24 de fevereiro de 2011

in(só)lito capítulo 7

"The Cardsharps", Caravaggio

Bruno não estava apenas certo em associar o apartamento de Lira, a mãe de Márcia, a um local opressivo e que os levaria a debates infrutíferos. É comum que, em situações onde a lógica e o bom-senso não se aplicam, os indivíduos se permitam utilizar-se da intuição para fazer determinadas opções. O mesmo acontece, por exemplo, num jogo de cartas fechado de cassino, como o blackjack, também conhecido como vinte-e-um. O blackjack é tão somente um jogo de apostas, em que vence o jogador que tiver na mão mais pontos do que a banca, isso sem ultrapassar 21 pontos (daí o nome do jogo). A carta mais elevada no blackjack é o Ás, e vale dez pontos. Se tanto a banca quanto o jogador tiverem um Ás, o resultado é um empate.
A popularidade do vinte-e-um em cassinos deve-se ao fato de o jogador poder, além de apostar trivialmente, contar as cartas. Todo jogador sabe que a banca tem sempre vantagem sobre os apostadores. Por isso, o jogador profissional aprende a contar as cartas para tentar reduzir as vantagens da casa e, dessa forma, reverter as cartas da mesa em seu favor. Ocorre que existem inúmeras técnicas de contar as cartas no vinte-e-um, técnicas envolvendo valores estimados às cartas, noções de probabilidade e memorização. Além das dificuldades intrínsecas à contagem, há também os sistemas de vigilância dos cassinos que, logo que percebem um jogador em atitude suspeita de observar e contar as cartas, livram-se dele e garantem que sua fama seja espalhada nas demais casas de jogo. Dessa maneira, o que impera mesmo no blackjack, ainda que haja gênios da matemática e novas técnicas de contagem, são as apostas.
Quando um homem e uma mulher decidem ser amantes, estão metaforicamente jogando vinte-e-um, ao menos no início da partida, que envolve conquista, confiabilidade, concessão e entrega. O ideal é que ambos se revezem na interpretação do papel da banca, ou seja, que cada um dê as cartas em uma partida, permitindo ao outro tanto contar as cartas - e, aqui, leia-se usar de lógica e bom-senso - quanto apostar, ou seja, utilizar-se da intuição e blefar. Desse acordo tácito e sutil que é o revezamento dos amantes entre as posições de "banca" e "apostador", pode surgir a vitória de ambos (o que seria um princípio de relacionamento), a derrota sofrível do jogador (aspirante à amante que fica à mercê da jogatina egoísta do manipulador que insiste em dar as cartas o tempo todo) e, em última análise, a quebra da banca (ninguém sai com o Ás, o baralho é marcado ou o jogador desiste de apostar no vinte-e-um e vai jogar, sozinho, numa slot machine). Em todo caso, tal como no blackjack dos cassinos, o jogo da conquista amorosa envolve muito menos lógica do que intuição, blefe e apostas.
Márcia não gosta da idéia de revezar com Bruno seu papel de dealer, aquele que dá as cartas. No entanto ela intui que, se insistir em manipular o jogo incessantemente, o rapaz por quem quer se apaixonar vai desistir de apostar numa banca que tem apenas vantagens. Por isso ela concede, confia e entrega suas cartas a Bruno; para conquistá-lo. Em outras palavras, Márcia abre mão da posição confortável na banca para se sentar à mesa como mera jogadora porque deseja vencer Bruno, ver as cartas dele, fazê-lo apaixonar-se por ela, conquistar sua confiança e, acima de tudo, sua exclusividade de amante.
Mas Márcia não é boa jogadora. Aposta pouco para perder apenas o suficiente, temendo perder tudo. Não nasceu para freqüentar cassinos, nem tampouco enredar-se em jogos de amor. Por outro lado, também não dá as cartas da melhor forma que poderia. Faltam-lhe a habilidade dos dealers e a auto-confiança da banca. Assim, querendo embaralhar o jogo à exaustão, ela mesma se perde com as figuras, números e naipes, mostrando-se uma amante ingênua, contraditória e mimada. Em resumo: Márcia não sabe contar cartas; a lógica e o bom-senso lhe escapam quando quer se apaixonar. Mas é igualmente fraca nas apostas e no blefe porque, ao permitir que a intuição a domine, ela acaba abrindo o próprio jogo e pondo a partida a perder.
Bruno, em contrapartida, esteve tanto tempo na posição de jogador que precisou aprender as técnicas para driblar a banca e não acabar na sarjeta da vida e do amor. Ele usa a razão e a lógica quando estas lhe são possíveis e, quando não, aposta muito para ganhar ainda mais, já que não tem nada a perder. É um jogador comedido, entretanto. Observa a maneira como a banca dá as cartas, aprende seus truques e fraquezas e lê as intenções veladas nos olhos do oponente. Bruno não pretende quebrar a banca porque sabe que, se o fizer, não terá mais onde nem com quem jogar. Ele aceitaria a posição de apostador com resignação se intuísse que o outro lado conhece perfeitamente o baralho com o qual joga. Mas há muito Bruno percebera a inaptidão de Márcia, ainda que a sua persistência em manipular a partida seja excitante para um homem como ele, mais velho e calejado do que ela. Assim, Bruno blefa e finge não conceder, confia além da medida e exige dar as cartas para virar o jogo não em seu favor apenas, mas em favor de um desejo seu de que ele e Márcia possam jogar outras partidas.
Quando Bruno insiste para que Márcia dê uma volta com ele, está utilizando tanto a lógica - para revezar com ela a posição de dealer - quanto a intuição; ele aposta que uma mudança de ares os fará bem, assim como jogadores "marcados" pela banca precisam freqüentar cassinos diferentes. Intui que há algo de muito impessoal no apartamento onde Márcia mora e associa tal imparcialidade à sensação de sufoco que o embate com a mulher por quem ele acredita poder se apaixonar lhe causa. Blefa com ela o tempo todo, mas lhe dá abertura para dizer algo que a faça sentir-se no comando da partida quando, de fato, está sendo conduzida.
Não seria espantoso que os demais apostadores e dealers do cassino onde Márcia e Bruno jogam começassem a se perguntar porque os dois insistem numa mão de pontuação tão baixa quando poderiam, facilmente, comprar novas cartas da casa ou simplesmente trocar de mesa. Os demais personagens desse cassino, acostumados à clausura dos salões esfumados e ao perde-ganha exaustivo dos desencontros amorosos, desconhecem o valor das idéias e o poder do desejo de que elas vivam através da figura do amante escolhido. Márcia quer se apaixonar por Bruno porque já se apaixonou, a priori, pelo conceito desse rapaz inserindo-a em seu mundo; Bruno acredita poder se apaixonar por Márcia porque já consegue, a posteriori, apaixonar-se pela mulher peculiar e única que o fará esquecer-se da vida que levara até então. 

Nenhum comentário:

Postar um comentário