23 de fevereiro de 2011

in(só)lito capítulo 5

"O Amor Entre Ruínas", Edward Coley Burnes-Jones

Não resta muito o que pensar quando um homem e uma mulher admitem que foram atraídos não pela beleza, inteligência, posses, nem pelos trejeitos um do outro, mas pela estranheza que parecem emanar no meio em que se encontram. Como se o alvo da atração deixasse de ser o indivíduo em si mesmo, mas a concepção de uma idéia que o sujeito faz nascer na consciência do admirador. Assim, Bruno sentiu-se magnetizado pela suposição de que Márcia, com seu vestido démodé e um jeito tímido de caminhar, com os olhos voltados para o chão, pertencesse à outro tempo, como se estivesse na danceteria por mera obra do acaso. Da mesma maneira, Márcia permitiu a si mesma seduzir-se pela idéia de que Bruno, o único homem sério e solitário numa multidão de homens escandalosamente alegres e cercados de outros homens e mulheres, teria ido à danceteria naquela noite pela primeira vez. Para Márcia, o rapaz de cabelos e olhos escuros, estatura mediana e expressão melancólica, tão absurdamente deslocado num ambiente de música, dança e flerte escancarado, estava destinado especialmente a ela, uma jovem que, não raro, encontrava na própria melancolia um muro intransponível para a adequação plena ao mundo, algo a que Márcia aspirava sem muito êxito.
Bruno, por sua vez, idealizava na figura distante de Márcia e em suas maneiras antiquadas a casualidade em forma de mulher, uma travessia para um universo diferente do seu, um mundo do qual Bruno desejava escapar a todo custo, muito embora retornasse sempre ao mesmo e odioso cotidiano. Os dois se esbarraram numa noite, sentiram-se familiarizados com a estranheza um do outro, trocaram beijos e se apaixonaram pela idéia de fuga que representavam mutuamente: Márcia era o bilhete de ida para longe da mesmice que Bruno via em seu próprio mundo; Bruno era a ponte que Márcia precisava cruzar para sentir que fazia parte da pintura do mundo ao qual ela sonhava pertencer. Na contradição de idéias, os dois se atraíram e encontraram, não porque fossem o oposto um do outro, mas porque reconheciam, à distância, um náufrago como eles próprios quando se deparavam com um.
Naquela noite, quando Bruno a tomou pelo braço e disse-lhe que era diferente de tudo e de todos ali, Márcia detectou um código cifrado, o apelo de um homem que se sentia igualmente estrangeiro e que, com ela, poderia produzir eco. Ela percebeu o olhar vago do rapaz e o hálito azedo de bebida, mas ignorou esses sinais reais em favor de um alerta subjetivo que sua mente lhe enviava. Márcia não desejava, nem precisava ouvir que era bela, que tinha cabelos exuberantes e olhos verdes incríveis. A palavra-secreta que abriria em sua alma o espaço para o encantamento, a paixão e o erotismo era "diferente", mesmo que diferente não significasse belo, nem exuberante ou incrível. Como num sistema mecânico de engrenagens, o vocábulo "diferente" na voz de um homem nada comum acendeu uma fagulha no corpo de Márcia e o beijo de Bruno, sopro cálido e bem-vindo, espalhou as centelhas.
Em pouco tempo abraçavam-se, beijavam-se e exploravam-se como amantes antigos, e Márcia teve certeza de que não deveria, nem desejaria, resistir àquele desconhecido. Afastou-o com gentileza de si, para olhar seu rosto, tomar fôlego e coragem para lhe perguntar seu nome. A voz dele foi um sussurro em seu ouvido. E para ela, naquele instante que ficaria imobilizado no tempo feito um inseto em âmbar, não havia nome mais belo e atraente do que o dele.
A insegurança de Bruno na manhã seguinte era mais do que razoável. Um indivíduo sem memórias é uma página em branco onde aquele que tem lembranças, imaginação e audácia pode escrever à revelia do dono do livro. Naquele sábado, Bruno estava embriagado não apenas das muitas doses de vodka que tomara - e a qual, de fato, não estava habituado - mas surpreendia-se igualmente bêbado de sensações e idéias. Por isso teria que forrar a alma de confiança e tomar cada palavra de Márcia como real naquela manhã, já que era ela a detentora da memória e, portanto, a narradora dos fatos. Daí a insegurança, o embaraço e a atitude arisca, mesmo rude, de Bruno. Ele jamais saberia, até porque Márcia não lhe concederia o privilégio de tal informação no xadrez da conquista, mas ele não se esquecera de seu nome em momento algum, até porque ela jamais lho dissera, não até aquela manhã. O voto de confiança que Bruno depositara em Márcia devia-se mais a uma fraqueza dele próprio do que ao legítimo desejo de se entregar. Por outro lado, Márcia também lhe concedia o benefício da dúvida quando, sabendo estar ele preso a ela pela ausência das chaves do carro e de casa, ainda permitia que ficasse em seu apartamento. Mais sensato seria que ela, certa da indisposição que causava pelo esquecimento da amiga, pedisse que ele voltasse mais tarde, quando já tivesse recuperado suas chaves. Entretanto, os reais sentimentos humanos escapam até mesmo aos narradores da história em que figuram, de maneira que a confiança de Bruno poderia mesmo refletir um vago desejo de entrega, assim como Márcia talvez acreditasse na intensidade das emoções que Bruno vivera com ela na véspera e na possibilidade de ele agora, sóbrio, as querer vivenciar novamente.
Os fatos na linha do tempo da vida de Bruno eram objetivos e nada líricos. Estava recluso a uma rotina de trabalho maçante, sem qualquer desafio ou motivação, confinado a uma vida sem lazer, conversas nem sexo desde que se separara de Áurea. O deles tinha sido um divórcio dolorido, não só porque havia no meio uma criança de dois anos na época, mas porque Bruno concedeu a separação em grande conflito pessoal, ainda apaixonado por Áurea. Entretanto, por mais que a amasse e desejasse viver com a esposa, era preciso que seu amor-próprio falasse mais alto. Pelo menos era o que sua mãe, seu irmão e sua consciência lhe diziam diante do fato de Áurea ter se apaixonado por outro homem e decidido se mudar com ele para o lado oposto da cidade.
Espera-se que três anos sejam suficientes para alguém se recuperar do luto pela perda de uma esposa e de uma filha. E, de fato, três anos foram um bálsamo para Bruno. Em bem menos tempo ele percebeu que o que sentira pela mulher não fora amor, mas um sentimento de dependência para com o estilo de vida que ela levava. Áurea era decoradora e vivia rodeada de arquitetos, designers e artistas, gente que freqüentava com eles coquetéis badalados nas áreas nobres de São Paulo, que conversava abertamente sobre tudo, que pôde estudar quando e o que queria porque nunca precisou ajudar a mãe abandonada pelo pai, gente como Bruno jamais seria e que, involuntariamente, atraía sua mulher como ele jamais teria sido capaz. Não demorou muito para que Bruno compreendesse que, em cada um daqueles coquetéis, ele representava não mais que  uma bengala de Áurea, o marido gentil e dedicado que passava as noites com a filha do casal enquanto a mulher entregava-se aos encantos de um expert em Feng Shui para interiores. Depois de três anos, o que restava nele não era amor, nem sequer rancor; apenas a sensação real de um vazio absoluto e do fracasso pessoal.
Então ele decidiu por fim à reclusão e saiu sozinho. Escolheu uma danceteria qualquer, provavelmente porque ouvira alguém no trabalho falar que era um bom lugar para se divertir. Não era um lugar de que gostasse realmente, mas havia bebidas, pouca luz e gente diferente para ele observar. Nesse espírito deparou-se com Márcia. Ela não era apenas diferente, mas bonita, carinhosa e gentil, com uma boca ainda mais dadivosa do que ele conseguia se lembrar. Falava muito pouco sobre si mesma, preferindo fazer perguntas neutras e ouvi-lo. E não olhava para ele com estranheza, como se pertencessem a mundos diferentes, tal qual o fazia Áurea. Em oposição a esta, Márcia o olhava com atenção e familiaridade, quase reverência, e tal admiração vazada pelos olhos de uma mulher era o que Bruno podia conceber de mais erótico até então.
Um amante é, antes de qualquer coisa, fruto de um passado de amores, expectativas e desilusões de outrora. Assim, quando Márcia se entrega aos beijos de Bruno na penumbra esfumada de uma danceteria, não são apenas Márcia e Bruno que se abandonam mutuamente, mas cada expectativa soterrada do passado aliada a novas promessas, mesmo que íntimas e não-ditas. Desencontros sucessivos e decepções amargas envolvem o indivíduo numa mortalha de sentimentos, mas o amante, intrínseco ao desejo mais privado do ser, sobrevive, latente e louco para vir à tona, respirar e ansiar novamente. Assim, o encontro de Bruno e Márcia não foi nada casual, embora possa tê-lo parecido à primeira vista; em contrapartida foi, sim, uma escolha objetiva, ainda que de natureza subjetiva, dos dois. E não apenas dos seres indivisíveis Bruno e Márcia, mas principalmente dos amantes que haviam sido, dos sonhos que ainda viviam neles e dos amantes que, de fato, aspiravam ser.
Quando Márcia deu-se conta de que Bruno estava embriagado demais para dirigir ou sequer sair dali sozinho, telefonou para Adélia, sua vizinha e amiga de sua mãe, Lira, que morrera há menos de um ano. Pediu que Adélia tomasse um táxi até a danceteria e, em seguida, guiasse o carro de Bruno até sua casa. A amiga protestou a princípio, mas achou melhor socorrer a moça, mesmo que apenas por dívida à Lira. Com a morte da mãe, o apartamento ficara para Márcia que, desde então, mudara-se para lá. Não tinha irmãos nem filhos, e seu pai morrera antes de a menina completar três anos. Era solitária, meditativa e silenciosa. Gostava de assar bolos e cozinhar macarrão aos domingos e, durante a semana, trabalhava num ateliê de costura no centro da cidade. Quando tinha tempo e disposição, também desenhava alguns modelos de roupas e tinha até bastante talento para isso, embora nunca houvesse mostrado nenhum deles a seu patrão, costureiro e estilista.
Mas de nada disso Bruno tomou conhecimento, não porque as informações tivessem afogado no esquecimento do álcool, mas simplesmente porque Márcia optara por não lhe revelar mais do que o essencial: o desejo incontido de dar vida à amante que ela sonhava ser e, para tanto, a disposição de se entregar a um recém-conhecido. Era de Márcia a vantagem de manter sua história em segredo e poder narrar a de Bruno, um delator etílico de si mesmo. Mas era Bruno quem detinha o privilégio de decidir voltar àquela casa antiga ou não.

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