, bebe bastante água de coco, estoura seu limite em todos os seus dez cartões de crédito e... Aleluia! Tudo isso plena, consciente e fortemente solitário.

Quer dizer, há maneira melhor de mostrar a si mesmo e ao mundo toda a sua capacidade de regeneração, auto-preservação e persistência do que estar absolutamente só no litoral, assistindo ao espetáculo dos fogos e aos abraços e beijos dos convivas? Claro, você pode até sentir uma ou outra ocasional pontada de inveja ou auto-comiseração diante da esfuziante demonstração de alegria e união dos demais vinte e cinco milhões de turistas, mas, enfim. Quem se importa com a solidão do réveillon quando se é tão forte e resistente quanto o próprio Rambo, sempre à espera do ataque de um inimigo emboscado?


Segundo cenário: Rio-Manilha, viagem iniciada às cinco e meio da madrugada, bagageiro lotado com malas, mochilas, isopores e uma prancha de surfe, você ao volante, sua esposa e o caçula no banco do carona, seus dois outros filhos discutindo sobre qual música você deveria deixar tocar no banco de trás e, com um palmo de língua para fora devido ao calor de Iguaba Grande, o Totó, confortavelmente instalado no colo da sua sogra, que cochila docilmente sob o efeito miraculoso de um comprimido de Dramin e outro de Rivotril. Como você decidiu comemorar a virada no litoral com toda a sua família, a melhor opção de acomodação é alugar uma casa de cinco quartos para a temporada. Desnecessário dizer que a sua cunhada do interior de Minas, juntamente com o marido e seus três filhos adolescentes, mais cinco amigos do seu filho pré-adolescente e o namorado da sua filha de trinta e cinco anos, que ainda não tem emprego fixo, também vêm para o réveillon. Você não perde a calma em momento algum. Afinal, além dos cinco quartos, todos trazem colchonetes extras para evitar o ambiente de “albergue” não é mesmo? Além do mais, depois de mais de oito horas de engarrafamento e muitos pacotes de Biscoito Globo na Avenida Brasil, seu humor está de fato nas alturas por você ter conseguido chegar à praia antes do espetáculo dos fogos.

Então, uma vez na orla, trajando sua melhor sunga da estação passada, você precisa ir ao supermercado para comprar as provisões que sua mulher, já meio emburrada, vai guardar na geladeira. Mas o mau-humor dos banhistas nas filas quilométricas dos únicos dois caixas e o ar bolorento e abafado do estabelecimento comercial não são nada em comparação à sublime sensação de completude que invade seu subconsciente quando você, com os olhos marejados de emoção, inicia a contagem regressiva para o ano-novo, enquanto observa sua sogra pular as sete ondas a despeito da artrose no joelho.

Terceiro cenário: você, já tendo experimentado as duas formas possíveis de viajar para o litoral e dar boas vindas a mais um ano não muito diferente do que se passou, encontra um portal, uma fenda no espaço-tempo que lhe permite se encontrar consigo mesmo, na situação oposta a que entrou. Em outras palavras, se você adentrar essa hipotética e metafísica passagem sozinho, transbordando de amargura e auto-piedade por não ter uma esposa, filhos, um cachorro e uma sogra bonachona, encontrará do outro lado você mesmo, na versão exaurida do homem de família que dirige horas para levar os parentes para a casa de praia e tenta apartar as eventuais e inevitáveis discussões à mesa da ceia. Vocês se entreolham desconfiados, como se fossem meros desconhecidos. Mas, então, num segundo olhar mais atento, descobrem que são a mesma pessoa, vivenciando uma situação única, alegórica e ideal, em que podem, num momento em que a areia da ampulheta da vida para de correr e é possível contrariar Heráclito, atravessar as mesmas águas de um mesmo rio duas vezes. Se nesse espaço ideal o eterno retorno de Nietzsche fosse possível, dois homens diametralmente diferentes e, ainda assim, dois lados de uma mesma moeda, poderiam se olhar nos olhos e ver, refletidos neles, as frustrações que escondem debaixo do tapete do dia a dia, as decepções, os sonhos soterrados, a crueza acachapante dos dias solitários e a rotina sufocante da individualidade cerceada. Se fosse possível a vocês, dois homens diferentes e, no entanto, o mesmo homem, apertarem-se as mãos, talvez uma estrela perdida no cosmo transmitisse, num passe de mágica incompreensível, o melhor e o pior de suas vidas de um para o outro. E talvez vocês percebessem, nessa transmutação surreal, que não se ganha nem se perde muito do que já havia se encrustrado em suas almas.

Então a epifania do réveillon acaba e o portal se fecha. Você, solitário e amargo, senta-se na areia para observar o entardecer que tinge de púrpura o horizonte anil. Pensa que daria toda a sua liberdade para ter uma esposa, dois filhos adoráveis, uma sogra amorosa e um cachorro fiel. Do outro lado da orla você, cansado da balbúrdia dos parentes distantes e das exigências dos filhos e da esposa, recosta-se à cadeira de um quiosque para observar o mesmo por de sol, o mesmo púrpura que hipnotiza, encanta e entristece. E pensa que daria toda a segurança arduamente conquistada e marinada em tédio pela liberdade dos seus tempos de lobo solitário.

Claro que esse tipo de dilema só nos atinge na virada do ano. Afinal, é nessa época que prometemos a nós mesmos, finalmemte, realizar aquele sonho de dez anos atrás, começar aquele regime que adiamos desde o nascimento do primeiro filho, comprar aquele Camaro amarelo, beijar aquela bela morena do apartamento vizinho, ter mais um filho, comprar um Cocker Spaniel, começar as aulas de violino, pedir o divórcio, adotar um filho, pedir a mão da sua namorada de infância em casamento, comprar uma bicicleta, nunca mais viajar para o litoral em alta temporada...

5 comentários:

  1. Três crônicas em uma, de tema recorrente para a época. Mas e os que, como eu, moram onde todos despencam para passar o revéillon? A despeito do bom senso, ainda existe dignidade na passagem do ano...

    Ah, sim: Sêneca nunca disse isso - foi Heráclito de Héfeso. Veja menos "Eat Pray Love", leia mais sobre filosofia pré-socrática. ;-)

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  2. Ah, e Nietzsche está grafado errado - e não tenho certeza se o conceito de eterno retorno, a repetição cíclica e infinita do Universo e suas decisões, foi usado da forma correta, porque implica na aceitação inevitável da transformação em um personagem no seu alter ego deslocado no tempo, em um ciclo infinito de repetição.

    No mais, o tema é bom: passa ano, sai ano - e ninguém é exatamente feliz consigo mesmo, ainda que sejamos essencialmente os mesmos. Parte da condição humana, suponho.

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  3. Obrigada pelas correções, amigo. Nada como um leitor ávido por detectar erros de grafia e sempre ler o texto ipsis litteris, e nunca pelo viés da poesia que ele contém. Isso engrandece o autor como nada semelhante. O conceito de Nietzsche está correto. Leia a definição que você mesmo escreveu, volte à idéia central do texto e veja que, se fosse possível a cada um de nós viver uma mesma situação mais de uma vez para que pudéssemos julgar qual seria mais conveniente, viveríamos no "eterno retorno", contrariando Heráclito. Mas acho que isso não deve vir ao caso para você, que se detém ao tecnicismo do texto, às fontes citadas erroneamente e a conselhos cáusticos.

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  4. Minha correções tiveram eco - seu texto foi rapidamente revisado e os erros cortados. Isso evidencia a utilidade da minha intervenção.

    Se literatura é sensação, ainda assim ela não deve ser salpicada de erros em suas pitadas intelectuais.

    Estou acostumado a nenhum brasileiro suportar criticas - nem as que tentam polir as pérolas que moldam um estilo, para dar ainda melhor consistência ao texto. Mas imaginava reação menos espinhosa, Beta - só te poupei de falar coisas erradas.

    Desculpe. Até minha piada foi tomada como "conselho cáustico"... :-(

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  5. Foi piada? :-( Desculpa, tendi não! Você agora é revisor oficial dos meus textos, sabia?

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