16 de fevereiro de 2011

encruzilhada das palavras

As palavras podem ser um meio ingrato de expressão artística. Corrijo-me: a pretensão à qualquer talento artístico pode ser muito ingrata. Quando penso nisso, lembro-me de "Amadeus", do diretor Milos Forman, de 1984, ganhador de oito estatuetas douradas em Hollywood. O filme retrata dois personagens reais, o compositor austríaco Wolfgang Amadeus Mozart e seu contemporâneo, Antonio Salieri. Longe de ser um relato histórico fiel, a obra de Forman mostra um Salieri contraditório, invejoso e mesquinho, principalmente quando o jovem Mozart, mimado, vulgar, obsceno, arrogante e passional, entra para a corte de Joseph II, Arquiduque austríaco, cuja atenção já favorecia Salieri no mundo da ópera.

"Amadeus" é brilhante porque não fala do "homem" Mozart, mas do "gênio" Mozart, em seu mais alto patamar. Por isso Forman se utiliza da figura de Salieri para narrar a história; é de um manicômio que o compositor nos apresenta a Wolfgang, cuja trajetória é contada em flashbacks. Para salientar toda a complexidade envolvida na personalidade de um gênio e virtuose, o diretor se aproxima da figura humana de Salieri - daí a licença poética para escorregar nos atributos históricos - e caracteriza Mozart como o espelho do talento descomunal que possuía. Não é acidental a escolha do diretor para o ator que interpretaria Mozart: o irrelevante Tom Hulce, cujo rosto o espectador esquece duas horas depois de terminado o filme, é ideal para reforçar a idéia de que o gênio tem amplitude e valor muito maiores do que o homem que personifica o virtuose. É redundante dizer que Wolfgang foi, enquanto personagem real, um homem infinitamente mais complexo na forma como é retratado em "Amadeus"; entretanto, a mensagem do filme é clara: biografia alguma poderia se comparar à magnitude da genialidade de Mozart. Por isso, a personagem de Salieri, aqui, é tão humana em suas idiossincrasias e pequenez: enxergando Wolfgang através dos olhos de Salieri, somos equiparados a este e, distanciados do virtuose, podemos contemplar a grandeza de Wolfgang, o gênio.

O filme percorre os trilhos do reconhecimento de Mozart na corte austríaca pelo viés da contradição. Enquanto Salieri afirma que a música de Wolfgang é divina, os cortesãos insistem em focar nos escândalos e  nas fofocas que o comportamento exótico do músico gera. Para Salieri, um compositor talentoso e altamente disciplinado, a única forma de aceitar o talento de um Amadeus que se senta ao piano e compõe de improviso a variação de um tema complexo que acabara de conhecer, é atribuindo-lhe a personificação de um anjo. Assim, é compreensível que o nosso mais que humano Salieri deseje ser um músico tão bom quanto Mozart - e com "bom" leia-se talentoso, inspirado, virtuoso, espontâneo, e não apenas disciplinado - para que ele possa, através de sua arte, alcançar o divino. O problema é que escapa à compreensão de Salieri o motivo pelo qual Deus tenha favorecido justamente Mozart, uma criatura tão vulgar e um artista tão pouco disciplinado para ser Seu instrumento na Terra. Da incompreensão nasce a inveja e, da inveja, a culpa. Salieri torna-se inimigo de Deus, Cuja grandeza vê evidente na obra de Mozart. Daí para a loucura, a vingança e o assassinato não custa muito.


Quando assisti a "Amadeus" pela primeira vez ele já era um filme antigo. Eu estava no primeiro ano de Faculdade e precisava fazer um trabalho de Filosofia. Provavelmente minha memória dilapidou-se com o tempo - afinal o ano era 1998 - mas o tema do tal trabalho de Filosofia não me vem à mente no momento. Enfim, o fato é que escolhi usar "Amadeus", que é de 1984, para um trabalho de Faculdade de 1998, de modo que as razões envolvidas para tal podem ser ignoradas aqui. Na época com dezoito anos, eu me encontrava numa situação em que talento, currículo e trabalho habitavam esferas completamente diferentes em minha vida, de modo que assistir a "Amadeus" rendeu muito mais do que um trabalho de Filosofia de primeiro ano de Faculdade.

Eu compreendia perfeitamente as idiossincrasias de Salieri, principalmente se me atrevesse a dar asas às minhas pretensões artísticas. Resumo da ópera: de onde venho, não há lugar para arte, nem vãs filosofias, apenas trabalho objetivo e pragmático, onde reinam calculadoras e taxas em boletos bancários. No lugar para onde fui imperam a disciplina das perguntas e respostas e da observação e, acima de tudo, a imparcialidade na transcrição das mesmas. Acontece que, entre o lugar de onde viemos e o lugar para onde vamos, normalmente está essa entidade que complica o cenário da ópera, que é o "eu" nosso de cada dia ou, se quiser mais material meditativo, o talento. No meu caso, entre vendas e reportagens estavam a subjetividade das palavras, a retórica, a contemplação dos indivíduos e da vida e a encenação teatral, ou seja, todo o supra-sumo do cool, que não dá um tostão furado.

Penso na história de Salieri e Mozart quando estou em algum tipo de encruzilhada com as palavras. Explico-me. O lado bom em não se ter sempre dezoito anos é que você sabe que realmente não vai ganhar dinheiro com aquilo que pensa que tem talento, até porque talento, currículo e trabalho habitam, de fato, esferas diversas da vida. Daí que se pode, por exemplo, publicar suas "pérolas" num blog, torcer para os fãs lerem e comentarem (por "fãs", compreendem-se familiares, amigos íntimos, colaboradores e eventuais admiradores secretos, mas se até Mozart tinha suas groupies...) e, ainda assim, trabalhar com algo respeitável e lucrativo, que não envolva as palavras "talento", "arte", "subjetivo" e "filosofia". Ademais, o tempo é realmente um bálsamo com propriedades de esparadrapo, que cobre o desconforto social que é ter uma formação acadêmica com a qual você não trabalha, em que nunca vai trabalhar e que não agrega valor algum à profissão que exerce no momento.

Estando as questões trabalho e currículo resolvidas, ainda que em termos, resta a questão "talento". Aí entram a tal "encruzilhada das palavras" e a história de Salieri e Mozart e a ingratidão de tudo isso. Comecei essa crônica exatamente por falta de inspiração, por uma vontade louca e corrosiva de escrever e a total inexistência do pelo que escrever, ou do por que escrever. Quando o trabalho tem uma função única em si e o currículo não tem função alguma, o talento - ou aquilo que você acredita ser o seu talento - é um pilar fundamental na arquitetura de toda a sua existência. Daí que, quando as palavras vão-se embora de mim, é como se as notas abandonassem um compositor. Por isso, na encruzilhada das palavras, lembro-me de "Amadeus" e da inveja que Salieri, no filme, tinha do gênio de Mozart, que produziu, em menos de trinta anos, mais de seiscentas obras.

Entretanto, não tenho ninguém para invejar; afinal, diferentemente de Salieri, que fazia da música seu sustento, não faço da literatura meu ganha-pão. Por isso, só posso esperar a inspiração voltar e, enquanto ela teima em viajar por outros vagões, levar uma vida "normal" de ex-professora-coordenadora-jornalista, pseudo-escritora e bussinesswoman-to-be. O problema em "caminhar" e ultrapassar labirintos de escolhas é exatamente esse. Quando se sai de um lugar, corre-se o risco de duvidar de quem você é a priori, exatamente pela contradição que se estabelece entre a origem, o destino e o "meio", que vem a ser, oops, você mesmo. Engatinhar é necessariamente possibilitar a caminhada. E caminhar é obrigatoriamente possibilitar a corrida. E a quem corre, dá-se asas. Voando, Ícaro vislumbra horizontes infinitos e assume, pensa ou sonha ter talentos, asas próprias. Mas tem asas de cera, com penas de pássaros. O final da história desse jovem, filho do construtor do labirinto, você conhece. A sensação de voar foi tão estonteante para Ícaro, que o rapaz se esqueceu da recomendação de seu pai; ganhou cada vez mais altitude e aproximou-se cada vez mais do sol, cujo ardor derreteu-lhe as preciosas asas de cera. Bem, ao menos não morreu confinado à Ilha de Creta, mas em liberdade, no mar. Meu consolo para tudo isso é que, comparáveis a figurinhas tais como Mozart, Goethe e até um mitológico Ícaro, só eles mesmos. E dá-lhe Freud.

8 comentários:

  1. Paradoxal, a existência de uma crônica em meio ao vazio de inspiração.
    Me parece genial, fazer da não inspiração, a inspiração. Fazer da fuga das palavras, o movimento para a procura de outras. Talvez Salieri não soube fazer o mesmo com as notas.

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  2. Ah, meu bem, a análise já me salvou de poucas e boas, ou melhor, de muitas e péssimas. Mas, já que o assunto é talento, você e Miss P. são as escritoras (oh yeah!) mais talentosas que tive o prazer de cruzar o caminho.
    É bom demais poder ler ambas novamente, e não só na recordação em sépia das redações que a Tia Suely mandava a gente fazer.
    Ê trem bão esse Expresso!

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  3. É, Matheus, sua presença aqui no Expresso demonstra, acima de tudo, seu espírito generoso, franco, amistoso e, em especial, de uma inacreditável capacidade humana de se doar. Seu caráter é admirável. Mais do que isso, sua força de caráter é, talvez, sua característica mais marcante. Te respeito e admiro muito por isso. Obrigada pelo comentário, mais uma vez. E, mais uma vez, ver sua "carinha" por aqui é um alento para mim. Esse tipo de relação, meu amigo, é insubstituível e intransferível.

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  4. Trem bão é saber que você lê as maluquices que eu escrevo, Fê! Cara, a tia Suely! Bota recordação em sépia nisso, minha linda! Senti o "puff" da naftalina nos olhos agora! Sabe de uma coisa? Acabei de ter uma idéia: que tal você, que me conhece, o que? Há 22 anos? Fazer análise "nimim"? Ou dá muuuito certo, ou muuuito errado, é isso?

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  5. Ah vai dar muuuuuuuuito errado, pode ter certeza!!! Até porque odeio perder amigos para a psicanálise... Nem pensar!!!

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  6. Só Fernanda mesmo para já me considerar escritora, UI, TE METE. rsrs
    Obrigada, Fê, de coração.
    Roberta, isso foi pq vc NÃO TINHA inspiração?
    imagina COM, hein!!

    each day your writing becomes deeper and more beautiful. =]

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  7. Ah, Mi, com inspiração, daquelas puras mesmo, sai poesia livre, lufada de vento colorido, orvalhado em lua e picolé de limão. Mas, vá lá. Um dia ela volta. Sempre volta, né?

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