24 de fevereiro de 2011

in(só)lito capítulo 9

"Cupid and Psyche", Orazio Lomi Gentileschi

Nenhum acontecimento pode se configurar como uma história de amor se não estiverem envolvidos nele determinados elementos. Muito embora a idéia de romance flutue em variáveis de acordo com a forma como o indivíduo o vivencia, certos personagens são elementares para que o ideal de amor - romântico ou pragmático - se estabeleça na consciência de quem narra, vive, ouve ou lê uma história de amor. É preciso que haja amantes e, antes mesmo que os contornos destes estejam definidos, é preciso que a mulher e o homem tenham o desejo intrínseco e espontâneo de ser amantes. 
Bruno e Márcia não devem ter saído de suas casas naquele sábado à noite com um plano concreto de viver uma história de amor. Quando vejo Bruno procurar em seu armário por uma roupa diferente das que usa diariamente para trabalhar, usar aquele perfume que estivera guardado desde que Áurea o abandonara, pentear o cabelo com mais esmero, pegar o molho de chaves e guardá-lo no bolso dianteiro da calça e, antes de fechar a porta, olhar a fotografia de Helen, sua filha que hoje tem cinco anos, não imagino que ele acreditasse poder viver um romance.
Gosto de pensar que Márcia estivera se arrumando para sair na mesma hora em que Bruno, naquele bairro distante e antigo da periferia onde sua mãe morava e que, agora, é seu lar. Imagino que Márcia tenha uma vida social mais ativa que a de Bruno, até porque é mais jovem e, tendo perdido a mãe recentemente, deve se forçar a sair de casa para não afundar em solidão e desespero. Vejo-a dispondo cinco peças de roupas diferentes sobre a cama onde, mais tarde, se deitaria com Bruno. Ela acabou de sair do banho, seus cabelos cacheados escorrem água e formam pequenas poças no chão, e está envolta numa toalha branca, aquela que Bruno usaria apenas na manhã seguinte.
Márcia perde um bom tempo para escolher qual roupa vestir aquela noite. Sabe que tem um corpo atraente e que é jovem, mas não quer usar o mesmo vestido preto, justo e decotado que metade das outras mulheres certamente estarão vestindo. Há um florido, mas ela logo o descarta porque a faz parecer uma camponesa iletrada. A terceira peça é uma combinação que ganhou de Adélia, mas não lhe parece adequado vestir calças compridas para uma danceteria. Restam-lhe duas opções: um vestido amarelo que ela mesma desenhara, cortara e costurara, e um turquesa de alças largas, que pertencera à sua mãe. Porque a consciência de Márcia ainda dói de saudades de Lira, ela opta pela última peça, esta que, em seu corpo, atrairá Bruno pela diferença que lhe salta aos olhos.
Se um viajante do tempo fosse até a jovem naquela hora e lhe dissesse que ela conheceria um rapaz, o levaria para sua casa, dormiria com ele, ouviria suas confissões e, na manhã seguinte, agradeceria à sorte de não ter consigo as chaves que possibilitariam a partida desse homem, Márcia não acreditaria, mesmo sendo supersticiosa e tendo achado a seqüência dos fatos apaixonante. Por outro lado, se viagens através do tempo fossem possíveis, talvez Márcia se dirigisse à danceteria completamente eufórica, já em busca do rapaz que a faria viver tal aventura. E, provavelmente, estando preparada para o "acaso", Bruno lhe passasse despercebido.
Muito antes de Bruno e Márcia decidirem que queriam ser amantes, antes mesmo de saírem de suas casas, essa história já era repleta de outros amantes. Pois amante é aquele que ama algo ou alguém e, mais importante, que se permite ser alvo de amor e afeto. Bruno é amante de sua pequena filha, Helen, mesmo vendo-a tão pouco e tendo quase nada em comum com ela. É amante também da idealização que fizera de Áurea, uma mulher real a quem nunca amara de verdade. É amante de sua mãe e de seu irmão, por quem sacrificou o sonho de ser arquiteto em função de uma vida real de trabalho e sustento de uma casa abandonada pelo chefe de família.
Márcia é uma amante tão fiel à Lira que usa seus vestidos para sair à noite, correndo o risco de parecer anacrônica. É amante também de seu trabalho, ofício que aprendera com a mãe, em criança, e que hoje é seu sustento principal. Há Adélia, que amava tanto Lira que, por ela, transferiu esse amor à Márcia, transformando-o em cuidado maternal. Também há o amor do porteiro, Amauri, pelo bairro, pelo edifício e por seus moradores, adoração que nasceu e cresceu com anos de dedicação àqueles elementos. E pairando sobre todos esses pequenos romances, há o amor maior, o fio condutor da história de Bruno e Márcia; porque muito antes de saberem que seriam amantes entre si, eles já eram amantes do diferente, da possibilidade de fuga e do recomeço.
Quem ama o diferente, a fuga e o recomeço é também amante das apostas. E para que haja uma história de amor, e não um poker show, é necessário que os amantes apostem em si mesmos e no outro. Quando Lira ainda era viva, costumava dizer à filha que um barco atracado ao cais não naufraga em mar alto. A mãe de Márcia nasceu, viveu e morreu atracada ao cais, viúva e sem jamais pisar em outra cidade que não fosse São Paulo. Se fosse possível a um anjo de Deus perguntar-lhe se ela gostaria de ter levado uma vida diferente, não acredito que ela responderia que sim. Para uma pequena embarcação ancorada no porto, é natural que o temor das tempestades e das ressacas do mar faça nascer um sentimento de proteção, ainda que tal sentimento gere insegurança e um temor ainda maior da vida, das jornadas e da mudança. Em Márcia, a proteção de Lira gerou tão somente contradição: diferentemente da mãe, a jovem anseia por navegar para mais longe, sentir o vento inflar-lhe as velas, o sal temperar-lhe as escolhas e as ondas sacudirem suas certezas. Mas o medo e a insegurança são uma âncora pesada demais, de maneira que Márcia apresenta-se para o mundo como uma galé deslocada numa enseada de águas rasas e mansas, sacudindo-se enfurecidamente para se libertar das correntes atadas ao porto.
Dessa maneira, a jovem aposta muito mais no amante que o outro pode ser do que na amante que ela mesma é. Quando dá as cartas, é como um marujo bêbado, de passos trôpegos e visão embaçada, e quando tenta premeditar a jogada do outro, espera sempre que sua própria mão tenha cartas piores e menos valorosas do que a de seu oponente. Na verdade, Márcia senta-se à mesa do cassino para jogar um jogo cujas regras desconhece, e penso se chegará o dia em que ela vá perceber que, às vezes, pode-se jogar em dupla. Quando vejo os traços de Bruno se formarem diante dos meus olhos, penso numa criatura mais serena que Márcia, num homem mais resignado e racional, embora com um enorme talento para embarcar em galés aventureiras. E vejo, sobretudo, a figura de um imigrante pobre que entra no convés de um navio às escondidas, para chegar à terra prometida. Das humilhações e decepções sofridas, Bruno aprendeu a abrir seu próprio espaço na multidão, ainda que esta atire salmoura em suas chagas para afastá-lo do sucesso. Agrada-me conceber Bruno como alguém que aposta muito mais em si próprio e no amante que ele é e pode ser do que no outro. Esse rapaz sabe que o outro tende a fraquejar, sucumbir e perder para si mesmo. No entanto, Bruno conhece os limites que o definem e os horizontes que pode cruzar, por isso aposta em si mesmo e paga caro para ver se sua escolha, após tanto tempo, valerá seu investimento pessoal.
Se fosse permitido ao autor escrever a história de todas as personagens que o rondam e de todas as outras que habitam o subjetivo de suas personagens principais, talvez eu escreveria a história de Áurea, uma mulher que imagino linda, com cabelos sempre alinhados e roupas de seda esvoaçantes. Essa mulher que é puro éter contra os traços sublinhados em carvão de Bruno e Márcia, possuía tudo do muito que a maior parte das pessoas ambiciona para si: uma carreira glamourosa, uma herdeira com nome de princesa e um marido dedicado. Ainda assim, Áurea queria mais. E se, mais do que narrar as histórias de qualquer um, fosse possível ao autor apagar o que foi escrito e reescrever novas páginas, a partir do final, acredito que me sentiria tentada a fazer de Áurea a amante apaixonada, dedicada e admiradora que Bruno idealizara. Mas, então, seria desleal com Márcia porque essas são características dela, e não da mãe de Helen.
De qualquer maneira, do azar de Bruno nasce a sorte de Márcia e do encontro casual deles na danceteria - sim, seu encontro fora casual, mas não sua escolha - nasce uma série de causalidades que os levam a se reencontrar sob uma perspectiva diferente e única. Nesse reencontro, os amantes descobrem que, sós em suas idiossincrasias, não estão sozinhos no aspecto insólito de suas decisões a partir do momento em que pressentem a chegada do amor. Por isso Bruno releva as contradições infantis de Márcia e, esta, ignora a dúvida de ele passar uma manhã e uma tarde com ela apenas porque não tinha meios de ir embora dali.
Acabo de me lembrar que Márcia pergunta a Bruno se alguém já havia controlado o seu destino. Por mais contraditória, insegura e imatura que seja, ela não é uma mulher simplória. E sabemos que, além de inteligente, Márcia é alguém que precisa decidir o próprio destino para se sentir pertencente ao mundo e à realidade. Não acredito que fosse seu objetivo manipular o rapaz por quem desejava se apaixonar até porque, àquela altura, ela já descobrira que não era uma boa jogadora. Penso que a pergunta de Márcia, se Bruno possuir uma sintonia fina o bastante para lhe perceber o subtexto, soará como um convite tácito, mas que diz a ele o essencial de si mesma; se a própria jovem responde por Bruno, lhe dizendo que ele escolhe quando entrar, quando sair e quando voltar, gosto de acreditar que ela poderia mesmo ter-lhe sugerido o seguinte: quer fazer o seu destino junto com o meu?    

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