8 de outubro de 2010

Sapucaia

A receita do oftalmologista habitou minha bolsa por quase dois meses. Sessenta dias de letras embaçadas e embaralhadas nos livros que leio, sessenta dias não vendo as curvas da estrada à noite tão bem quanto eu costumava.

Mas há males que vêm para bem. Ou, para continuar no território dos clichés, nada acontece por acaso.

Há uma cidadezinha quase no meio do caminho entre a cidade onde eu moro e o lugar onde eu gostaria de viver, que sempre achei muito simpática. E, de fato, todos que passam por ela, seja sentido Salvador, ou sentido São Paulo, acabam se apegando à tal cidadezinha de alguma forma. E isso eu falo com propriedade porque já bati muito papo com caminhoneiros nessas paradas. E todos, pelo menos os poucos com quem troquei meia dúzia de palavras, acham Sapucaia um charme. E, eu, mais ainda.

Há muitos anos, tantos que nem vou perder tempo para contar, quando fazíamos o caminho da roça, meu pai e eu, Sapucaia era parada oficial. Costumávamos passar por lá entre oito e dez da manhã, e parávamos na terceira padaria à direita de quem vai. Meu pai enchia o carro com pães doces, roscas, bolos e uns biscoitos de nata com chocolate que provavelmente nem existem mais, apenas na minha memória. Levávamos aquilo tudo para a casa de minha tia, onde todos devorávamos as guloseimas em pouco tempo.

Se você não conhece Sapucaia, vale à pena dar uma passada por lá. Se seu espírito não for tão aventureiro a esse ponto, então faça uma pesquisa no Google e veja algumas fotos. Mas nada virtual vai lhe transmitir a atmosfera, a aura da cidade. Ah, quer dizer que você não sabia que cidades têm aura? Pois têm, sim. E casas têm sua aura também. Mas isso já é outra história.

Sapucaia tem duas grandes praças, um coreto de madeira e cimento, um cemitério que nem parece cemitério, uma prefeitura antiga, que à noite é iluminada por uma luz lilás, e uma avenida comprida ponteada por pés de manga. Em dezembro, as árvores ficam carregadinhas de frutas, e a molecada se esbalda, enchendo sacolas de supermercado com as famosas mangas-espada da região. É um barato de se ver, de verdade.

As ruas de Sapucaia ainda são de calçamento original, daqueles que quebram as molas do carro e detonam os amortecedores. Mas, e daí? Calçamento de pedras centenárias é algo que não tem preço. Todo mundo anda pelas ruas com vagar, como se houvesse apenas Sapucaia no Universo inteiro e, em dias de jogo de futebol, o pessoal mais animado se reúne no quiosque central da praça para acompanhar a decisão pelo telão, que o dono colocou ali para atrair a freguesia. E animar o coreto também.

Sapucaia, hoje, entrou pelos meus olhos de uma maneira diferente. Eu vinha pegando uma chuva enjoada há quilômetros, estava cansada e meio emburrada por estar fazendo o caminho inverso também quando, de repente, o sol brilhou por entre um buraco na massa pesada de nuvens. Parou de chover assim, de repente, não mais que de repente, com o perdão do poeta. Foi um daqueles momentos mágicos, que despertam o viajante das horas maçantes, do CD que já tocou cinco vezes, do sono que bate por causa dos milhares de caminhões a sua frente, da preguiça infinita que dá de se seguir viagem. Piegas, sim, pode até ser, e é mesmo, mas o fato é que a chuva parou, o céu se abriu, eu ouvi o "tinim" da varinha de condão de uma fada-madrinha qualquer e abri os olhos: eu tinha acabado de chegar em Sapucaia. 

Não pensei, não raciocinei nem olhei o relógio. Apenas parei numa ruazinha enfeitada de flamboyants vermelhos e uns velhinhos papeando. Deixei meu destino de lado e fui caminhar por Sapucaia. Conversei com o dono da primeira farmácia da cidade, que ainda tem balcões e prateleiras de madeira e uma caixa registradora que provavelmente tem mais de 60 anos. O dono certamente tem bem mais que sessenta anos, e me contou as últimas fofocas da cidade. Prometi mais uma visita na volta.

Depois, um café-com-leite "pelando" e um queijo quente na padaria em frente ao Itaú. E dá-lhe carro, caminhão, moto e carreta passando, para lá e para cá. Da calçada, a gente vê os viajantes como um bando de apressados bobos, que podiam estar ali também, jogando damas, tomando café ou ajudando o "seu" Augusto com a farmácia (só trabalham lá ele e o filho, mas este não parece gostar muito do negócio do pai). O sol foi se pondo e eu esqueci que tinha que prosseguir viagem. Por uma horinha, virei cidadã de Sapucaia, numa tarde de folga. 

E eis que, de volta ao carro, vejo uma óptica. Pequenina, com muitos espelhos e luzes, umas duzentas armações expostas e o Luiz e a Gleides lá dentro. Ela é a dona da loja, e mora em Três Rios, com o marido. Vem para Sapucaia todo dia para vender óculos para os ceguetas da cidade. O Luiz já é de lá mesmo, e é ele quem manuseia os óculos e faz as lentes. Entrei e pedi para ele ajustar as hastes de uns óculos de sol antigos que eu estava usando na hora. Engatamos uma prosa comprida em pouco tempo, Luiz, Gleides e eu. Claro que me perguntaram de onde eu era, para aonde estava indo. Eu tinha duas opções: podia dizer que era do lugar para aonde estava indo, ou do lugar de onde estava voltando. Afinal, "casa" é onde mora a alma da gente, não é, Quintana?

Então disse que sou de Itaocara, mas moro em Mendes, e por isso estou sempre de passagem, para visitar minha família que fica pelas bandas de lá. E, "tinim!", Gleides já havia morado cinco anos em Itaocara. Em menos de um minuto, descobri que os grandes amigos dela, de lá, são parentes meus. Dei algumas notícias, ela ficou alegre em saber do pessoal, e espantada com a coincidência. Ao que eu respondi: "É assim, mesmo, menina. A gente que é caipira sente o cheiro um do outro de longe!". Não deve ter sido por acaso que resolvi entrar justamente naquela óptica, no meio de uma viagem em que eu já estava com mais de duas horas de atraso. Mas as risadas e a prosa valeram.

Não pensei, não planejei, foi um impulso. E, às vezes, faz bem ao coração ceder a um ou outro impulso. Principalmente quando se está no meio do caminho, sem saber direito a que lugar você pertence. Escolhi a armação mais bonita da loja, ou ela me escolheu, algo completamente diverso da imagem que se tem de óculos para longe. Algo que, naquele momento, refletia o estado de espírito que Sapucaia, o sol molhado da chuva, a conversa com o "seu" Augusto, o café-com-leite e as "coincidências" desse mundo que é um umbigo, enfim, o estado de espírito que a "aura", a doideira de tudo aquilo transmitiu para mim. Decidi fazer meus óculos em Sapucaia.

São pequenos, com lentes estreiras quadradas, modernos. Armação de metal, cor de rosa - sim, rosa! - bem claro, e cristais nas hastes rosadas, irreverentes. Óculos que eu usaria à noite para dirigir, mas também de dia. Porque são irreverentes, são fruto de um encontro entre desconhecidos com conhecidos e amigos em comum, porque apareceram numa parada de viagem, enfim, porque são de Sapucaia. Ou talvez eu estivesse mesmo precisando de óculos cor de rosa. Ou de uma prosa amigável, no meio do caminho, antes de chegar ao meu destino. 

Eles me ligam quando os óculos estiverem prontos. Afinal, estou sempre de lá para cá. Outra visita prometida, dessa vez visita certa, para ajustar minha visão. A receita do oftalmologista ficou, as medidas certinhas e meus dados ficaram, eu fui. Telefones trocados, só pago na entrega. Gleides fez questão. Os óculos, vejo agora, não podiam ser de outra cor. Mas ela só me pediu uma coisa. Como as lentes são anti-reflexo, vêm de Teresópolis e, de lá, feitas num laboratório em Três Rios, pode demorar mais de duas semanas para ficarem prontos. Eu sorri com vontade. Nem me lembrava mais da receita, talvez nem fosse fazer os benditos óculos...! Ah, sim, o que Gleides me pediu: "se você passar por Sapucaia, mesmo antes de eles ficarem prontos, dá uma passada por aqui pra gente bater mais papo?". 

Saí com a noite desembrulhando seu vestido preto no céu. Sem óculos de sol, sem óculos de grau, mas com a certeza de que volto. E de que, na próxima parada em Sapucaia, onde o céu abre caminho para o sol e a chuva vai embora, terei três novos "amigos de parada" para me fazer companhia na estrada, ainda que eles fiquem e eu esteja indo e/ou voltando.

À propósito, a sapucaia é uma árvore enorme que, além de madeira, dá castanhas que, fora da cumbuca-de-macaco, como chamamos sua casca, são uma iguaria deliciosa quando assadas. E, uma vez por ano, a árvore que empresta seu nome a essa cidadezinha charmosa dá flores que a gente vê e logo identifica, de longe. Na primavera, a flor da sapucaia é cor de rosa.

2 comentários:

  1. Este comentário foi removido pelo autor.

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  2. Me lembro desse dia como se fosse hoje, realmente aquele dia foi especial!

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