17 de fevereiro de 2011

in(só)lito capítulo 1

"Na Cama - O Beijo", Toulouse Lautrec

Abriu os olhos de chofre. Procurou pelo relógio à cabeceira da cama, mas não havia nenhum. Piscou para amainar a ardência causada pela luz, que vazava janela adentro, sem cortinas. Havia sombras projetadas no edifício à frente e o céu ainda apontava uma nesga de cinza ao longe. Não deveria passar das sete horas. Sentiu o braço esquerdo formigar, sua mão latejando numa cãibra de agulhas. Ela provavelmente passara a noite ali, aninhada sobre aquele braço. Abriu e fechou os dedos repetidas vezes, até senti-los novamente. O lado da cama em que estivera deitada já não retinha calor algum. Ela deveria estar acordada há algum tempo.
Soergueu-se, recostando o tronco no travesseiro amarrotado. Sua boca estava seca, a língua saburrosa colando ao céu da boca. Sentiu o estômago revoltar-se de fome, mas precisava beber alguma coisa antes de mais nada. Qualquer coisa. Procurou pelas roupas que havia usado na noite anterior. Havia deixado-as numa trouxa, emboladas no chão, perto da cama. Não estavam mais ali. Afastou os lençóis, levantou-se e, contrafeito, saiu nu à procura das roupas.
À noite o quarto lhe parecera maior e mais aconchegante, quase refinado. Lembrou-se também da vodka, da música alta e do desejo cru, quase brutal que o tomara de assalto na danceteria, quando a viu caminhar pela multidão de corpos emaranhados na pista. O rebolado sutil e os cabelos cacheados dela não prenderam apenas o seu olhar. Ela andava devagar, como se não precisasse chegar logo a destino algum, especialmente  no espaço exíguo da boate. Ele e outra dúzia de homens acompanhavam-na com olhos curiosos, impertinentes e sequiosos. A moça devia ter pouco mais do que vinte anos. Seu corpo era farto de curvas que recheavam um vestido turquesa de alças largas, muito sóbrio para uma mulher tão jovem, dona de carnes tão deleitosas para o apetite masculino. Talvez fossem as roupas em dissonância com o corpo, ou talvez seu caminhar displicente, ou os cabelos em exuberantes cachos louros, acompanhando-lhe a linha da coluna vertebral. Ele não saberia dizer ao certo o que gritava tão alto naquela moça. Mas o fato é que se sentira irrevogavelmente atraído por ela, à mera visão de suas costas e cabelos, e a consciência de que outros homens naquele exato momento também a desejaram só fez com que sua lascívia e um imperativo por exclusividade aumentassem mais.
Viu um copo d'água pela metade sobre a penteadeira. Bebeu de um só gole, a garganta queimando de sede. Olhou em volta, ainda sem encontrar as roupas. Seria péssimo ter que pedir a ela que lhe mostrasse onde estavam sua calça, a camisa e os sapatos pretos. Sentiu-se subitamente zonzo, numa vertigem que o fez cambalear e apoiar-se na cadeira. A azia, o gosto metálico na boca e a cabeça tonta sublinhavam o quanto ele havia bebido naquela noite. Com olhos turvos e pálpebras pesadas, finalmente encontrou as roupas. Estavam perto do espelho da penteadeira. Ela as havia dobrado meticulosamente e posto ali, antes de deixar o quarto. Sentou-se, respirando fundo. Vestiu a camisa, ajeitou os cabelos e tentou por as calças. Sentiu-se tonto novamente, dessa vez um pouco nauseado, e precisou se sentar e reclinar a cabeça para trás para a ânsia não dominar suas vísceras. Tudo no quarto rodava: o teto com um lustre grande e antiquado, o chão acarpetado, a cama, a penteadeira, a luminária sobre o criado-mudo, um porta-retratos com fotos dela e amigos, ou parentes, talvez amantes, ele próprio girava. Um suor frio e pegajoso cobriu suas costas, a testa, nuca e peito. Não havia uma gota de saliva em sua boca e ele temeu vomitar no carpete dela ou, o que seria inimaginável, desmaiar aos pés da cama. Cerrou os olhos com firmeza e desejou não ter saído de casa na véspera. Assim, não teria ido à boate escura e claustrofóbica, nem a teria visto e desejado dormir com ela, e muito menos passado a noite ali, com uma mulher enroscada em seu braço esquerdo.
Então sentiu a mão pequena tocá-lo num dos ombros. Abriu os olhos e a viu. Estava com o rosto limpo, sem maquiagem, cheirando à sabonete e a algo cítrico, que ele não identificou. Os cabelos estavam presos numa trança e atados ao topo da cabeça, mais claros contra a luz da janela. Ela parecia ainda mais jovem e mais fresca de manhã. Usava uma malha larga, que a cobria até a metade das coxas, uma saia de algodão e estava descalça. Abaixou-se para encará-lo. Quando falou, seu hálito morno, com cheiro de café com leite, invadiu-lhe as narinas, resgatando-o por um segundo do torpor:
"Você está tão pálido... O que aconteceu? Está se sentindo mal?"
Ele se limitou a afastá-la, empurrando o braço dela para trás. Precisava ir ao banheiro, mas não sabia como chegar até lá, nem se conseguiria chegar. Deteve-se um instante nos olhos dela, sentindo o rosto queimar de aflição e vergonha. Quem era ela? Em que parte da cidade estariam? Trancara o carro à noite? Onde teria estacionado? Ele só conseguia lembrar-se dos dois, encostados à porta da sala, das mãos dela tirando-lhe as calças e da boca quente, salivando sobre ele num vai-e-vem torturante.
"Vem comigo. Você precisa de um banho".
Tentou resistir, mas ela já o envolvera, passando o braço dele sobre os seus ombros e forçando-o a se levantar. Avistou um corredor assim que passaram pela porta do quarto e, ao final, o banheiro. Ela o levou até lá, deixou-o apoiado à pia e saiu, fechando a porta atrás de si. Quando mirou-se no espelho, sentiu um embaraço imenso; seu rosto estava macilento, os olhos esgazeados e a pele, amarelada. Ele era o homem mais feio do mundo, com um hálito de morte, sem calças e nauseabundo, e estava na casa de uma mulher cujo nome não lembrava, se é que lhe havia perguntado. Abriu o chuveiro e deixou a água gelada cair sobre a cabeça. Em princípio não fez qualquer movimento; temia se sentir tonto novamente. Aos poucos seu estômago foi-se acalmando e sentiu as pernas mais seguras. Esfregou todo o corpo e os cabelos com o sabonete dela. Fez bochechos e gargarejos sucessivos, até sentir o hálito mais fresco. Saiu do box e deixou-se pingar sobre o chão de azulejos cor de creme do banheiro dela. E foi com a toalha dela que se secou, antes de abrir a porta e sair a sua procura pelos cômodos.

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