24 de fevereiro de 2011

in(só)lito capítulo 10 [final]

"Expectations", Gustav Klimt

Ele tomou as chaves da mão de Márcia, sopesou-as por uns segundos e, em seguida, guardou-as no bolso dianteiro da calça. Ficou olhando para a mão erguida da moça, seus dedos longos e as unhas pequenas e quadradas. Consultou o relógio: quase cinco horas. Mais nuvens se acumulavam no céu agora e o vento começou a soprar mais frio. Ela envolveu o próprio corpo num abraço solitário e esfregou as mãos nos braços, arrepiados.
"Parece que essa noite vai ser gelada".
Bruno não respondeu. Imaginava que em pouco tempo o sol sumiria no horizonte, as mães deixariam a pracinha do parque com seus filhos para dar início à rotina noturna de banho, jantar e histórias para dormir, outros moradores chegariam da praia ou mesmo da cidade, o turno de Amauri terminaria para começar o de Romano, ele pegaria um engarrafamento absurdo até chegar ao seu bairro e Márcia voltaria para o apartamento da mãe, para a mobília antiga, o tic-tac do relógio de parede e o bolo de laranja sobre a bancada da cozinha. Tudo aquilo, por mais habitual e normal que Bruno soubesse que fosse, não parecia natural.
"Eu não precisaria de desculpas nem subterfúgios para estar aqui, Márcia".
"Fico feliz em saber disso. Não lido muito bem com desculpas".
"É mais difícil para você pedir ou aceitar desculpas?"
Ela sorriu, um riso curto e triste como uma lua-crescente no céu, e tocou-o no rosto. Bruno fechou os olhos por um segundo e deu-se conta de que, em cinco anos de casamento, Áurea nunca o tocara dessa maneira. Segurou-lhe a mão e beijou sua palma. Ocorreu-lhe também que, em cinco anos de casamento, nunca quis beijar a palma da mão da ex-mulher. A carícia de Márcia seguida da sua, e a constatação de que não fora capaz de trocar um gesto íntimo e ao mesmo tempo tão espontâneo com a mulher que um dia pensara ter amado, preencheram-no de leveza e desprendimento. O passado, tal qual o presente, não passavam de bolhas coloridas de sabão. Caberia a cada um soprá-las para longe, estourá-las ou continuar produzindo-as, até que os olhos se fartassem de tanta volatilidade e cor.
"Acho que é difícil para todo mundo desculpar e pedir perdão, Bruno. Ninguém quer errar, essa é a verdade".
"Mas nem tudo é só querer, não é mesmo, mocinha?
Ela olhou para cima, para as folhas de amendoeira que o vento fazia balançar. 
"Às vezes eu me canso das coisas que quero. Outras vezes me canso de querer. Mas então me lembro de que me sinto muito exaurida e vazia quando não quero absolutamente nada".
A frase "e o que você quer, afinal?" formou-se imediatamente no pensamento de Bruno, e chegou mesmo a deslizar por sua língua. Mas ele cerrou os dentes e ficou em silêncio, mais uma vez. A perspectiva de entrar em seu carro e voltar para casa o emudecia e embotava-lhe a consciência. Sentiu-se subitamente muito cansado, com as pálpebras pesadas de um sono de morte.
"Márcia, você foi uma surpresa adorável. A melhor surpresa que eu tenho em anos, para ser honesto".
Ela quis perguntar a ele se tinha sido apenas uma surpresa adorável naquele domingo, se gostaria de continuar sendo surpreendido e o que poderia fazer para que ele não a deixasse sozinha naquele final de tarde frio. Cada uma daquelas perguntas ela teve que engolir a seco, por puro medo das respostas.
"Preciso ir agora, moça".
"Claro. Já passou da sua hora, não é?"
"Estou cansado, na verdade. Preciso colocar o sono em dia. Amanhã é dia de trabalho".
"Para mim também. E nós não dormimos muito".
Os sorrisos de Márcia ficavam cada vez mais forçados e nitidamente constrangidos. Bruno não queria se lembrar dela daquela forma.
"Bem, você me acompanha até o carro?"
"Passamos tantas vezes por ele que tenho certeza de que você não vai errar o caminho, mesmo sem ter espalhado migalhas de pão para marcar suas trilhas, Joãozinho. Está ficando muito frio. Vou subir, se você não se importar".
"Claro. Já passou da sua hora, não é?"
Novamente ela tentou esboçar um sorriso, mas a Bruno pareceu uma caricatura, a sombra da mulher jovial e enérgica que ele havia conhecido. Olharam-se uma última vez, demoradamente. O vento deixou uma mecha do cabelo dele cair sobre a testa e trouxe folhas secas de amendoeira para perto de seus pés. A chegada de Adélia com as chaves representou, de alguma forma, a ruptura da ponte delicada que haviam construído entre si durante o dia. Eram, mais uma vez, dois estranhos solitários e nus num parque repleto de amendoeiras e folhas mortas e desconheciam a razão para tanto distanciamento.
Márcia caminhou até o prédio sem olhar para trás. Seu peito queimava como se ela tivesse engolido soda cáustica. Abriu a porta de vidro e deparou-se com o olhar desconfiado de Amauri. Sentou-se na mesma poltrona onde Bruno esperara por ela enquanto procurava as chaves com o porteiro pela manhã. Ouviu o motor do carro dele roncando até o silêncio retornar à entrada do edifício. Naquele momento soube que ele tinha saído do seu bairro, da sua história e da sua vida, e arrependeu-se imediatamente por não ter sequer o abraçado uma última vez.

A vida de Márcia continuou do ponto em que havia estado em suspensão, há três semanas. Acordava às sete da manhã, tomava um copo de leite gelado, vestia o uniforme do ateliê, caminhava até o ponto de ônibus, pegava o metrô em seguida, trabalhava até as sete da noite, retornava para casa, tomava um banho, comia as sobras do café da manhã e ficava assistindo à televisão até o sono chegar. Nos três finais de semana que sucederam seu encontro com Bruno, ela pensava em voltar àquela danceteria para encontrá-lo, mas jamais tivera coragem e audácia para por a idéia em prática. Não haviam trocado números de telefone, o que a poupava da ansiedade de esperar que ele entrasse em contato com ela. Nos primeiros dias sentiu um vazio imenso e a certeza de que fizera algo muito errado. Com o tempo, o vazio cedeu espaço a uma tristeza muda e inexplicável e ela já não pensava mais no que poderia ter acertado e onde teria falhado. Apenas sentia falta dele. Mas ainda pior do que a saudade do homem que conhecera era a nostalgia pelo homem que ela ainda queria conhecer e por quem seu desejo de se apaixonar não havia morrido.
No quarto final de semana, Márcia resolveu sair de casa. Era domingo, uma manhã típica de inverno paulistano, com nuvens pesadas no céu e um vento gelado vindo do sul. Ela vestiu uma malha azul pesada, calças de veludo e botas pretas, prendeu os cabelos num gorro laranja, trocou meia-dúzia de palavras com Amauri e foi caminhar no parque. Nesse dia não havia crianças, nem mães, apenas dois vira-latas de rua revirando os latões de lixo. Ela andava com as mãos nos bolsos e sentia o frio queimar-lhe a pele das bochechas. Lembrou-se de que poderia ter pego um cachecol, mas estava com muita preguiça de voltar até o apartamento.
Perdeu a noção do tempo em que ficara dando voltas ao redor do parque. Ela não se exercitava assim há dias e o movimento lhe fez bem. Seu sangue circulou mais depressa, o rosto ficou corado e ela não sentiu tanto frio. Retirou o gorro e soltou os cabelos. Olhou para o céu. Não havia a menor brecha por entre as nuvens para que o sol pudesse chegar até as amendoeiras. Sentou-se no banco próximo ao caramanchão e retirou um pequeno livro do bolso da calça. Eram poesias que Adélia havia lhe dado há poucos dias. Leu três páginas e sentiu as pálpebras pesadas de sono. Olhou para o prédio no final da avenida e ponderou que chegaria em seu apartamento em dez minutos. Mas, então, aquele torpor envolvente a teria abandonado e ela perderia a chance de tirar uma soneca agradável no parque. Acomodou-se melhor no banco, fechou os olhos e adormeceu.
Quando despertou, viu que as nuvens estavam mais espessas e o vento, mais frio. Pensou em voltar para casa, assar um bolo de banana e levá-lo para Adélia e Ivan mais tarde. Foi então que o ouviu, sua voz vindo de trás dela:
"Você não tem medo de dormir num banco de praça, sozinha?"
Ele estava sentado nos degraus do caramanchão, sorria e olhava para ela. 
"Pelo jeito eu não estava completamente sozinha".
"Mas poderia estar. E, então, seria perigoso. Você precisa de mais juízo, menina".
"E você está atrasado. Quatro semanas. Nunca ninguém me deixou esperando tanto tempo".
"E daí? Você não costuma esperar pelo que quer"?
Ela riu alto; a gargalhada pela qual ele acreditara ser plenamente possível se apaixonar.
"Não em portarias. Em bancos de parque no inverno? Pouco provável.
"E então esperava o que, cochilando aí, alheia à vida efervescente do seu bairro?"
Em cinco passadas ela chegara até ele. Estendeu-lhe a mão para ajudá-lo a se levantar.
"Esperava o tempo melhorar e o céu abrir".
"Mas estamos em pleno inverno, mocinha".
"Eu não sou mais uma mocinha".
"Vai ser sempre uma mocinha para mim. Teimosa, contestadora e mimada. Mas diferente. Especial".
"Você nunca me disse que eu era especial".
"E você nunca me pediu para ficar".
"Fica. Por favor. Eu quero muito".
"O que você não sabe, moça, é que eu vim para ficar. E você nem precisaria ter me pedido".     

in(só)lito capítulo 9

"Cupid and Psyche", Orazio Lomi Gentileschi

Nenhum acontecimento pode se configurar como uma história de amor se não estiverem envolvidos nele determinados elementos. Muito embora a idéia de romance flutue em variáveis de acordo com a forma como o indivíduo o vivencia, certos personagens são elementares para que o ideal de amor - romântico ou pragmático - se estabeleça na consciência de quem narra, vive, ouve ou lê uma história de amor. É preciso que haja amantes e, antes mesmo que os contornos destes estejam definidos, é preciso que a mulher e o homem tenham o desejo intrínseco e espontâneo de ser amantes. 
Bruno e Márcia não devem ter saído de suas casas naquele sábado à noite com um plano concreto de viver uma história de amor. Quando vejo Bruno procurar em seu armário por uma roupa diferente das que usa diariamente para trabalhar, usar aquele perfume que estivera guardado desde que Áurea o abandonara, pentear o cabelo com mais esmero, pegar o molho de chaves e guardá-lo no bolso dianteiro da calça e, antes de fechar a porta, olhar a fotografia de Helen, sua filha que hoje tem cinco anos, não imagino que ele acreditasse poder viver um romance.
Gosto de pensar que Márcia estivera se arrumando para sair na mesma hora em que Bruno, naquele bairro distante e antigo da periferia onde sua mãe morava e que, agora, é seu lar. Imagino que Márcia tenha uma vida social mais ativa que a de Bruno, até porque é mais jovem e, tendo perdido a mãe recentemente, deve se forçar a sair de casa para não afundar em solidão e desespero. Vejo-a dispondo cinco peças de roupas diferentes sobre a cama onde, mais tarde, se deitaria com Bruno. Ela acabou de sair do banho, seus cabelos cacheados escorrem água e formam pequenas poças no chão, e está envolta numa toalha branca, aquela que Bruno usaria apenas na manhã seguinte.
Márcia perde um bom tempo para escolher qual roupa vestir aquela noite. Sabe que tem um corpo atraente e que é jovem, mas não quer usar o mesmo vestido preto, justo e decotado que metade das outras mulheres certamente estarão vestindo. Há um florido, mas ela logo o descarta porque a faz parecer uma camponesa iletrada. A terceira peça é uma combinação que ganhou de Adélia, mas não lhe parece adequado vestir calças compridas para uma danceteria. Restam-lhe duas opções: um vestido amarelo que ela mesma desenhara, cortara e costurara, e um turquesa de alças largas, que pertencera à sua mãe. Porque a consciência de Márcia ainda dói de saudades de Lira, ela opta pela última peça, esta que, em seu corpo, atrairá Bruno pela diferença que lhe salta aos olhos.
Se um viajante do tempo fosse até a jovem naquela hora e lhe dissesse que ela conheceria um rapaz, o levaria para sua casa, dormiria com ele, ouviria suas confissões e, na manhã seguinte, agradeceria à sorte de não ter consigo as chaves que possibilitariam a partida desse homem, Márcia não acreditaria, mesmo sendo supersticiosa e tendo achado a seqüência dos fatos apaixonante. Por outro lado, se viagens através do tempo fossem possíveis, talvez Márcia se dirigisse à danceteria completamente eufórica, já em busca do rapaz que a faria viver tal aventura. E, provavelmente, estando preparada para o "acaso", Bruno lhe passasse despercebido.
Muito antes de Bruno e Márcia decidirem que queriam ser amantes, antes mesmo de saírem de suas casas, essa história já era repleta de outros amantes. Pois amante é aquele que ama algo ou alguém e, mais importante, que se permite ser alvo de amor e afeto. Bruno é amante de sua pequena filha, Helen, mesmo vendo-a tão pouco e tendo quase nada em comum com ela. É amante também da idealização que fizera de Áurea, uma mulher real a quem nunca amara de verdade. É amante de sua mãe e de seu irmão, por quem sacrificou o sonho de ser arquiteto em função de uma vida real de trabalho e sustento de uma casa abandonada pelo chefe de família.
Márcia é uma amante tão fiel à Lira que usa seus vestidos para sair à noite, correndo o risco de parecer anacrônica. É amante também de seu trabalho, ofício que aprendera com a mãe, em criança, e que hoje é seu sustento principal. Há Adélia, que amava tanto Lira que, por ela, transferiu esse amor à Márcia, transformando-o em cuidado maternal. Também há o amor do porteiro, Amauri, pelo bairro, pelo edifício e por seus moradores, adoração que nasceu e cresceu com anos de dedicação àqueles elementos. E pairando sobre todos esses pequenos romances, há o amor maior, o fio condutor da história de Bruno e Márcia; porque muito antes de saberem que seriam amantes entre si, eles já eram amantes do diferente, da possibilidade de fuga e do recomeço.
Quem ama o diferente, a fuga e o recomeço é também amante das apostas. E para que haja uma história de amor, e não um poker show, é necessário que os amantes apostem em si mesmos e no outro. Quando Lira ainda era viva, costumava dizer à filha que um barco atracado ao cais não naufraga em mar alto. A mãe de Márcia nasceu, viveu e morreu atracada ao cais, viúva e sem jamais pisar em outra cidade que não fosse São Paulo. Se fosse possível a um anjo de Deus perguntar-lhe se ela gostaria de ter levado uma vida diferente, não acredito que ela responderia que sim. Para uma pequena embarcação ancorada no porto, é natural que o temor das tempestades e das ressacas do mar faça nascer um sentimento de proteção, ainda que tal sentimento gere insegurança e um temor ainda maior da vida, das jornadas e da mudança. Em Márcia, a proteção de Lira gerou tão somente contradição: diferentemente da mãe, a jovem anseia por navegar para mais longe, sentir o vento inflar-lhe as velas, o sal temperar-lhe as escolhas e as ondas sacudirem suas certezas. Mas o medo e a insegurança são uma âncora pesada demais, de maneira que Márcia apresenta-se para o mundo como uma galé deslocada numa enseada de águas rasas e mansas, sacudindo-se enfurecidamente para se libertar das correntes atadas ao porto.
Dessa maneira, a jovem aposta muito mais no amante que o outro pode ser do que na amante que ela mesma é. Quando dá as cartas, é como um marujo bêbado, de passos trôpegos e visão embaçada, e quando tenta premeditar a jogada do outro, espera sempre que sua própria mão tenha cartas piores e menos valorosas do que a de seu oponente. Na verdade, Márcia senta-se à mesa do cassino para jogar um jogo cujas regras desconhece, e penso se chegará o dia em que ela vá perceber que, às vezes, pode-se jogar em dupla. Quando vejo os traços de Bruno se formarem diante dos meus olhos, penso numa criatura mais serena que Márcia, num homem mais resignado e racional, embora com um enorme talento para embarcar em galés aventureiras. E vejo, sobretudo, a figura de um imigrante pobre que entra no convés de um navio às escondidas, para chegar à terra prometida. Das humilhações e decepções sofridas, Bruno aprendeu a abrir seu próprio espaço na multidão, ainda que esta atire salmoura em suas chagas para afastá-lo do sucesso. Agrada-me conceber Bruno como alguém que aposta muito mais em si próprio e no amante que ele é e pode ser do que no outro. Esse rapaz sabe que o outro tende a fraquejar, sucumbir e perder para si mesmo. No entanto, Bruno conhece os limites que o definem e os horizontes que pode cruzar, por isso aposta em si mesmo e paga caro para ver se sua escolha, após tanto tempo, valerá seu investimento pessoal.
Se fosse permitido ao autor escrever a história de todas as personagens que o rondam e de todas as outras que habitam o subjetivo de suas personagens principais, talvez eu escreveria a história de Áurea, uma mulher que imagino linda, com cabelos sempre alinhados e roupas de seda esvoaçantes. Essa mulher que é puro éter contra os traços sublinhados em carvão de Bruno e Márcia, possuía tudo do muito que a maior parte das pessoas ambiciona para si: uma carreira glamourosa, uma herdeira com nome de princesa e um marido dedicado. Ainda assim, Áurea queria mais. E se, mais do que narrar as histórias de qualquer um, fosse possível ao autor apagar o que foi escrito e reescrever novas páginas, a partir do final, acredito que me sentiria tentada a fazer de Áurea a amante apaixonada, dedicada e admiradora que Bruno idealizara. Mas, então, seria desleal com Márcia porque essas são características dela, e não da mãe de Helen.
De qualquer maneira, do azar de Bruno nasce a sorte de Márcia e do encontro casual deles na danceteria - sim, seu encontro fora casual, mas não sua escolha - nasce uma série de causalidades que os levam a se reencontrar sob uma perspectiva diferente e única. Nesse reencontro, os amantes descobrem que, sós em suas idiossincrasias, não estão sozinhos no aspecto insólito de suas decisões a partir do momento em que pressentem a chegada do amor. Por isso Bruno releva as contradições infantis de Márcia e, esta, ignora a dúvida de ele passar uma manhã e uma tarde com ela apenas porque não tinha meios de ir embora dali.
Acabo de me lembrar que Márcia pergunta a Bruno se alguém já havia controlado o seu destino. Por mais contraditória, insegura e imatura que seja, ela não é uma mulher simplória. E sabemos que, além de inteligente, Márcia é alguém que precisa decidir o próprio destino para se sentir pertencente ao mundo e à realidade. Não acredito que fosse seu objetivo manipular o rapaz por quem desejava se apaixonar até porque, àquela altura, ela já descobrira que não era uma boa jogadora. Penso que a pergunta de Márcia, se Bruno possuir uma sintonia fina o bastante para lhe perceber o subtexto, soará como um convite tácito, mas que diz a ele o essencial de si mesma; se a própria jovem responde por Bruno, lhe dizendo que ele escolhe quando entrar, quando sair e quando voltar, gosto de acreditar que ela poderia mesmo ter-lhe sugerido o seguinte: quer fazer o seu destino junto com o meu?    

in(só)lito capítulo 8

"Rising Road", Gustave Caillebotte

"Você sempre morou nesse bairro"?
"Não. Vim para cá há quase um ano".
"E por que escolheu justamente aqui? É tão isolado de tudo...."
Ele caminhava ao lado dela, com as mãos nos bolsos, e ia chutando pedrinhas no chão do parque. Era um  início de tarde de outono inacreditavelmente incomum na capital paulistana: o vento soprava uma brisa gentil e fresca, havia nuvens ralas e esparsas no céu e as folhas das amendoeiras filtravam o sol, que refletia minúsculos vidrilhos no chão de terra batida. Márcia andava com os braços cruzados na altura do peito e, de vez em quando, parava para prender os cabelos. Já haviam circundado o parque mais de uma dezena de vezes. Havia bancos de madeira a cada cem metros, um caramanchão coberto por damas-da-noite e um coreto pequeno, bem na área central. No final da extensão do parque, algumas mães vigiavam seus filhos nos balanços azuis e nas gangorras amarelas. As risadas pueris e os gritos maternos de atenção eram o único som que invadia o silêncio daquele lugar. Desde que haviam começado a caminhar, apenas dois carros passaram por eles, ambos vagarosos e pacientes, como se os motoristas tivessem-nos retirado da garagem apenas para dar uma volta pelo parque. Passaram também pelo carro de Bruno, estacionado rente ao meio-fio, em frente a uma casa branca com portões de madeira azul. Márcia apontara a casa e não precisou dizer mais nada. Bruno concluiu que Adélia e Ivan moravam ali.
"Não é tão longe se você tem um carro".
"Mas é duplamente difícil chegar ou sair daqui se você tem um carro, mas não as chaves".
Riram juntos. A caminhada, o vento, o sol e as árvores cortaram a animosidade que havia entre eles. Se Bruno forçasse um pouco a imaginação, poderia até acreditar que acabara de conhecê-la. E dessa forma, mais relaxados e confortáveis os dois, fizeram de conta que o incidente não acontecera e que não era por ele que precisavam estar juntos naquele momento. A causalidade nascida de uma casualidade funcionou como escudo e remédio para eles. Não era preciso que se lembrassem da noite passada, que Márcia narrasse os fatos para Bruno e cobrasse dele a versão sóbria de sua própria história. Com a tarde livre, inteira pela frente, eles poderiam ignorar as vantagens e desvantagens envolvidas na posição da mulher que se deixa tomar por um desconhecido e do homem que se esquece dos detalhes de sua posse.
"Você trabalha, estuda aqui no bairro?"
"Não. Trabalho no centro. Tomo um ônibus até a estação do metrô e, de lá, vou para o ateliê".
"Ateliê? Você é pintora?"
Ela deu uma de suas gargalhadas sonoras e cristalinas. Bruno gostava daquele som em especial porque, em muitos níveis, a comparação entre os amantes é inevitável; Áurea até sorria de vez em qundo, mas jamais se permitia gargalhar. Sua ex-mulher afirmava que gargalhar era sinal de pouca inteligência e muita falta de boas-maneiras. A proibição era extensiva à Helen, a filha do casal, que já se tornava uma miniatura viva da mãe e, quando mirava Bruno, vinha na forma de uma reprimenda grave e descabida.
"Não! Quem me dera... É um ateliê de costura. Trabalho com um estilista. Bem, ele prefere ser chamado de 'alfaiate', de modo que isso me faz uma de suas costureiras".
"Você gosta do que faz?"
Novamente ela pensou para responder. E, mais uma vez, Bruno soube que sua resposta seria honesta:
"É algo que eu sempre fiz, desde criança. Gostaria mais se eu pudesse desenhar alguns modelos e que o meu patrão produzisse pelo menos um".
"Mas você desenha?"
"Às vezes, sim".
"Mas nunca mostrou nenhum desenho para o seu patrão, aposto".
"Como sabe?"
Ele parou de andar, olhou para o céu, deu um suspiro comprido e sentou-se num banco próximo ao caramanchão. Esticou as pernas e os braços, até Márcia ouvi-los estalar.
"Preciso me exercitar mais. Essa caminhada deu para cansar. Vem cá, Márcia. Senta um pouco".
Ela aquiesceu e sentou-se junto dele.
"Sei que você nunca mostrou seus desenhos porque eu também nunca mostrava os meus quando prestava serviços para escritórios de arquitetura".
"Por que você acha que a gente faz esse tipo de coisa?"
"Ou por que não fazemos certo tipo de coisa, você quer dizer".
Ela baixou os olhos e sorriu, baixinho dessa vez.
"Meu irmão é um sujeito corajoso, sabe. Topa qualquer empreendimento, viagem, aventura, o que for para ter sucesso. Ele diz que a gente se acostuma a viver à sombra e que, quando sai dela, fica incomodado com a luz do sol. Viramos toupeiras subterrâneas. Vai ver é por isso".
"Minha mãe costumava dizer que o barco que fica no porto não naufraga em alto mar. Acho que ela queria dizer que não valia muito a pena tentar, já que o fracasso era certo".
"Como assim 'costumava dizer'? Ela mudou de opinião agora?"
Bruno percebeu que ela engoliu em seco e virou o rosto para o lado oposto ao dele. Sentiu um arrepio de gelo percorrer-lhe a espinha. Desejou terrivelmente não ter tocado naquele assunto.
"Minha mãe morreu no ano passado. Diabetes. A casa era dela. É dela".
O vento soprou mais forte e trouxe um guardanapo sujo de sorvete até o bico da bota que ela calçava. Os dois ficaram olhando para aquele pedaço de lixo grudado no sapato de Márcia, sem saber o que dizer. Bruno ajoelhou-se a seus pés, tirou o guardanapo da bota dela e segurou a moça pelo tornozelo. Levantou a cabeça e olhou para ela. Os olhos de Márcia estavam mudos, pela primeira vez desde que se dera conta deles. E o rosto dela era uma sombra pálida e fria de pesar.
"Eu tive vontade de me matar quando minha morreu, Márcia".
"Eu não tinha forças nem para isso, Bruno".
Ele continuava aos pés dela, a mão direita segurando seu tornozelo, um joelho apoiado no chão, o outro, flexionado.
"Mas aí meu irmão, que sofreu como o diabo, me contou que a mãe sempre dizia que um morto não tem o direito de controlar o destino de um vivo. Ela falava isso do meu pai, que nem morto estava, mas era como se estivesse".
Bruno ouviu-a reprimir um soluço. Então um gemido rouco escapou-lhe à garganta e, por um momento, ela pareceu prestes a desabar em pranto. Mas nem uma única lágrima roçou-lhe a face.
"Sua mãe estava certa. A bem da verdade, nem mesmo um vivo tem o direito de controlar o destino de outro, não é?". E esticou a mão para ele, puxando-o de volta ao banco.
"É. Acho que não. Pelo menos em tese".
"Alguém já tentou controlar o seu destino, Bruno?"
"Além de você e de sua amiga, me deixando sem as chaves do carro e de casa?"
"É. Além de nós. Nossa tentativa se revelou um fracasso e tanto".
Agora era a vez de Bruno ponderar sobre a resposta. Certas perguntas são tão íntimas e inesperadas que não se pode nem ao menos fingir uma resposta sem análise prévia. Márcia olhou para ele. Gostava dos seus cabelos escuros, arrepiados na franja e com pequenas ondas na nuca. Quis tocá-lo ali, enquanto ele pensava na pergunta que havia lhe feito. Primeiro ajeitou os fios com delicadeza, depois afundou os dedos nas mechas, até que tocassem seu couro-cabeludo. Acariciá-lo fazia com que ela se sentisse mais mansa, menos tensa.
"Eu não acho que a sua tentativa tenha sido um fracasso total".
"Parcial, então?"
"É. Talvez. Não é uma pergunta fácil."
"Sabe, Bruno, mesmo que eu tentasse controlar o seu destino, ou mesmo que eu quisesse, não acredito que seria possível".
"Por que não?"
"Porque você decide quando entrar, quando sair e quando voltar."
"Nem sempre foi assim, Márcia".
"Mas é assim agora. E, para mim, porque você entrou na minha vida agora, é como se tivesse sido assim sempre".
"Então quer dizer que eu entrei na sua vida?"
"E esqueceu as chaves do lado de fora".
Ele ainda sorriu antes de beijá-la na boca. Márcia abraçou-o e sentiu que ele a puxava para o seu colo. A pressa e a ansiedade da noite anterior não existiam mais. Eles já tinham possuído um ao outro. Agora era a hora de decorarem os traços, os gostos, as cores e as palavras um do outro. Bruno ouviu o ronco de um motor de carro ao longe, mas não se preocupou em soltar Márcia. Ela valia a pena cada aborrecimento daquele domingo insólito.
"Ei, Márcia. Tudo bem aí?"
Adélia parara seu carro em frente ao banco onde estavam, do outro lado da rua. Ivan vinha no banco do carona e olhava um livro, para não constranger a mulher, sua amiga e o rapaz desconhecido.
"Adélia! Nossa, que surpresa. Esse aqui é..."
"Eu sei, querida. Tudo bem, Bruno?"
O véu do constrangimento caiu sobre eles como uma montanha de terra úmida. Bruno meneou a cabeça em sinal afirmativo e pigarreou.
Adélia saiu do carro, foi até eles, abraçou Márcia brevemente e entregou-lhe um pequeno molho de chaves. Elas tilintaram em sua mão e aquele som pareceu-lhe insuportável.
"Obrigada, Adélia".
"Tudo bem, querida. Sua mãe teria feito o mesmo. Só não teria se esquecido de devolver as chaves na manhã seguinte!" - e deu um riso sem-graça - "Desculpe, Bruno. Meu marido e eu voltamos o mais rápido que pudemos. Você sabe como é o trânsito da praia para cá no domingo..."
"Claro. Não há necessidade de desculpas. Eu é que preciso agradecer".
"Então tudo está bem. Vou indo agora. Márcia, juízo, menina".
"Ora, Adélia, o que é isso..."
"E você, Bruno, não tem mais nada de menino, mas um pouco de juízo também lhe cairia bem".
"Adélia. Venha. Temos que ir" - era Ivan, numa tentativa malograda de frear a personalidade autoritária da mulher.
"Até mais, gente. Boa sorte para vocês. Acho..." - e voltou para o carro, partindo em seguida, deixando Márcia e Bruno como duas estátuas de sal, coladas ao chão.
Ela o olhou demoradamente, tentando prever se ele a abraçaria ou beijaria. Mas não fez nem um, nem outro. Apenas olhava seu rosto, estudando cada nuance das expressões de Márcia. Ela estendeu a mão para ele, a mão que estivera crispada sobre o chaveiro prateado.
"Suas chaves, Bruno. Agora não temos mais desculpas para estar aqui".

in(só)lito capítulo 7

"The Cardsharps", Caravaggio

Bruno não estava apenas certo em associar o apartamento de Lira, a mãe de Márcia, a um local opressivo e que os levaria a debates infrutíferos. É comum que, em situações onde a lógica e o bom-senso não se aplicam, os indivíduos se permitam utilizar-se da intuição para fazer determinadas opções. O mesmo acontece, por exemplo, num jogo de cartas fechado de cassino, como o blackjack, também conhecido como vinte-e-um. O blackjack é tão somente um jogo de apostas, em que vence o jogador que tiver na mão mais pontos do que a banca, isso sem ultrapassar 21 pontos (daí o nome do jogo). A carta mais elevada no blackjack é o Ás, e vale dez pontos. Se tanto a banca quanto o jogador tiverem um Ás, o resultado é um empate.
A popularidade do vinte-e-um em cassinos deve-se ao fato de o jogador poder, além de apostar trivialmente, contar as cartas. Todo jogador sabe que a banca tem sempre vantagem sobre os apostadores. Por isso, o jogador profissional aprende a contar as cartas para tentar reduzir as vantagens da casa e, dessa forma, reverter as cartas da mesa em seu favor. Ocorre que existem inúmeras técnicas de contar as cartas no vinte-e-um, técnicas envolvendo valores estimados às cartas, noções de probabilidade e memorização. Além das dificuldades intrínsecas à contagem, há também os sistemas de vigilância dos cassinos que, logo que percebem um jogador em atitude suspeita de observar e contar as cartas, livram-se dele e garantem que sua fama seja espalhada nas demais casas de jogo. Dessa maneira, o que impera mesmo no blackjack, ainda que haja gênios da matemática e novas técnicas de contagem, são as apostas.
Quando um homem e uma mulher decidem ser amantes, estão metaforicamente jogando vinte-e-um, ao menos no início da partida, que envolve conquista, confiabilidade, concessão e entrega. O ideal é que ambos se revezem na interpretação do papel da banca, ou seja, que cada um dê as cartas em uma partida, permitindo ao outro tanto contar as cartas - e, aqui, leia-se usar de lógica e bom-senso - quanto apostar, ou seja, utilizar-se da intuição e blefar. Desse acordo tácito e sutil que é o revezamento dos amantes entre as posições de "banca" e "apostador", pode surgir a vitória de ambos (o que seria um princípio de relacionamento), a derrota sofrível do jogador (aspirante à amante que fica à mercê da jogatina egoísta do manipulador que insiste em dar as cartas o tempo todo) e, em última análise, a quebra da banca (ninguém sai com o Ás, o baralho é marcado ou o jogador desiste de apostar no vinte-e-um e vai jogar, sozinho, numa slot machine). Em todo caso, tal como no blackjack dos cassinos, o jogo da conquista amorosa envolve muito menos lógica do que intuição, blefe e apostas.
Márcia não gosta da idéia de revezar com Bruno seu papel de dealer, aquele que dá as cartas. No entanto ela intui que, se insistir em manipular o jogo incessantemente, o rapaz por quem quer se apaixonar vai desistir de apostar numa banca que tem apenas vantagens. Por isso ela concede, confia e entrega suas cartas a Bruno; para conquistá-lo. Em outras palavras, Márcia abre mão da posição confortável na banca para se sentar à mesa como mera jogadora porque deseja vencer Bruno, ver as cartas dele, fazê-lo apaixonar-se por ela, conquistar sua confiança e, acima de tudo, sua exclusividade de amante.
Mas Márcia não é boa jogadora. Aposta pouco para perder apenas o suficiente, temendo perder tudo. Não nasceu para freqüentar cassinos, nem tampouco enredar-se em jogos de amor. Por outro lado, também não dá as cartas da melhor forma que poderia. Faltam-lhe a habilidade dos dealers e a auto-confiança da banca. Assim, querendo embaralhar o jogo à exaustão, ela mesma se perde com as figuras, números e naipes, mostrando-se uma amante ingênua, contraditória e mimada. Em resumo: Márcia não sabe contar cartas; a lógica e o bom-senso lhe escapam quando quer se apaixonar. Mas é igualmente fraca nas apostas e no blefe porque, ao permitir que a intuição a domine, ela acaba abrindo o próprio jogo e pondo a partida a perder.
Bruno, em contrapartida, esteve tanto tempo na posição de jogador que precisou aprender as técnicas para driblar a banca e não acabar na sarjeta da vida e do amor. Ele usa a razão e a lógica quando estas lhe são possíveis e, quando não, aposta muito para ganhar ainda mais, já que não tem nada a perder. É um jogador comedido, entretanto. Observa a maneira como a banca dá as cartas, aprende seus truques e fraquezas e lê as intenções veladas nos olhos do oponente. Bruno não pretende quebrar a banca porque sabe que, se o fizer, não terá mais onde nem com quem jogar. Ele aceitaria a posição de apostador com resignação se intuísse que o outro lado conhece perfeitamente o baralho com o qual joga. Mas há muito Bruno percebera a inaptidão de Márcia, ainda que a sua persistência em manipular a partida seja excitante para um homem como ele, mais velho e calejado do que ela. Assim, Bruno blefa e finge não conceder, confia além da medida e exige dar as cartas para virar o jogo não em seu favor apenas, mas em favor de um desejo seu de que ele e Márcia possam jogar outras partidas.
Quando Bruno insiste para que Márcia dê uma volta com ele, está utilizando tanto a lógica - para revezar com ela a posição de dealer - quanto a intuição; ele aposta que uma mudança de ares os fará bem, assim como jogadores "marcados" pela banca precisam freqüentar cassinos diferentes. Intui que há algo de muito impessoal no apartamento onde Márcia mora e associa tal imparcialidade à sensação de sufoco que o embate com a mulher por quem ele acredita poder se apaixonar lhe causa. Blefa com ela o tempo todo, mas lhe dá abertura para dizer algo que a faça sentir-se no comando da partida quando, de fato, está sendo conduzida.
Não seria espantoso que os demais apostadores e dealers do cassino onde Márcia e Bruno jogam começassem a se perguntar porque os dois insistem numa mão de pontuação tão baixa quando poderiam, facilmente, comprar novas cartas da casa ou simplesmente trocar de mesa. Os demais personagens desse cassino, acostumados à clausura dos salões esfumados e ao perde-ganha exaustivo dos desencontros amorosos, desconhecem o valor das idéias e o poder do desejo de que elas vivam através da figura do amante escolhido. Márcia quer se apaixonar por Bruno porque já se apaixonou, a priori, pelo conceito desse rapaz inserindo-a em seu mundo; Bruno acredita poder se apaixonar por Márcia porque já consegue, a posteriori, apaixonar-se pela mulher peculiar e única que o fará esquecer-se da vida que levara até então. 

23 de fevereiro de 2011

in(só)lito capítulo 6

"Lua de Mel do Pintor", Frederic Leighton

Sentou-se sobre as pernas cruzadas, de frente para ele, no divã. Pegou uma das almofadas pequenas e cobriu com ela o regaço que se formava ali. Olhou distraída pela janela lateral, mas Bruno não lhe fisgou a isca. Foi até ela, tomou-lhe uma das mãos e pediu que se levantasse. De pé, podia observá-la por inteiro, à altura dos olhos. A pele de seu pescoço era tão branca que ele antevia um feixe de veias azuladas no ponto em que as clavículas se encontravam; aproximou-se mais dali e viu aquela carne macia tremer sob o seu pulso. A respiração dela estava mais acelerada e gotículas de suor cobriam-lhe a testa, o nariz e as bochechas. Ela puxou a mão com força para se soltar, mas Bruno não fez a menor menção de deixá-la sair.
"Sabe, eu não me lembro do nosso primeiro beijo. Então é como se não houvesse existido, concorda?"
"Essa sua falta de memória é um insulto para mim, sabia?"
"Insulto é você me esticar feito uma corda, para ver se arrebento ou não".
"Não faço nada disso. Só estou esperando o tempo passar para você pegar as suas chaves e ir embora de uma vez".
"Você é tão contraditória, mocinha. E esse seu jogo infantil de palavras não funciona mais".
"E você se garante com esse charme de bêbado desmemoriado?"
"Você parece ser mais esperta do que isso, Márcia. Percebeu que eu não estava nada sóbrio muito antes de me convidar para a sua casa. Então, cá estamos. Para que bancar a garota mimada quando ainda temos tanto tempo para esperar passar?"
As palavras de Bruno tingiram o rosto dela de um carmim humilhado, severo e sufocante. Márcia sentiu os olhos arder de raiva e tentou empurrá-lo para longe de si. Uma onda de pavor repentino lambeu-lhe por dentro e congelou suas vísceras; o homem frágil e facilmente manipulável do início da manhã havia desaparecido. Aquele era um desconhecido completo para ela. A relação de eqüidade deixava-a desamparada e ela se sentia uma tola por ter permitido que ele subisse novamente ao apartamento.
"Você tem maneiras muito peculiares de tomar as mulheres que quer". Sua voz soou falhada, como um débil sussurro.
"Você é uma mulher muito peculiar. Mas nem por isso, ou especialmente por isso, vou tomá-la à força, se é o que você está esperando para marcar mais um ponto nesse jogo besta".
Disse isso e soltou-lhe os braços. Márcia se surpreendeu com o misto de alívio e desapontamento que sentiu quando o viu caminhar até a porta. Tudo vinha acontecendo de uma forma muito errada entre eles, mas ela não podia deixar de pensar que se optassem pela discórdia, o erro seria ainda maior e irreparável. 
"Você não precisaria me tomar à força".
Suas mãos crisparam-se de ansiedade quando disse isso. Bruno voltou-se para ela, a expressão carregada de cansaço, frustração e cólera. Não compreendia porque ela, então numa posição favorável, insistia em brincar de gato e rato com ele. O jogo até poderia ser excitante no início, mas logo tornava-se tedioso e sem sentido, principalmente entre os dois, que já haviam estado juntos. Quis abrir a porta, sair daquele apartamento onde o tempo parecia não correr, chamar um chaveiro e reportar o furto do carro. Mas ao mesmo tempo queria aprender a calar aquela mulher e pagar para ver se ela realmente valia tanto aborrecimento.
"Vamos dar uma volta, Márcia. A gente precisa se conhecer. Eu quero conhecer você".
"Você já me conheceu".
"Não é verdade. Eu tive você por uma noite. Isso não é conhecer alguém".
"Sob essa perspectiva, então eu tive você por uma noite, Bruno".
"E uma noite apenas basta para você?"
Ela pensou para responder. Ponderou. Pesou possíveis injúrias, promessas e verdades. E por aquela breve e distinta hesitação, Bruno teve certeza de que ela seria franca, talvez pela primeira vez desde que acordaram:
"Eu não sei. Realmente não sei se uma noite apenas me basta, se eu desejo o dia seguinte, se quero que você me conheça".
Ele sorriu, já se acostumando ao modo esquivo dela: "Mas eu já conheci você, não foi o que disse?"
"É diferente. Foi diferente".
"Então pronto. Vamos dar uma volta e então, quem sabe, você e eu não descobrimos de quantas noites precisamos para nos fartar um do outro".
"Você não precisaria se fartar de mim para conhecer a mim".
"Eu quero acreditar nisso, Márcia. Minha insistência já é um sinal de que acredito, ao menos em parte".
"Querer acreditar não basta, Bruno..."
"Eu sei. Mas você está dizendo isso para mim ou para si mesma? Venha. Esse apartamento tem alguma coisa que sufoca, que faz a gente perder a cabeça".
Quando Márcia abriu a porta de vidro da entrada do edifício, a lufada de vento fresco que embaraçou seus cabelos e a luz dourada do sol, filtrada pelas nuvens de outono, deixaram claro para ela que Bruno estava certo.

in(só)lito capítulo 5

"O Amor Entre Ruínas", Edward Coley Burnes-Jones

Não resta muito o que pensar quando um homem e uma mulher admitem que foram atraídos não pela beleza, inteligência, posses, nem pelos trejeitos um do outro, mas pela estranheza que parecem emanar no meio em que se encontram. Como se o alvo da atração deixasse de ser o indivíduo em si mesmo, mas a concepção de uma idéia que o sujeito faz nascer na consciência do admirador. Assim, Bruno sentiu-se magnetizado pela suposição de que Márcia, com seu vestido démodé e um jeito tímido de caminhar, com os olhos voltados para o chão, pertencesse à outro tempo, como se estivesse na danceteria por mera obra do acaso. Da mesma maneira, Márcia permitiu a si mesma seduzir-se pela idéia de que Bruno, o único homem sério e solitário numa multidão de homens escandalosamente alegres e cercados de outros homens e mulheres, teria ido à danceteria naquela noite pela primeira vez. Para Márcia, o rapaz de cabelos e olhos escuros, estatura mediana e expressão melancólica, tão absurdamente deslocado num ambiente de música, dança e flerte escancarado, estava destinado especialmente a ela, uma jovem que, não raro, encontrava na própria melancolia um muro intransponível para a adequação plena ao mundo, algo a que Márcia aspirava sem muito êxito.
Bruno, por sua vez, idealizava na figura distante de Márcia e em suas maneiras antiquadas a casualidade em forma de mulher, uma travessia para um universo diferente do seu, um mundo do qual Bruno desejava escapar a todo custo, muito embora retornasse sempre ao mesmo e odioso cotidiano. Os dois se esbarraram numa noite, sentiram-se familiarizados com a estranheza um do outro, trocaram beijos e se apaixonaram pela idéia de fuga que representavam mutuamente: Márcia era o bilhete de ida para longe da mesmice que Bruno via em seu próprio mundo; Bruno era a ponte que Márcia precisava cruzar para sentir que fazia parte da pintura do mundo ao qual ela sonhava pertencer. Na contradição de idéias, os dois se atraíram e encontraram, não porque fossem o oposto um do outro, mas porque reconheciam, à distância, um náufrago como eles próprios quando se deparavam com um.
Naquela noite, quando Bruno a tomou pelo braço e disse-lhe que era diferente de tudo e de todos ali, Márcia detectou um código cifrado, o apelo de um homem que se sentia igualmente estrangeiro e que, com ela, poderia produzir eco. Ela percebeu o olhar vago do rapaz e o hálito azedo de bebida, mas ignorou esses sinais reais em favor de um alerta subjetivo que sua mente lhe enviava. Márcia não desejava, nem precisava ouvir que era bela, que tinha cabelos exuberantes e olhos verdes incríveis. A palavra-secreta que abriria em sua alma o espaço para o encantamento, a paixão e o erotismo era "diferente", mesmo que diferente não significasse belo, nem exuberante ou incrível. Como num sistema mecânico de engrenagens, o vocábulo "diferente" na voz de um homem nada comum acendeu uma fagulha no corpo de Márcia e o beijo de Bruno, sopro cálido e bem-vindo, espalhou as centelhas.
Em pouco tempo abraçavam-se, beijavam-se e exploravam-se como amantes antigos, e Márcia teve certeza de que não deveria, nem desejaria, resistir àquele desconhecido. Afastou-o com gentileza de si, para olhar seu rosto, tomar fôlego e coragem para lhe perguntar seu nome. A voz dele foi um sussurro em seu ouvido. E para ela, naquele instante que ficaria imobilizado no tempo feito um inseto em âmbar, não havia nome mais belo e atraente do que o dele.
A insegurança de Bruno na manhã seguinte era mais do que razoável. Um indivíduo sem memórias é uma página em branco onde aquele que tem lembranças, imaginação e audácia pode escrever à revelia do dono do livro. Naquele sábado, Bruno estava embriagado não apenas das muitas doses de vodka que tomara - e a qual, de fato, não estava habituado - mas surpreendia-se igualmente bêbado de sensações e idéias. Por isso teria que forrar a alma de confiança e tomar cada palavra de Márcia como real naquela manhã, já que era ela a detentora da memória e, portanto, a narradora dos fatos. Daí a insegurança, o embaraço e a atitude arisca, mesmo rude, de Bruno. Ele jamais saberia, até porque Márcia não lhe concederia o privilégio de tal informação no xadrez da conquista, mas ele não se esquecera de seu nome em momento algum, até porque ela jamais lho dissera, não até aquela manhã. O voto de confiança que Bruno depositara em Márcia devia-se mais a uma fraqueza dele próprio do que ao legítimo desejo de se entregar. Por outro lado, Márcia também lhe concedia o benefício da dúvida quando, sabendo estar ele preso a ela pela ausência das chaves do carro e de casa, ainda permitia que ficasse em seu apartamento. Mais sensato seria que ela, certa da indisposição que causava pelo esquecimento da amiga, pedisse que ele voltasse mais tarde, quando já tivesse recuperado suas chaves. Entretanto, os reais sentimentos humanos escapam até mesmo aos narradores da história em que figuram, de maneira que a confiança de Bruno poderia mesmo refletir um vago desejo de entrega, assim como Márcia talvez acreditasse na intensidade das emoções que Bruno vivera com ela na véspera e na possibilidade de ele agora, sóbrio, as querer vivenciar novamente.
Os fatos na linha do tempo da vida de Bruno eram objetivos e nada líricos. Estava recluso a uma rotina de trabalho maçante, sem qualquer desafio ou motivação, confinado a uma vida sem lazer, conversas nem sexo desde que se separara de Áurea. O deles tinha sido um divórcio dolorido, não só porque havia no meio uma criança de dois anos na época, mas porque Bruno concedeu a separação em grande conflito pessoal, ainda apaixonado por Áurea. Entretanto, por mais que a amasse e desejasse viver com a esposa, era preciso que seu amor-próprio falasse mais alto. Pelo menos era o que sua mãe, seu irmão e sua consciência lhe diziam diante do fato de Áurea ter se apaixonado por outro homem e decidido se mudar com ele para o lado oposto da cidade.
Espera-se que três anos sejam suficientes para alguém se recuperar do luto pela perda de uma esposa e de uma filha. E, de fato, três anos foram um bálsamo para Bruno. Em bem menos tempo ele percebeu que o que sentira pela mulher não fora amor, mas um sentimento de dependência para com o estilo de vida que ela levava. Áurea era decoradora e vivia rodeada de arquitetos, designers e artistas, gente que freqüentava com eles coquetéis badalados nas áreas nobres de São Paulo, que conversava abertamente sobre tudo, que pôde estudar quando e o que queria porque nunca precisou ajudar a mãe abandonada pelo pai, gente como Bruno jamais seria e que, involuntariamente, atraía sua mulher como ele jamais teria sido capaz. Não demorou muito para que Bruno compreendesse que, em cada um daqueles coquetéis, ele representava não mais que  uma bengala de Áurea, o marido gentil e dedicado que passava as noites com a filha do casal enquanto a mulher entregava-se aos encantos de um expert em Feng Shui para interiores. Depois de três anos, o que restava nele não era amor, nem sequer rancor; apenas a sensação real de um vazio absoluto e do fracasso pessoal.
Então ele decidiu por fim à reclusão e saiu sozinho. Escolheu uma danceteria qualquer, provavelmente porque ouvira alguém no trabalho falar que era um bom lugar para se divertir. Não era um lugar de que gostasse realmente, mas havia bebidas, pouca luz e gente diferente para ele observar. Nesse espírito deparou-se com Márcia. Ela não era apenas diferente, mas bonita, carinhosa e gentil, com uma boca ainda mais dadivosa do que ele conseguia se lembrar. Falava muito pouco sobre si mesma, preferindo fazer perguntas neutras e ouvi-lo. E não olhava para ele com estranheza, como se pertencessem a mundos diferentes, tal qual o fazia Áurea. Em oposição a esta, Márcia o olhava com atenção e familiaridade, quase reverência, e tal admiração vazada pelos olhos de uma mulher era o que Bruno podia conceber de mais erótico até então.
Um amante é, antes de qualquer coisa, fruto de um passado de amores, expectativas e desilusões de outrora. Assim, quando Márcia se entrega aos beijos de Bruno na penumbra esfumada de uma danceteria, não são apenas Márcia e Bruno que se abandonam mutuamente, mas cada expectativa soterrada do passado aliada a novas promessas, mesmo que íntimas e não-ditas. Desencontros sucessivos e decepções amargas envolvem o indivíduo numa mortalha de sentimentos, mas o amante, intrínseco ao desejo mais privado do ser, sobrevive, latente e louco para vir à tona, respirar e ansiar novamente. Assim, o encontro de Bruno e Márcia não foi nada casual, embora possa tê-lo parecido à primeira vista; em contrapartida foi, sim, uma escolha objetiva, ainda que de natureza subjetiva, dos dois. E não apenas dos seres indivisíveis Bruno e Márcia, mas principalmente dos amantes que haviam sido, dos sonhos que ainda viviam neles e dos amantes que, de fato, aspiravam ser.
Quando Márcia deu-se conta de que Bruno estava embriagado demais para dirigir ou sequer sair dali sozinho, telefonou para Adélia, sua vizinha e amiga de sua mãe, Lira, que morrera há menos de um ano. Pediu que Adélia tomasse um táxi até a danceteria e, em seguida, guiasse o carro de Bruno até sua casa. A amiga protestou a princípio, mas achou melhor socorrer a moça, mesmo que apenas por dívida à Lira. Com a morte da mãe, o apartamento ficara para Márcia que, desde então, mudara-se para lá. Não tinha irmãos nem filhos, e seu pai morrera antes de a menina completar três anos. Era solitária, meditativa e silenciosa. Gostava de assar bolos e cozinhar macarrão aos domingos e, durante a semana, trabalhava num ateliê de costura no centro da cidade. Quando tinha tempo e disposição, também desenhava alguns modelos de roupas e tinha até bastante talento para isso, embora nunca houvesse mostrado nenhum deles a seu patrão, costureiro e estilista.
Mas de nada disso Bruno tomou conhecimento, não porque as informações tivessem afogado no esquecimento do álcool, mas simplesmente porque Márcia optara por não lhe revelar mais do que o essencial: o desejo incontido de dar vida à amante que ela sonhava ser e, para tanto, a disposição de se entregar a um recém-conhecido. Era de Márcia a vantagem de manter sua história em segredo e poder narrar a de Bruno, um delator etílico de si mesmo. Mas era Bruno quem detinha o privilégio de decidir voltar àquela casa antiga ou não.

in(só)lito capítulo 4

"A Conversa", Toulouse Lautrec

Sentaram-se na saleta de entrada, ele numa poltrona próxima à janela, ela, num divã de cerejeira pequeno, adornado por almofadas de veludo amarelo. O silêncio seria total, não fosse pelo tic-tac do pêndulo prateado de um relógio de parede. Bruno observava cada detalhe daquele apartamento atípico. Havia duas janelas na saleta e mais três na sala de estar. Os cômodos eram todos interligados por um corredor comprido de tábuas corridas. O piso não brilhava. A ele parecia que Márcia optava por manter o local com essa aparência rústica. Cortinas de organza cor de creme cobriam cada uma das janelas e estas eram de madeira pintada de verde pálido. Atrás do divã onde ela se recostava, encostada à parede, uma cristaleira pequena abrigava artigos de cerâmica e algumas taças foscas. Os lustres eram de cobre e pendiam do teto como ramos de bouganville. Cada minuto de imersão naquele apartamento significava horas distante do mundo de trânsito, balbúrdia, tecnologia e competição ao qual ele estava habituado.
"Adélia não está em casa. Nem o Ivan."
"E o cenário vai ficando cada vez mais bizarro..."
"Eles devem ter viajado. Não costumam ficar na cidade aos domingos".
"Eu suponho que sua amiga tenha telefone móvel. Ou ela vive numa bolha do século passado, como você?"
"Na verdade, não. Fico aliviada em saber que você não seja um arquiteto, como queria. A decoração desse apartamento não é do século passado".
Calou-se. Travar nova batalha com aquela mulher não o levaria a lugar algum. Observou-a pegar um pequeno bloco de notas, consultá-lo e, em seguida, discar os números. A forma como Márcia curvou-se ao telefone, deixando os cabelos cobrir seu rosto, fez com que ele se sentisse constrangido por ela. Foi até a cozinha e esperou na bancada onde haviam tomado café. A sensação de que havia sido enredado numa armadilha ia se volatizando, até restar nada mais do que um inconveniente a ser resolvido de maneira prática. Sentiu fome. Consultou o relógio de pulso; já passava das nove horas e ele só havia tomado alguns goles de café. Serviu-se de uma fatia de bolo de laranja. Não se parecia com aqueles que comprava no supermercado da esquina de sua casa. Será que ela o teria feito? Partiu uma segunda fatia. Gostou especialmente da cobertura açucarada, úmida do suco de laranja. Havia também queijo curado, manteiga fresca e torradas. Comeu um pouco de tudo, com mais uma xícara grande de café para acompanhar. Volta e meia olhava pela janela da cozinha e avistava as copas das amendoeiras do parque, balançando na brisa. Escutava a voz de Márcia vindo da saleta, o relógio antigo de parede e uma janela batendo ao longe. Aquela quietude já não o irritava mais. Ao contrário, sentia-se equalizado à ela. 
"Eles foram para Ubatuba. Adélia levou suas chaves com ela. O carro está a duas quadras daqui, no final do parque. Bem na frente da casa deles, para dizer a verdade". 
"Hum... Então a sua amiga não entregou as chaves para o... Cipriano. É isso?"
"Romano. É o porteiro da noite. Não. Ela disse que achou melhor guardá-las. O Romano só está aqui há três semanas".
"E em que parte da história entramos eu, a manhã do dia seguinte, o carro e a volta para casa?"
"Desculpe, Bruno. Isso é tudo muito... insólito, sabe. Adélia tinha planejado tocar aqui bem cedo para entregar suas chaves, mas esqueceu completamente. Disse que só se lembrou agora, quando liguei".
Ela olhou para a bancada da cozinha, o bolo partido, migalhas no prato. Forçou-se a sorrir, parecendo completamente deslocada.
"Pelo menos você não está mais em jejum. Mas eu suponho que as chaves da sua casa não estejam com as do carro..."
"O que você acha, Marcinha?"
"Só o Amauri me chama assim"
"Ah... Eu aposto que a Adélia e o Ivan também..."
"Não."
"'Não', eles não chamam você de Marcinha ou 'não', você não acha que as minhas chaves de casa estejam com as do carro?"
"As duas coisas".
Bruno riu. A risada dele era curta, mas intensa e grave. Ela não sabia se deveria sorrir, fazer um comentário inteligente ou ficar calada. Optou pela última alternativa. Não sabia mais como agir numa situação tão inesperada.
"Pois é, Márcia. Você achou errado. Minhas chaves ficam juntas. E, agora, estão dando um passeio em Ubatuba, veja você".
"Eles voltam hoje mesmo, à tardinha. Eu... Bruno, nem sei o que dizer. Quero dizer, se não fosse por Adélia, nem teríamos chegado aqui, mas..."
"Também não tenho muito para falar. Eu nem me lembro de ontem à noite..."
"Você não se lembra de absolutamente nada? Está falando sério?"
Ele percebeu a mudança de tom em sua voz. Não era apenas curiosidade; havia uma pontada de mágoa, um ressentimento velado que ela insistia em ignorar com altivez. Ponderou a situação pela perspectiva dela por um momento. Se não fosse pelo deslize da amiga, ela teria todo o direito de expulsá-lo dali a pontapés. No entanto, estavam atados por um incidente, ambos ressentidos em solidão. A diferença é que Márcia vivenciava essa solidão nas lembranças e Bruno, na suposição do que poderia ou não ter acontecido. E na solidão da memória dela, que também representava uma ameaça para a segurança dele, Bruno sabia existir uma serpente enroscada, prestes a esmagar a auto-estima de Márcia.
"Também não é assim. Claro que me lembro do que me marcou. Do importante. Os detalhes é que me escapam".
"Mas não são os detalhes que deveriam contar como 'marcantes' num encontro casual?"
"Eu falava dos detalhes práticos, mocinha. Carro, chaves, nomes, histórias".
"E esses detalhes não são importantes?"
"Sim. São importantes. Mas eu estaria mentindo se dissesse que são o que marca num encontro casual".
"Eu não saberia dizer o que é marcante num encontro casual. Afinal, é tudo tão... casual."
Ele pensava que estaria preparado para algo fortuito como conhecer uma garota na danceteria, levá-la para cama e seguir a vida incólume no dia seguinte. Mas não estava. Naquele momento, vendo-a de pé na porta da cozinha, os cabelos presos em desalinho no coque frouxo, braços envolvendo o próprio tronco e a expressão desolada de alguém que não entendia como havia chegado até ali, Bruno foi atingido pela certeza de que bastava um único deslize no plano de estar com alguém sem, de fato, envolver-se com ele, para que até o momento mais casual fosse cerceado pela causalidade.
Foi até ela e, vencendo um embaraço inicial, pegou-a pela mão e levou-a até a saleta de entrada. Haviam cruzado uma ponte de onde não possuíam meios para retornar, pelo menos não naquele momento, não enquanto ainda houvesse uma coincidência a dispô-los sobre os pratos de uma mesma balança. Ficou com ela perto da porta, para não se sentir rejeitado demais caso ela pedisse para ele sair.
"Lembro que você foi a única mulher que chamou minha atenção naquela danceteria. Vi você passando, de costas para mim. Você era diferente de tudo, de todos ali".
"Em que sentido?"
Ele deu um suspiro cansado. Em outra ocasião, as perguntas dela o instigariam mas, agora, apenas deixavam-no exasperado. Talvez porque o obrigassem a pensar e, conseqüentemente, a optar por dizer a verdade ou não. 
"Não tenho uma resposta objetiva para isso. Seu vestido, talvez. Parecia pouco... jovial para a sua idade. O jeito de andar. Você olhava para baixo, parecia nem se dar conta do lugar, da música, das pessoas".
"E então, quando eu estava voltando, você segurou meu braço e disse que precisava me dizer uma coisa."
Ele sorriu e sentou-se na poltrona. Tirou os sapatos, recostou-se e esticou as pernas confortavelmente. Aquela conversa não iria terminar tão cedo. E, de qualquer forma, só teria as chaves do carro e de casa à noite. 
"É. Não me esqueci disso. Então eu disse que você era uma figura muito diferente, que não pertencia àquele lugar, e perguntei se queria beber alguma coisa".
"Você também não me pareceu um habitué, Bruno. Estava até mais deslocado do que eu, para dizer a verdade".
"Então por que me deixou beijar você? A minha estranheza seria a sua chance para me deixar sozinho no bar".
Ela foi até ele e se abaixou até que seus olhos se nivelassem. O olhar dela era tão intenso que ele não o conseguiu sustentar.
"Digamos que, talvez, o estranho me atraia."
"Talvez?"
"Absolutamente".
"Muito?"
"Mais do que a outras garotas". Então ela roçou-lhe os cabelos num beijo leve, aspirando o perfume que exalava do alto de sua cabeça. Fez isso como se fosse o gesto mais corriqueiro do mundo, antes de se afastar dele. E Bruno percebeu que já não estava mais contando os minutos para que Adélia e Ivan voltassem de Ubatuba.

22 de fevereiro de 2011

in(só)lito capítulo 3

"Confie em Mim", John Everett Millais

"Então... Acho que é melhor que eu vá agora".
"Eu achava que seria melhor se você dissesse 'muito prazer, Márcia'".
"É muito provável que eu já tenha dito 'muito prazer, Márcia, eu sou o Bruno'. Só não me lembro disso".
"E se eu dissesse que você não quis saber o meu nome em momento algum?"
Ele se levantou da bancada, suspirou fundo, aborrecido com o rumo que ela dava à conversa, fez meia volta e, de costas para a moça, respondeu: "Nesse caso, Márcia," - pronunciou o nome dela silabicamente, como um estrangeiro que ouvisse e repetisse a palavra pela primeira vez - "vai ficar o dito pelo não dito. Claramente é você quem está contando a história aqui, na versão que mais lhe agrada".
"Você acha realmente que eu inventaria coisas a respeito dessa noite?"
Bruno virou-se para ela novamente. Ele tinha olhos grandes, muito escuros, e os lábios se contraíam de raiva, frustração e arrependimento.
"Eu não acho nada. Não tenho como achar. Nem sei quem você é".
"Ah, mas eu sei quem é você. Aliás, você fez questão de me contar. Ou acha que eu tenho um caldeirão de bruxa, fervendo lá nos fundos da cozinha?"
"Eu realmente acho que deveria ir embora daqui".
"Eu acho que essa fala deveria ter sido minha. Mas por que será que ainda estou sentada, esperando que você tome seu café amargo e intragável?"
"Por que você faz tantas perguntas? Já não sabe tanta coisa a meu respeito?"
Ela pareceu refletir por um instante. Mirou a janela atrás dele, estalou a língua nos dentes e levantou-se. Com duas passadas estava a sua frente. Era quase tão alta quanto Bruno, embora ele se lembrasse dela menor, mais vulnerável na noite anterior.
"Tem razão. Mas, por outro lado, você pode ter mentido. Ou inventado um drama sofrível para garantir seu café da manhã. Ou, quem sabe, a vodka realmente tenha funcionado e você teve delírios verbais etílicos."
"Pois é. Muita dúvida no ar. Novamente, vai ficar o dito pelo não dito".
"Você é um sujeito corajoso, Bruno. Corajoso e arrogante. Suas roupas estão no quarto. Os sapatos também. A porta da saída é logo ali, a sua esquerda". 
Disse isso e sumiu pelo corredor. Sozinho na cozinha, Bruno ouviu uma porta se fechar de leve. Baixou os olhos, constrangido, e praguejou em voz baixa. Esperava gritos, portas batendo, exclamações inflamadas e cobrança. No entanto, a fala dela denotava pesar. E aquela tristeza fez nascer em Bruno uma empatia por ela. Mais do que a tristeza, o benefício da dúvida de Márcia aproximava-o dela. Sacudiu a cabeça e foi em direção ao quarto. Ao diabo com tudo aquilo. Havia saído de casa para se divertir pela primeira vez em três anos, conhecera uma garota na danceteria, tivera sexo casual e isso era tudo. Não precisava saber quem era ela, com o que trabalhava, se era casada, solteira ou viúva, se tinha filhos, do que gostava, nem porque morava num apartamento tão antigo da cidade.
Completamente vestido, com a mão à maçaneta, lembrou-se do carro. Tateou os bolsos em busca das chaves e não as encontrou. Também não se lembrava de onde havia estacionado o carro. Dessa vez xingou mais alto. E prometeu a si mesmo jamais beber tanto em sua vida. Seus dias de jovem estudante de Faculdade haviam há muito passado. Ele não tinha mais idade, tempo nem senso de ridículo tão elástico que o permitissem se embriagar a ponto de ter lapsos de memória. Definitivamente aquilo não poderia ser classificado como "sair para se divertir".
Voltou ao corredor e bateu à porta do quarto onde ela havia entrado há poucos minutos. Nem um único som. A exasperação crescia em seu peito em progressão geométrica. Bateu novamente, três pancadas mais firmes agora.
"O que foi, Bruno? Não conseguiu encontrar a saída?" A voz dela soou abafada pela porta, mas ainda era cristalina e firme. Ele não respondeu. Enfiou as mãos nos bolsos e esperou por ela. Segundos depois, abriu a porta.
"Agora você já sabe que deve deixar migalhas de pão pelos caminhos onde anda. Assim, não se perde nunca, Joãozinho". Os olhos dela faiscavam, entre divertidos e raivosos.
"Nossa, como você é espirituosa. Deve ouvir isso sempre, não é? Ou só dos bêbados em delírio etílico?"
"Não. De todos, menos dos bêbados e desmemoriados".
"Escute, eu não quero mais incomodar você. Já fez seu ponto. Não precisa dizer mais nada para me fazer sentir ridículo e juvenil".
"Mas essa não é a minha intenção, absolutamente. Você é que foi muito rude em me pedir café e não tomar nem meia xícara."
Ele abriu a boca para contra-argumentar, mas nem se deu o trabalho. Ela estava com as pernas cruzadas, encostada ao umbral da porta, e parecia estar realmente se divertindo com aquilo. Talvez fosse louca. Havia mulheres bonitas, interessantes e lunáticas no mundo. 
"Eu não sei onde estão as chaves do carro, Márcia, nem onde estacionei".
Primeiro os olhos dela se arregalaram de pura surpresa. Depois, ela explodiu numa gargalhada alta que o fez sentir uma cólera descomunal. Seu rosto ardia pelo vexame. Crispou os punhos e suspirou. Precisava da memória daquela mulher, ou então precisaria ir à delegacia dar queixa de furto do automóvel.
"Eu também não sei, Bruno".
"Como assim 'eu também não sei?' Nós viemos para cá de carro, não foi? Mas não é possível que eu tenha dirigido até aqui. Onde você estacionou?"
"Eu nem sei dirigir, Joãozinho".
"Deus! Pare com isso, sim? Você tem o que, doze anos?"
"Não. Vinte e oito. Você não acha que, numa situação dessas, é melhor fazer humor do que drama?"
"É melhor se ater à realidade. Onde estão as chaves e o carro?"
"Minha amiga veio guiando. Ela mora no bairro. Veio até aqui, nos deixou na portaria, estacionou e entregou a chave para o porteiro. Foi muita gentileza da parte dela".
"Ela estacionou e deixou as chaves com o porteiro? E como você sabe que essa pessoa, essa mulher, essa amiga não se mandou com o meu carro?"
"Porque ela tem o dela. E o marido dela também tem um. E os dois carros são melhores do que o seu. Ela não precisaria roubar".
"Você é esse doce de pessoa com todo mundo, é?"
"Não. Só com analistas de sistema sem senso de humor e que desconfiam de deus e o mundo, menos deles mesmos".
"Vá, vá. Está mais do que claro que essa noite foi um erro".
"Essa também deveria ter sido uma fala minha. Você gosta de dizer o que as mulheres diriam nessas situações, não é?"
Então Bruno perdeu o fio de paciência e compostura que lhe restavam. Deu um passo a frente e segurou-a pelos ombros. Não gritou, não a empurrou, nem a sacudiu, mas o ímpeto para tanto não lhe faltou.
"Por que você faz isso? O que você vai ganhar me tirando do sério desse jeito?"
Pela primeira vez a voz dela era glacial e os olhos, ausentes.
"Eu não vou ganhar nada. Mas você vai perder muito se continuar me segurando desse jeito".
"Desculpe", e soltou-a. "Eu só quero sair daqui. Não é nada pessoal. Mesmo, entenda".
"Claro. Nunca é pessoal. Nem quando a gente conta a vida para o outro".
Ela foi até a porta, abriu-a e fez sinal para que ele a seguisse. Tomaram o elevador e desceram quatro andares. O dela era o último. Bruno olhava o corredor de paredes pintadas de verde da portaria, a mesa de mogno à entrada e o elevador antigo. Tudo ali era muito velho. A sensação era de que ele havia feito uma viagem no tempo, ou entrado nesse prédio do século passado, como se fizesse sol na cidade inteira e chovesse apenas sobre eles, naquele local.
"Espere aqui, por favor. Vou falar com o porteiro".
Observou-a dirigir-se à mesa de mogno, onde um homem calvo, de meia-idade, vestindo calças pretas e uma camisa bege sentava-se, olhando pela porta de vidro da entrada distraidamente. Ela tinha aquele mesmo andar da noite anterior: olhos ao chão, passos lentos, uma graça descuidada, quase leniente.
"Bom dia, Amauri. Tudo bem com o senhor?"
"Bom dia, Marcinha. Tudo indo, minha filha. E o pequeno Perebas? Não vejo mais você sair para passear com ele aos domingos..."
"Ah, Amauri... O Perebas morreu há duas semanas. O senhor não soube, não?"
Bruno acompanhava aquela conversa, estupefato. Ele não estava apenas no século passado, mas também em Adamantina, a cidadezinha de trinta mil habitantes, onde passava as férias à mercê das primas tirânicas.
"Não, minha filha. Que triste, isso. Você deve estar muito chateada..."
"Ele já estava bem velhinho, Amauri. Eu já estava preparada".
Então o porteiro olhou para o lado e notou a presença quieta de Bruno. Encarou-o com olhar neutro, sob óculos de aros escuros de acetato. 
"Então, Amauri, eu vim aqui pegar as chaves do carro desse meu amigo. A Adélia deixou aqui, ontem à noite, com o Romano".
"E Dona Adélia deixou as chaves do carro desse rapaz aqui na portaria por que?"
Márcia pressentiu um movimento de Bruno e olhou-o de esguelha, fazendo um sinal discreto com a mão para que ele permanecesse sentado e calado. 
"Ela estacionou o carro para nós, Amauri. Meu amigo não estava se sentindo bem".
"Ah, Marcinha... Dona Lira não ia gostar nada disso".
"Amauri, meu amigo, por favor, agora não. Onde estão as chaves? O Romano entregou para o senhor no final do turno, não é?"
"Entregou nada, não. Deixa ver se tem alguma chave aqui na gaveta. Vai ver aquele moleque tonto guardou aqui".
O porteiro pôs-se a revirar a gaveta da mesa, encurvado sobre o móvel. O prédio era tão silencioso e a rua lá fora, tão quieta, que Bruno sentiu-se sufocar. Às vezes o barulho cobria buracos em avenidas pelas quais ele não podia mais caminhar. Ou por onde jamais caminhara. Os dois trocaram um olhar mudo, preocupado. Márcia já não brincava mais. Estava muito séria e compenetrada. Bruno sorriu de leve, cinicamente. Agora ele sabia que ela era a protegida do porteiro milenar daquele prédio, que sua melhor amiga se chamava Adélia, que ela tivera um pulguento com o nome mais absurdo que já ouvira e que não passava de uma garotinha da mamãe, que ficaria muito aborrecida quando soubesse que a filha havia passado a noite de sábado com um "amigo". O senso de humor vai embora à medida que o véu do mistério se descortina, não é mesmo, Marcinha?
"É, filha. Não tem chave nenhuma aqui, não. Se dona Adélia deu as chaves para o Romano, ele não deixou aqui".
"Obrigada, Amauri."
"Quer que eu pergunte para o seu Túlio?"
"Não, não mesmo. Não precisa envolver o síndico, Amauri. Eu vou ligar para a Adélia. Ela deve saber me dizer o que aconteceu".
"Se precisar de qualquer coisa, minha filha," - e olhou para Bruno, sem disfarçar a desconfiança - "é só me chamar".
"Obrigada, Amauri. Mas está tudo bem".
Bruno permanecia sentado no sofá da portaria, braços cruzados à altura do peito, ombros tensos e olhar pétreo. Encarava-a firmemente, sem o menor traço de embaraço agora. Na verdade, sentia-se estranhamente superior, mesmo estando à mercê daquela garota desmiolada. Ela havia perdido aquele jogo. Fez cálculos errados, não se preparou para o inesperado. Era como ele, então. Uma garota perdida e solítária, de calças curtas e sem plano B, nua na portaria do prédio mais anacrônico da cidade.
"Você pode esperar aqui, se quiser. Ou lá fora, no parque. Já não faz tanto frio a essa hora da manhã".
"Ou posso subir e terminar meu café intragável".
"Você fez tanta questão de sair, Joãozinho. Não faz sentido querer voltar para a gaiola da bruxa agora".
"Deixo cair migalhas de pão dessa vez. Além do mais, algo me diz que a bruxa não vai cozinhar uma poção mágica para resolver o sumiço das chaves do meu carro em três minutos".
"Seu senso de humor é sempre inexistente ou só aparece em situações de alto stress psicológico?"
"Quase inexistente. Mas escapa às vezes, quando preciso esperar, por exemplo".
"E o que tem isso? Você não costuma esperar pelo que quer?"
"Não em portarias. Em parques, talvez. Mas esse está tranqüilo demais para o meu gosto."
"E qual é o seu gosto, Bruno?"
"Por hora, Marcinha - e sorriu, pela primeira vez aquela manhã - "basta saber que o meu gosto é café sem açúcar".

19 de fevereiro de 2011


e ainda vou acabar caminhando por aquele lugar que vejo todos os dias nos sonhos. e com sonho atingido em lilás, serei passarinho branco com asas de satisfação espalhando sementes trazidas da estrada cinza antiga. mas as sementes serão renovadas pela chuva de melaço e brotarão arcos-íris pequenos cheirosos de riso. em cada arco-íris, um caldeirão de jujubas espera por uma criança afoita ou uma gente grande original. a brisa sopra pipocas multicoloridas, há uma névoa de guache. num galho em formato de lápis, uma gorduchinha balança as pernas, assobia canção de roda. um gato acrobata se embaralha em volta dela, cai no lago de purpurina e ri com os bigodes pro alto. lá na cachoeira alta, um burburinho feliz chama os vagalumes. o céu pontilhado de corações conhecidos mostra que o pensamento se fez vivo, que a vontade honesta escolheu o destino e o anjo da guarda tinha disfarce de intuição.
que pensar em tons delicados permaneça na nossa essência.
que nossas tintas não pesem, que sejam pigmentos pedindo licença para virar lembranças serenas.
que envelhecer nos dê rugas de colcha de retalhos no pensamento: apenas mais espaços confortáveis para dormir memórias.

18 de fevereiro de 2011

in(só)lito capítulo 2

"Confidência", Pierre-Auguste Renoir

O apartamento não era tão pequeno como pensara a princípio, afinal. Com a toalha enrolada à cintura e a pele arrepiada de frio, cruzou o corredor e, à esquerda, encontrou-a sentada a uma bancada de mármore na cozinha. Seus cotovelos estavam sobre a bancada e o rosto, apoiado sobre as mãos cruzadas.
"Tenho uma xícara de café aqui para você. Venha".
Sua voz era sonora, cristalina e divertida, quase zombeteira, embora ela mesma não sorrisse. Mas os olhos dela riam o tempo todo e ele ainda estava tonto demais para decidir se havia malícia ou cumplicidade nos olhos daquela moça. Sentou-se à sua frente, onde ela já havia disposto pratos, talheres, uma xícara e copos. Sentiu-se constrangido por estar usando nada além de uma toalha de banho na cozinha de uma desconhecida com quem havia tido a mais casual das noites, embora soubesse que, se fizesse menção de se levantar para trocar de roupa, ela de alguma forma o impediria. A maneira como o olhava certificava-o disso. À sua esquerda havia uma janela grande e a luz da manhã, agora mais forte, vazava por ali e caía em cheio sobre ela.
Foi só então que ele pôde notar nos olhos dela; à noite, estivera escuro demais, bêbado demais, apressado demais para ver qualquer coisa. Agora, à luz da manhã, olhando-o por sobre a xícara de café, ela o deixava reparar seus olhos rasgados, de cílios claros, de um matiz amarelado com rajados verdes. Havia sardas em seu nariz comprido, fino e reto mas que, naquele rosto, com aqueles olhos e aquela boca de lábios largos e escuros, não poderia ser mais adequado. À sobriedade matutina, ela era mais bela e ainda mais interessante.
"Você pode comer umas bolachas e uma fatia de bolo se quiser, Bruno. É por conta da casa". E então ela sorriu. Era um gracejo adorável, ele reconhecia, mas ficou paralisado à menção de seu nome e não conseguiu sorrir. Ela sabia como se chamava e ele não fazia a mais vaga idéia do nome daquela mulher. Em que momento da noite lhe teria dito seu nome...? Decidiu então que seria patético continuar comportando-se como um autômato; a moça já o havia socorrido até o banho e estava sendo gentil, até bem humorada. O mínimo que ele deveria fazer era agir de acordo. Lembrou-se das férias que passava no interior, na casa da avó materna, quando era ainda muito tímido e alvo das chacotas de primas mais velhas, que ralhavam de seus longos silêncios e de suas calças curtas. Serviu-se de um cream-cracker da vasilha de vidro sobre a bancada e ponderou que muito pouco havia mudado desde então.
"Sabe, Bruno, eu sei que se conselho fosse bom a gente não dava, vendia. Mas eu acho que você não deveria beber tanta vodka". O que ela dizia era, fatalmente, uma censura, embora o tom, diferentemente do de suas primas, não denotasse pilhéria alguma.
"Não costumo beber assim. Na verdade, nem freqüento esse tipo de danceteria".
"É mesmo, Bruno? E o que você costuma fazer quando não está com a sua família?"
Ele largou imediatamente a faca de manteiga que estivera usando, como se fosse um carvão em brasa. Trincou os dentes e encarou seus olhos. Não havia ironia, nem tampouco zombaria neles, apenas uma curiosidade transparente e crua. Aquela mulher era uma criatura muito estranha ao mundo dele, em que todos se envelopavam em finesse, happy hours, retórica ou álcool para disfarçar os reais objetivos.
"Eu não tenho família".
"Tem, sim, Bruno. Você me disse ontem à noite".
Não era tanto o fato de ela saber um "segredo" dele sem que ele mesmo o soubesse que o enfurecia, mas a repetição do seu nome, "Bruno", "Bruno", "Bruno", naquela voz mansa e neutra da moça.
"Você vai me desculpar, mas eu não sei, quer dizer, eu não lembro o seu nome".
Dessa vez ela riu alto. Pousou a xícara na bancada, jogou a cabeça para trás, soltou o coque e sua gargalhada ressoou por todos os cômodos do apartamento. Bruno a olhava como um colonizador contemplaria a ave mais exótica num Safári no século XVIII. Queria falar alguma coisa, qualquer coisa, mas não sabia o que dizer. Mais uma vez, sentiu-se como o moleque que ia passar férias com a avó em Adamantina.
"Você conta a sua vida inteira para mim, me deixa acordada até quase cinco da manhã, pede para que eu faça café bem forte para você no dia seguinte e não se lembra do meu nome?"
"Se isso serve de consolo para você, eu não sou do tipo mentiroso. Não costumo beber mesmo. E não freqüento danceterias. Tanto que não me lembro de nada do que disse para você. Eu sinto muito, moça, eu... Eu não sei o que disse mas... eu não tenho mais família."
Por um momento ela ficou muito séria e não tirou os olhos do rosto dele. Bruno tinha certeza de que ela estava ponderando se poderia confiar nele ou não. Era compreensível. Ela havia conhecido um homem numa casa noturna, passado a noite com outro e acordado com um terceiro completamente diferente. Baixou a cabeça e fitou a bolacha, que permanecia intocada no prato, à espera de que ela dissesse algo ou o pusesse para correr porta à fora.
"Você falou tanto da sua avó Lourdes, de suas primas, do seu pai, que foi para Santa Catarina quando você e seu irmão ainda eram muito pequenos... Falou que sua mãe morreu há dois anos e que você não teve forças para ir ao enterro... Disse que seu pai liga para você quase toda semana, mas que você nunca fala com ele. Falou que não agüenta mais seu trabalho, que você nunca quis mexer com informática, que seu sonho é estudar arquitetura porque você adora casas e tem muito talento para desenhar, mas que precisou trabalhar desde cedo, porque seu pai foi embora, sua mãe era muito doente e seu irmão, um descabeçado. Me contou que a única coisa que faz você acordar de manhã é café bem forte, sem açúcar, então me beijou aqui, bem na barriga, e me fez prometer que eu faria café para você de manhã. Também me disse que odeia suas roupas jogadas pela casa. Por isso deixei tudo dobrado na penteadeira. E aí, quando já estava quase caindo de sono, você me disse que sua mulher se separou de você há três anos, e que ela mora com a filha de vocês, que você vê a cada quinze dias. E meu nome é Márcia, Bruno".   

17 de fevereiro de 2011

in(só)lito capítulo 1

"Na Cama - O Beijo", Toulouse Lautrec

Abriu os olhos de chofre. Procurou pelo relógio à cabeceira da cama, mas não havia nenhum. Piscou para amainar a ardência causada pela luz, que vazava janela adentro, sem cortinas. Havia sombras projetadas no edifício à frente e o céu ainda apontava uma nesga de cinza ao longe. Não deveria passar das sete horas. Sentiu o braço esquerdo formigar, sua mão latejando numa cãibra de agulhas. Ela provavelmente passara a noite ali, aninhada sobre aquele braço. Abriu e fechou os dedos repetidas vezes, até senti-los novamente. O lado da cama em que estivera deitada já não retinha calor algum. Ela deveria estar acordada há algum tempo.
Soergueu-se, recostando o tronco no travesseiro amarrotado. Sua boca estava seca, a língua saburrosa colando ao céu da boca. Sentiu o estômago revoltar-se de fome, mas precisava beber alguma coisa antes de mais nada. Qualquer coisa. Procurou pelas roupas que havia usado na noite anterior. Havia deixado-as numa trouxa, emboladas no chão, perto da cama. Não estavam mais ali. Afastou os lençóis, levantou-se e, contrafeito, saiu nu à procura das roupas.
À noite o quarto lhe parecera maior e mais aconchegante, quase refinado. Lembrou-se também da vodka, da música alta e do desejo cru, quase brutal que o tomara de assalto na danceteria, quando a viu caminhar pela multidão de corpos emaranhados na pista. O rebolado sutil e os cabelos cacheados dela não prenderam apenas o seu olhar. Ela andava devagar, como se não precisasse chegar logo a destino algum, especialmente  no espaço exíguo da boate. Ele e outra dúzia de homens acompanhavam-na com olhos curiosos, impertinentes e sequiosos. A moça devia ter pouco mais do que vinte anos. Seu corpo era farto de curvas que recheavam um vestido turquesa de alças largas, muito sóbrio para uma mulher tão jovem, dona de carnes tão deleitosas para o apetite masculino. Talvez fossem as roupas em dissonância com o corpo, ou talvez seu caminhar displicente, ou os cabelos em exuberantes cachos louros, acompanhando-lhe a linha da coluna vertebral. Ele não saberia dizer ao certo o que gritava tão alto naquela moça. Mas o fato é que se sentira irrevogavelmente atraído por ela, à mera visão de suas costas e cabelos, e a consciência de que outros homens naquele exato momento também a desejaram só fez com que sua lascívia e um imperativo por exclusividade aumentassem mais.
Viu um copo d'água pela metade sobre a penteadeira. Bebeu de um só gole, a garganta queimando de sede. Olhou em volta, ainda sem encontrar as roupas. Seria péssimo ter que pedir a ela que lhe mostrasse onde estavam sua calça, a camisa e os sapatos pretos. Sentiu-se subitamente zonzo, numa vertigem que o fez cambalear e apoiar-se na cadeira. A azia, o gosto metálico na boca e a cabeça tonta sublinhavam o quanto ele havia bebido naquela noite. Com olhos turvos e pálpebras pesadas, finalmente encontrou as roupas. Estavam perto do espelho da penteadeira. Ela as havia dobrado meticulosamente e posto ali, antes de deixar o quarto. Sentou-se, respirando fundo. Vestiu a camisa, ajeitou os cabelos e tentou por as calças. Sentiu-se tonto novamente, dessa vez um pouco nauseado, e precisou se sentar e reclinar a cabeça para trás para a ânsia não dominar suas vísceras. Tudo no quarto rodava: o teto com um lustre grande e antiquado, o chão acarpetado, a cama, a penteadeira, a luminária sobre o criado-mudo, um porta-retratos com fotos dela e amigos, ou parentes, talvez amantes, ele próprio girava. Um suor frio e pegajoso cobriu suas costas, a testa, nuca e peito. Não havia uma gota de saliva em sua boca e ele temeu vomitar no carpete dela ou, o que seria inimaginável, desmaiar aos pés da cama. Cerrou os olhos com firmeza e desejou não ter saído de casa na véspera. Assim, não teria ido à boate escura e claustrofóbica, nem a teria visto e desejado dormir com ela, e muito menos passado a noite ali, com uma mulher enroscada em seu braço esquerdo.
Então sentiu a mão pequena tocá-lo num dos ombros. Abriu os olhos e a viu. Estava com o rosto limpo, sem maquiagem, cheirando à sabonete e a algo cítrico, que ele não identificou. Os cabelos estavam presos numa trança e atados ao topo da cabeça, mais claros contra a luz da janela. Ela parecia ainda mais jovem e mais fresca de manhã. Usava uma malha larga, que a cobria até a metade das coxas, uma saia de algodão e estava descalça. Abaixou-se para encará-lo. Quando falou, seu hálito morno, com cheiro de café com leite, invadiu-lhe as narinas, resgatando-o por um segundo do torpor:
"Você está tão pálido... O que aconteceu? Está se sentindo mal?"
Ele se limitou a afastá-la, empurrando o braço dela para trás. Precisava ir ao banheiro, mas não sabia como chegar até lá, nem se conseguiria chegar. Deteve-se um instante nos olhos dela, sentindo o rosto queimar de aflição e vergonha. Quem era ela? Em que parte da cidade estariam? Trancara o carro à noite? Onde teria estacionado? Ele só conseguia lembrar-se dos dois, encostados à porta da sala, das mãos dela tirando-lhe as calças e da boca quente, salivando sobre ele num vai-e-vem torturante.
"Vem comigo. Você precisa de um banho".
Tentou resistir, mas ela já o envolvera, passando o braço dele sobre os seus ombros e forçando-o a se levantar. Avistou um corredor assim que passaram pela porta do quarto e, ao final, o banheiro. Ela o levou até lá, deixou-o apoiado à pia e saiu, fechando a porta atrás de si. Quando mirou-se no espelho, sentiu um embaraço imenso; seu rosto estava macilento, os olhos esgazeados e a pele, amarelada. Ele era o homem mais feio do mundo, com um hálito de morte, sem calças e nauseabundo, e estava na casa de uma mulher cujo nome não lembrava, se é que lhe havia perguntado. Abriu o chuveiro e deixou a água gelada cair sobre a cabeça. Em princípio não fez qualquer movimento; temia se sentir tonto novamente. Aos poucos seu estômago foi-se acalmando e sentiu as pernas mais seguras. Esfregou todo o corpo e os cabelos com o sabonete dela. Fez bochechos e gargarejos sucessivos, até sentir o hálito mais fresco. Saiu do box e deixou-se pingar sobre o chão de azulejos cor de creme do banheiro dela. E foi com a toalha dela que se secou, antes de abrir a porta e sair a sua procura pelos cômodos.