23 de fevereiro de 2011

in(só)lito capítulo 6

"Lua de Mel do Pintor", Frederic Leighton

Sentou-se sobre as pernas cruzadas, de frente para ele, no divã. Pegou uma das almofadas pequenas e cobriu com ela o regaço que se formava ali. Olhou distraída pela janela lateral, mas Bruno não lhe fisgou a isca. Foi até ela, tomou-lhe uma das mãos e pediu que se levantasse. De pé, podia observá-la por inteiro, à altura dos olhos. A pele de seu pescoço era tão branca que ele antevia um feixe de veias azuladas no ponto em que as clavículas se encontravam; aproximou-se mais dali e viu aquela carne macia tremer sob o seu pulso. A respiração dela estava mais acelerada e gotículas de suor cobriam-lhe a testa, o nariz e as bochechas. Ela puxou a mão com força para se soltar, mas Bruno não fez a menor menção de deixá-la sair.
"Sabe, eu não me lembro do nosso primeiro beijo. Então é como se não houvesse existido, concorda?"
"Essa sua falta de memória é um insulto para mim, sabia?"
"Insulto é você me esticar feito uma corda, para ver se arrebento ou não".
"Não faço nada disso. Só estou esperando o tempo passar para você pegar as suas chaves e ir embora de uma vez".
"Você é tão contraditória, mocinha. E esse seu jogo infantil de palavras não funciona mais".
"E você se garante com esse charme de bêbado desmemoriado?"
"Você parece ser mais esperta do que isso, Márcia. Percebeu que eu não estava nada sóbrio muito antes de me convidar para a sua casa. Então, cá estamos. Para que bancar a garota mimada quando ainda temos tanto tempo para esperar passar?"
As palavras de Bruno tingiram o rosto dela de um carmim humilhado, severo e sufocante. Márcia sentiu os olhos arder de raiva e tentou empurrá-lo para longe de si. Uma onda de pavor repentino lambeu-lhe por dentro e congelou suas vísceras; o homem frágil e facilmente manipulável do início da manhã havia desaparecido. Aquele era um desconhecido completo para ela. A relação de eqüidade deixava-a desamparada e ela se sentia uma tola por ter permitido que ele subisse novamente ao apartamento.
"Você tem maneiras muito peculiares de tomar as mulheres que quer". Sua voz soou falhada, como um débil sussurro.
"Você é uma mulher muito peculiar. Mas nem por isso, ou especialmente por isso, vou tomá-la à força, se é o que você está esperando para marcar mais um ponto nesse jogo besta".
Disse isso e soltou-lhe os braços. Márcia se surpreendeu com o misto de alívio e desapontamento que sentiu quando o viu caminhar até a porta. Tudo vinha acontecendo de uma forma muito errada entre eles, mas ela não podia deixar de pensar que se optassem pela discórdia, o erro seria ainda maior e irreparável. 
"Você não precisaria me tomar à força".
Suas mãos crisparam-se de ansiedade quando disse isso. Bruno voltou-se para ela, a expressão carregada de cansaço, frustração e cólera. Não compreendia porque ela, então numa posição favorável, insistia em brincar de gato e rato com ele. O jogo até poderia ser excitante no início, mas logo tornava-se tedioso e sem sentido, principalmente entre os dois, que já haviam estado juntos. Quis abrir a porta, sair daquele apartamento onde o tempo parecia não correr, chamar um chaveiro e reportar o furto do carro. Mas ao mesmo tempo queria aprender a calar aquela mulher e pagar para ver se ela realmente valia tanto aborrecimento.
"Vamos dar uma volta, Márcia. A gente precisa se conhecer. Eu quero conhecer você".
"Você já me conheceu".
"Não é verdade. Eu tive você por uma noite. Isso não é conhecer alguém".
"Sob essa perspectiva, então eu tive você por uma noite, Bruno".
"E uma noite apenas basta para você?"
Ela pensou para responder. Ponderou. Pesou possíveis injúrias, promessas e verdades. E por aquela breve e distinta hesitação, Bruno teve certeza de que ela seria franca, talvez pela primeira vez desde que acordaram:
"Eu não sei. Realmente não sei se uma noite apenas me basta, se eu desejo o dia seguinte, se quero que você me conheça".
Ele sorriu, já se acostumando ao modo esquivo dela: "Mas eu já conheci você, não foi o que disse?"
"É diferente. Foi diferente".
"Então pronto. Vamos dar uma volta e então, quem sabe, você e eu não descobrimos de quantas noites precisamos para nos fartar um do outro".
"Você não precisaria se fartar de mim para conhecer a mim".
"Eu quero acreditar nisso, Márcia. Minha insistência já é um sinal de que acredito, ao menos em parte".
"Querer acreditar não basta, Bruno..."
"Eu sei. Mas você está dizendo isso para mim ou para si mesma? Venha. Esse apartamento tem alguma coisa que sufoca, que faz a gente perder a cabeça".
Quando Márcia abriu a porta de vidro da entrada do edifício, a lufada de vento fresco que embaraçou seus cabelos e a luz dourada do sol, filtrada pelas nuvens de outono, deixaram claro para ela que Bruno estava certo.

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