3 de fevereiro de 2011

tempestade

"A insensatez que você fez
Coração mais sem cuidado
Fez chorar de dor
O seu amor
Um amor tão delicado
Ah, porque você foi fraco assim
Assim tão desalmado
Ah, meu coração que nunca amou
Não merece ser amado
Vai meu coração ouve a razão
Usa só sinceridade
Quem semeia vento, diz a razão
Colhe sempre tempestade
Vai, meu coração pede perdão
Perdão apaixonado
Vai porque quem não
Pede perdão
Não é nunca perdoado"
(Antônio Carlos Jobim e Vinicius de Moraes)


Tem gente que nasce para ser gauche na vida. Assim dizia o poeta que hoje, esverdeado de bronze, passa a vida sentado num banco, braços e pernas cruzados, contemplando o "mar, eterno cantor" de Copacabana. E como se não bastassem o sol escaldante da cidade "maravilha, purgatório da beleza e do caos", a chuva, a maresia e as duzentas e cinqüenta fotos por hora com os turistas, Drummond ainda tem seus óculos roubados durante a célebre Parada Gay do Rio de Janeiro. A vida pode ser cruel, até para uma estátua e, principalmente, para quem já é meio - ou completamente - gauche. 

Quem cunhou o termo "gauche" não foi nosso poeta itabirense, mas os franceses, com sua língua que, segundo o ditado, é a dos amantes. É um adjetivo, pronuncia-se "gôxe" e quer dizer "esquerda". Para nós, tupiniquins e amantes da poesia, gauche pesa mais quando tem o valor de desajeitado, estranho, acanhado e deslocado. E quem é "gôxe" por natureza não entra na água e nem morre na praia porque espia a balbúrdia dos veranistas de longe, por trás de óculos e bigodes, com ombros encurvados e à mercê de vândalos ocasionais. 

O Carlos, filho das Alterosas e funcionário público, acreditava que um anjo torto, desses que vivem nas sombras, mandou que fosse ser gauche na vida no dia em que nasceu. É compreensível. Acho que todo poeta é meio deslocado e acanhado, até para se reservar o direito de abraçar a melancolia e, dela, desencavar inspiração. Mas há poetas e poetas. O "capitão do mato", Vinicius, não abraçava o estilo gauche do Carlos. Boêmio até o último fio dos seus cabelos brancos, amante de um bom whisky, pescaria, lindas mulheres e amigos leais, o autor da letra de "Insensatez" podia até cultivar a tristeza para fazer brotar do peito a inspiração ("mas pra fazer um samba com beleza é preciso um bocado de tristeza, se não não se faz um samba, não"), mas não se entregava aos braços dormentes da melancolia. Vinicius achava a vida gauche. Para alguém "insensato" como ele, desajeitados e estranhos eram os outros, que viviam por viver e, surdos às emoções e aos clamores do mundo, tornavam-se homens de lata, donos de corações desalmados e incapazes de perdoar e amar.

O Vinícius até tentou carreira de diplomata na França e na Itália. Mas os textos contestadores que escrevia na época e o inveterado estilo boêmio lhe renderam uma aposentadoria compulsória por parte do AI-5. Então ele decidiu viver de poesia e como um poeta. E, para Vinicius, "poesia" e "gauche" nunca haveriam de rimar, ao menos não numa mesma estrofe. Mas havia um bocado de contradição na vida de Vinicius. De um lado, florescia o poeta boêmio, imortalizado por seus sonetos de amor. Do outro, o burocrata do Ministério das Relações Exteriores e jornalista de um periódico da situação. A vida pode ser cruel, principalmente para quem pensa ser possível viver apenas de amor e poesia.

Um poeta pode tanto se desnudar quanto se esconder em sua obra. É uma questão de escolha, estilo, conveniência ou circunstância. Quando rabisco meus versos e desejo dizer algo que não deveria ou que ainda não madurou o suficiente em mim para virar sentença clara, uso metáforas, lapsos, metonímias e toda figura de linguagem possível para esconder a mim, ou melhor, para disfarçar minhas contradições e meus questionamentos. É aquela história: você está sofrendo de uma terrível indigestão emocional, agravada por cólicas existenciais, então precisa vomitar. Simples como dois e dois são quase sempre quatro. Regurgitação sensorial ou falência múltipla de órgãos e psiquismo. Mas não basta apenas vomitar. Você precisa compartilhar a catarse, nem que seja com um único leitor amigo, pagador de promessas e judas oficial dos blogs. Mas então você se lembra que não pode vomitar as vísceras, nem a alma. Daí surgem os disfarces da linguagem, o véu das palavras, o floreio que mascara o fedor da contradição.

Mas se até o Vinicius, o Carlos e você são contraditórios, por que eu deveria esconder tanto minhas contradições? Se o gauche tem seus momentos de reverberação social e os boêmios são capazes de exercer cargos burocráticos, então a contradição faz parte da gente. Como os dentes de uma engrenagem que, para se mover, precisam ser anacrônicos, talvez a contradição, tal como o caos, gere evolução e ordem. Gosto de pensar a vida como uma estrada pontilhada por curvas, lombadas e desvios. Se você tem o costume de guiar por longas horas, já experimentou o sono incontrolável numa reta contínua, dessas que na ótica ilusória da mente se encontram num ponto no horizonte. Concluo, assim, que se formos retilíneos demais, sem os atalhos e as surpresas da contradição inerente à condição humana, é bem possível que se durma no ponto. E, de olhos fechados, ninguém vê as paisagens da estrada e as mudanças de roteiro. Ou, então, vira estátua à beira da praia.

Vai meu coração ouve a razão
Usa só sinceridade
Quem semeia vento, diz a razão
Colhe sempre tempestade

"Insensatez" trata-se de um mea culpa, um diálogo entre o poeta e o seu próprio coração. O eu lírico abre o poema dirigindo-se ao coração descuidado, desalmado e insensato que "fez chorar de dor o seu amor, um amor tão delicado". Em seguida, pune a si mesmo, declarando-se nunca ter amado e, portanto, não merecer ser amado em troca. Vinicius faz uso de armadilhas líricas e da melodia entorpecente de Tom para "esconder" a própria insensatez, sua contradição amorosa máxima.

Então ele ordena que seu coração ouça a razão. E, ainda mais impensável do que um boêmio que ouve a razão, é um boêmio cujo coração deve usar só sinceridade. Mas Vinicius precisa vomitar. Sente necessidade de se expurgar por ter sido insensato, desalmado, fraco e descuidado ao ponto de fazer sofrer seu amor. Racionalmente o poeta compreende que quem causa sofrimento ao amado está semeando vento e, portanto, há de colher tempestade. O mea culpa continua até a última estrofe, quando o poeta conclui que deve pedir perdão. E não é qualquer perdão, cara-pálida. É perdão de conquistador boêmio e apaixonado, perdão a quem o sofredor não pode negar, até porque nem conseguiria negar. Afinal, se quem não perde perdão jamais é perdoado, o reverso também vale: quem pede perdão apaixonado há de ser apaixonadamente perdoado.

Meu alter-ego literário, uma moça espevitada e de sangue quente chamada Ivy, me contou que estava ouvindo essa bossa do Vinicius e do Tom, à caça de inspiração, para aquietar a alma. Mas alguém com alma tão questionadora, uma contradição ambulante feito a Ivy, dificilmente dá um sossego para o espírito. Nem para o dela e muito menos para o dos outros. Ocorre que Ivy cutuca os trilhos do meu expresso e me dá um tiro filosófico à queima-roupa: "qual o problema da tempestade?". Caramba, Ivy. Meu coração é insensato às pampas, um coração incansável, que ama, desama, quebra em um milhão de pedaços, é remendado e, contraditoriamente, não se emenda nem com reza brava. Se meu coração fosse um barco e eu fosse um mar, estaria definitivamente sob tempestades constantes, a ser engolido por ondas do nível tsunami, num oceano de contradições sujeitas às mudanças da lua e ao capricho das marés. 

Para poetas, boêmios, gauches, quixotes, idealistas e outras espécies de apaixonados - considerando-se que "apaixonado" é aquele que vive em paixão, ou seja, é passional e não costuma ouvir a razão - tempestades não são a exceção, mas a regra do jogo. A tempestade é como a estrada cheia de curvas e lombadas, é como a contradição. Daí Ivy me pergunta: "qual o problema da tempestade?". Problema nenhum, acho, até porque tempestades não me assustam mais. Outra velha história: se você está na chuva, deixa molhar. Mas ouvindo os lamentos do Vinicius, coração insensato que faz sofrer e leva a tempestade para dentro da alma da mulher, não consigo deixar de me colocar no lugar dessa mulher, "um amor tão delicado". E penso nas tempestades que causei e nos temporais que já me causaram. Então sinto cansaço. Uma letargia acachapante e uma impotência para continuar remando contra a maré, para ter que perdoar para amar e para pedir perdão.

A tempestade de verão é um fenômeno esteticamente magnífico. Todos os elementos envolvidos numa tromba d'água extasiam os sentidos: o cheiro de terra molhada antes mesmo de chover, as andorinhas voando em bando para o sul, anunciando a chuva, a ventania que refresca a pele torturada pelo calor, a terra brigando com a água e, ao mesmo tempo, se embriagando dela, as nuvens gordas e cinza de chuva, que parecem querer tocar o chão, o dia que escurece por meia hora, como se houvesse um eclipse e, depois... Um suspiro comprido da natureza, as andorinhas voltando, o cheiro da terra entrando pelas narinas, as folhas das árvores chorando nas sombrinhas e nos ninhos de pica-paus e o céu. Ah, o céu cor de algodão-doce do fim de uma tempestade de verão... É preciso que chova cântaros no entardecer para o céu se maquiar de forma tão bela antes de o sol dar adeus a mais um dia. Assim como é preciso que o poeta fique triste, duele com suas próprias contradições e vomite para fazer uma poesia linda. 

Mas não dá para enfrentar uma tempestade todo dia. Ainda que a visão do céu seja deslumbrante, a tempestade cansa, desgasta e frustra. E encharca a alma da gente que, terra, não consegue dar vazão à tanta água, tanta emoção. Além do mais, uma tempestade pode destelhar casas e castelos, destruir plantações de sonhos e desabrigar corações. Esse é o problema da tempestade. Principalmente se ela durar o ano inteiro, e não um ou dois meses. Como Vinicius, estou na curva do mea culpa, um pedido de perdão para o meu próprio coração a quem, confesso, não dou trégua nem tempo para respirar entre um susto e outro. Por isso meu coração insensato quer um pouco mais de constância e cuidado. Pelo menos por um tempo, tempo suficiente para a terra absorver a água e brotar novamente, estou à caça da bonança.

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