24 de fevereiro de 2011

in(só)lito capítulo 8

"Rising Road", Gustave Caillebotte

"Você sempre morou nesse bairro"?
"Não. Vim para cá há quase um ano".
"E por que escolheu justamente aqui? É tão isolado de tudo...."
Ele caminhava ao lado dela, com as mãos nos bolsos, e ia chutando pedrinhas no chão do parque. Era um  início de tarde de outono inacreditavelmente incomum na capital paulistana: o vento soprava uma brisa gentil e fresca, havia nuvens ralas e esparsas no céu e as folhas das amendoeiras filtravam o sol, que refletia minúsculos vidrilhos no chão de terra batida. Márcia andava com os braços cruzados na altura do peito e, de vez em quando, parava para prender os cabelos. Já haviam circundado o parque mais de uma dezena de vezes. Havia bancos de madeira a cada cem metros, um caramanchão coberto por damas-da-noite e um coreto pequeno, bem na área central. No final da extensão do parque, algumas mães vigiavam seus filhos nos balanços azuis e nas gangorras amarelas. As risadas pueris e os gritos maternos de atenção eram o único som que invadia o silêncio daquele lugar. Desde que haviam começado a caminhar, apenas dois carros passaram por eles, ambos vagarosos e pacientes, como se os motoristas tivessem-nos retirado da garagem apenas para dar uma volta pelo parque. Passaram também pelo carro de Bruno, estacionado rente ao meio-fio, em frente a uma casa branca com portões de madeira azul. Márcia apontara a casa e não precisou dizer mais nada. Bruno concluiu que Adélia e Ivan moravam ali.
"Não é tão longe se você tem um carro".
"Mas é duplamente difícil chegar ou sair daqui se você tem um carro, mas não as chaves".
Riram juntos. A caminhada, o vento, o sol e as árvores cortaram a animosidade que havia entre eles. Se Bruno forçasse um pouco a imaginação, poderia até acreditar que acabara de conhecê-la. E dessa forma, mais relaxados e confortáveis os dois, fizeram de conta que o incidente não acontecera e que não era por ele que precisavam estar juntos naquele momento. A causalidade nascida de uma casualidade funcionou como escudo e remédio para eles. Não era preciso que se lembrassem da noite passada, que Márcia narrasse os fatos para Bruno e cobrasse dele a versão sóbria de sua própria história. Com a tarde livre, inteira pela frente, eles poderiam ignorar as vantagens e desvantagens envolvidas na posição da mulher que se deixa tomar por um desconhecido e do homem que se esquece dos detalhes de sua posse.
"Você trabalha, estuda aqui no bairro?"
"Não. Trabalho no centro. Tomo um ônibus até a estação do metrô e, de lá, vou para o ateliê".
"Ateliê? Você é pintora?"
Ela deu uma de suas gargalhadas sonoras e cristalinas. Bruno gostava daquele som em especial porque, em muitos níveis, a comparação entre os amantes é inevitável; Áurea até sorria de vez em qundo, mas jamais se permitia gargalhar. Sua ex-mulher afirmava que gargalhar era sinal de pouca inteligência e muita falta de boas-maneiras. A proibição era extensiva à Helen, a filha do casal, que já se tornava uma miniatura viva da mãe e, quando mirava Bruno, vinha na forma de uma reprimenda grave e descabida.
"Não! Quem me dera... É um ateliê de costura. Trabalho com um estilista. Bem, ele prefere ser chamado de 'alfaiate', de modo que isso me faz uma de suas costureiras".
"Você gosta do que faz?"
Novamente ela pensou para responder. E, mais uma vez, Bruno soube que sua resposta seria honesta:
"É algo que eu sempre fiz, desde criança. Gostaria mais se eu pudesse desenhar alguns modelos e que o meu patrão produzisse pelo menos um".
"Mas você desenha?"
"Às vezes, sim".
"Mas nunca mostrou nenhum desenho para o seu patrão, aposto".
"Como sabe?"
Ele parou de andar, olhou para o céu, deu um suspiro comprido e sentou-se num banco próximo ao caramanchão. Esticou as pernas e os braços, até Márcia ouvi-los estalar.
"Preciso me exercitar mais. Essa caminhada deu para cansar. Vem cá, Márcia. Senta um pouco".
Ela aquiesceu e sentou-se junto dele.
"Sei que você nunca mostrou seus desenhos porque eu também nunca mostrava os meus quando prestava serviços para escritórios de arquitetura".
"Por que você acha que a gente faz esse tipo de coisa?"
"Ou por que não fazemos certo tipo de coisa, você quer dizer".
Ela baixou os olhos e sorriu, baixinho dessa vez.
"Meu irmão é um sujeito corajoso, sabe. Topa qualquer empreendimento, viagem, aventura, o que for para ter sucesso. Ele diz que a gente se acostuma a viver à sombra e que, quando sai dela, fica incomodado com a luz do sol. Viramos toupeiras subterrâneas. Vai ver é por isso".
"Minha mãe costumava dizer que o barco que fica no porto não naufraga em alto mar. Acho que ela queria dizer que não valia muito a pena tentar, já que o fracasso era certo".
"Como assim 'costumava dizer'? Ela mudou de opinião agora?"
Bruno percebeu que ela engoliu em seco e virou o rosto para o lado oposto ao dele. Sentiu um arrepio de gelo percorrer-lhe a espinha. Desejou terrivelmente não ter tocado naquele assunto.
"Minha mãe morreu no ano passado. Diabetes. A casa era dela. É dela".
O vento soprou mais forte e trouxe um guardanapo sujo de sorvete até o bico da bota que ela calçava. Os dois ficaram olhando para aquele pedaço de lixo grudado no sapato de Márcia, sem saber o que dizer. Bruno ajoelhou-se a seus pés, tirou o guardanapo da bota dela e segurou a moça pelo tornozelo. Levantou a cabeça e olhou para ela. Os olhos de Márcia estavam mudos, pela primeira vez desde que se dera conta deles. E o rosto dela era uma sombra pálida e fria de pesar.
"Eu tive vontade de me matar quando minha morreu, Márcia".
"Eu não tinha forças nem para isso, Bruno".
Ele continuava aos pés dela, a mão direita segurando seu tornozelo, um joelho apoiado no chão, o outro, flexionado.
"Mas aí meu irmão, que sofreu como o diabo, me contou que a mãe sempre dizia que um morto não tem o direito de controlar o destino de um vivo. Ela falava isso do meu pai, que nem morto estava, mas era como se estivesse".
Bruno ouviu-a reprimir um soluço. Então um gemido rouco escapou-lhe à garganta e, por um momento, ela pareceu prestes a desabar em pranto. Mas nem uma única lágrima roçou-lhe a face.
"Sua mãe estava certa. A bem da verdade, nem mesmo um vivo tem o direito de controlar o destino de outro, não é?". E esticou a mão para ele, puxando-o de volta ao banco.
"É. Acho que não. Pelo menos em tese".
"Alguém já tentou controlar o seu destino, Bruno?"
"Além de você e de sua amiga, me deixando sem as chaves do carro e de casa?"
"É. Além de nós. Nossa tentativa se revelou um fracasso e tanto".
Agora era a vez de Bruno ponderar sobre a resposta. Certas perguntas são tão íntimas e inesperadas que não se pode nem ao menos fingir uma resposta sem análise prévia. Márcia olhou para ele. Gostava dos seus cabelos escuros, arrepiados na franja e com pequenas ondas na nuca. Quis tocá-lo ali, enquanto ele pensava na pergunta que havia lhe feito. Primeiro ajeitou os fios com delicadeza, depois afundou os dedos nas mechas, até que tocassem seu couro-cabeludo. Acariciá-lo fazia com que ela se sentisse mais mansa, menos tensa.
"Eu não acho que a sua tentativa tenha sido um fracasso total".
"Parcial, então?"
"É. Talvez. Não é uma pergunta fácil."
"Sabe, Bruno, mesmo que eu tentasse controlar o seu destino, ou mesmo que eu quisesse, não acredito que seria possível".
"Por que não?"
"Porque você decide quando entrar, quando sair e quando voltar."
"Nem sempre foi assim, Márcia".
"Mas é assim agora. E, para mim, porque você entrou na minha vida agora, é como se tivesse sido assim sempre".
"Então quer dizer que eu entrei na sua vida?"
"E esqueceu as chaves do lado de fora".
Ele ainda sorriu antes de beijá-la na boca. Márcia abraçou-o e sentiu que ele a puxava para o seu colo. A pressa e a ansiedade da noite anterior não existiam mais. Eles já tinham possuído um ao outro. Agora era a hora de decorarem os traços, os gostos, as cores e as palavras um do outro. Bruno ouviu o ronco de um motor de carro ao longe, mas não se preocupou em soltar Márcia. Ela valia a pena cada aborrecimento daquele domingo insólito.
"Ei, Márcia. Tudo bem aí?"
Adélia parara seu carro em frente ao banco onde estavam, do outro lado da rua. Ivan vinha no banco do carona e olhava um livro, para não constranger a mulher, sua amiga e o rapaz desconhecido.
"Adélia! Nossa, que surpresa. Esse aqui é..."
"Eu sei, querida. Tudo bem, Bruno?"
O véu do constrangimento caiu sobre eles como uma montanha de terra úmida. Bruno meneou a cabeça em sinal afirmativo e pigarreou.
Adélia saiu do carro, foi até eles, abraçou Márcia brevemente e entregou-lhe um pequeno molho de chaves. Elas tilintaram em sua mão e aquele som pareceu-lhe insuportável.
"Obrigada, Adélia".
"Tudo bem, querida. Sua mãe teria feito o mesmo. Só não teria se esquecido de devolver as chaves na manhã seguinte!" - e deu um riso sem-graça - "Desculpe, Bruno. Meu marido e eu voltamos o mais rápido que pudemos. Você sabe como é o trânsito da praia para cá no domingo..."
"Claro. Não há necessidade de desculpas. Eu é que preciso agradecer".
"Então tudo está bem. Vou indo agora. Márcia, juízo, menina".
"Ora, Adélia, o que é isso..."
"E você, Bruno, não tem mais nada de menino, mas um pouco de juízo também lhe cairia bem".
"Adélia. Venha. Temos que ir" - era Ivan, numa tentativa malograda de frear a personalidade autoritária da mulher.
"Até mais, gente. Boa sorte para vocês. Acho..." - e voltou para o carro, partindo em seguida, deixando Márcia e Bruno como duas estátuas de sal, coladas ao chão.
Ela o olhou demoradamente, tentando prever se ele a abraçaria ou beijaria. Mas não fez nem um, nem outro. Apenas olhava seu rosto, estudando cada nuance das expressões de Márcia. Ela estendeu a mão para ele, a mão que estivera crispada sobre o chaveiro prateado.
"Suas chaves, Bruno. Agora não temos mais desculpas para estar aqui".

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