23 de fevereiro de 2011

in(só)lito capítulo 4

"A Conversa", Toulouse Lautrec

Sentaram-se na saleta de entrada, ele numa poltrona próxima à janela, ela, num divã de cerejeira pequeno, adornado por almofadas de veludo amarelo. O silêncio seria total, não fosse pelo tic-tac do pêndulo prateado de um relógio de parede. Bruno observava cada detalhe daquele apartamento atípico. Havia duas janelas na saleta e mais três na sala de estar. Os cômodos eram todos interligados por um corredor comprido de tábuas corridas. O piso não brilhava. A ele parecia que Márcia optava por manter o local com essa aparência rústica. Cortinas de organza cor de creme cobriam cada uma das janelas e estas eram de madeira pintada de verde pálido. Atrás do divã onde ela se recostava, encostada à parede, uma cristaleira pequena abrigava artigos de cerâmica e algumas taças foscas. Os lustres eram de cobre e pendiam do teto como ramos de bouganville. Cada minuto de imersão naquele apartamento significava horas distante do mundo de trânsito, balbúrdia, tecnologia e competição ao qual ele estava habituado.
"Adélia não está em casa. Nem o Ivan."
"E o cenário vai ficando cada vez mais bizarro..."
"Eles devem ter viajado. Não costumam ficar na cidade aos domingos".
"Eu suponho que sua amiga tenha telefone móvel. Ou ela vive numa bolha do século passado, como você?"
"Na verdade, não. Fico aliviada em saber que você não seja um arquiteto, como queria. A decoração desse apartamento não é do século passado".
Calou-se. Travar nova batalha com aquela mulher não o levaria a lugar algum. Observou-a pegar um pequeno bloco de notas, consultá-lo e, em seguida, discar os números. A forma como Márcia curvou-se ao telefone, deixando os cabelos cobrir seu rosto, fez com que ele se sentisse constrangido por ela. Foi até a cozinha e esperou na bancada onde haviam tomado café. A sensação de que havia sido enredado numa armadilha ia se volatizando, até restar nada mais do que um inconveniente a ser resolvido de maneira prática. Sentiu fome. Consultou o relógio de pulso; já passava das nove horas e ele só havia tomado alguns goles de café. Serviu-se de uma fatia de bolo de laranja. Não se parecia com aqueles que comprava no supermercado da esquina de sua casa. Será que ela o teria feito? Partiu uma segunda fatia. Gostou especialmente da cobertura açucarada, úmida do suco de laranja. Havia também queijo curado, manteiga fresca e torradas. Comeu um pouco de tudo, com mais uma xícara grande de café para acompanhar. Volta e meia olhava pela janela da cozinha e avistava as copas das amendoeiras do parque, balançando na brisa. Escutava a voz de Márcia vindo da saleta, o relógio antigo de parede e uma janela batendo ao longe. Aquela quietude já não o irritava mais. Ao contrário, sentia-se equalizado à ela. 
"Eles foram para Ubatuba. Adélia levou suas chaves com ela. O carro está a duas quadras daqui, no final do parque. Bem na frente da casa deles, para dizer a verdade". 
"Hum... Então a sua amiga não entregou as chaves para o... Cipriano. É isso?"
"Romano. É o porteiro da noite. Não. Ela disse que achou melhor guardá-las. O Romano só está aqui há três semanas".
"E em que parte da história entramos eu, a manhã do dia seguinte, o carro e a volta para casa?"
"Desculpe, Bruno. Isso é tudo muito... insólito, sabe. Adélia tinha planejado tocar aqui bem cedo para entregar suas chaves, mas esqueceu completamente. Disse que só se lembrou agora, quando liguei".
Ela olhou para a bancada da cozinha, o bolo partido, migalhas no prato. Forçou-se a sorrir, parecendo completamente deslocada.
"Pelo menos você não está mais em jejum. Mas eu suponho que as chaves da sua casa não estejam com as do carro..."
"O que você acha, Marcinha?"
"Só o Amauri me chama assim"
"Ah... Eu aposto que a Adélia e o Ivan também..."
"Não."
"'Não', eles não chamam você de Marcinha ou 'não', você não acha que as minhas chaves de casa estejam com as do carro?"
"As duas coisas".
Bruno riu. A risada dele era curta, mas intensa e grave. Ela não sabia se deveria sorrir, fazer um comentário inteligente ou ficar calada. Optou pela última alternativa. Não sabia mais como agir numa situação tão inesperada.
"Pois é, Márcia. Você achou errado. Minhas chaves ficam juntas. E, agora, estão dando um passeio em Ubatuba, veja você".
"Eles voltam hoje mesmo, à tardinha. Eu... Bruno, nem sei o que dizer. Quero dizer, se não fosse por Adélia, nem teríamos chegado aqui, mas..."
"Também não tenho muito para falar. Eu nem me lembro de ontem à noite..."
"Você não se lembra de absolutamente nada? Está falando sério?"
Ele percebeu a mudança de tom em sua voz. Não era apenas curiosidade; havia uma pontada de mágoa, um ressentimento velado que ela insistia em ignorar com altivez. Ponderou a situação pela perspectiva dela por um momento. Se não fosse pelo deslize da amiga, ela teria todo o direito de expulsá-lo dali a pontapés. No entanto, estavam atados por um incidente, ambos ressentidos em solidão. A diferença é que Márcia vivenciava essa solidão nas lembranças e Bruno, na suposição do que poderia ou não ter acontecido. E na solidão da memória dela, que também representava uma ameaça para a segurança dele, Bruno sabia existir uma serpente enroscada, prestes a esmagar a auto-estima de Márcia.
"Também não é assim. Claro que me lembro do que me marcou. Do importante. Os detalhes é que me escapam".
"Mas não são os detalhes que deveriam contar como 'marcantes' num encontro casual?"
"Eu falava dos detalhes práticos, mocinha. Carro, chaves, nomes, histórias".
"E esses detalhes não são importantes?"
"Sim. São importantes. Mas eu estaria mentindo se dissesse que são o que marca num encontro casual".
"Eu não saberia dizer o que é marcante num encontro casual. Afinal, é tudo tão... casual."
Ele pensava que estaria preparado para algo fortuito como conhecer uma garota na danceteria, levá-la para cama e seguir a vida incólume no dia seguinte. Mas não estava. Naquele momento, vendo-a de pé na porta da cozinha, os cabelos presos em desalinho no coque frouxo, braços envolvendo o próprio tronco e a expressão desolada de alguém que não entendia como havia chegado até ali, Bruno foi atingido pela certeza de que bastava um único deslize no plano de estar com alguém sem, de fato, envolver-se com ele, para que até o momento mais casual fosse cerceado pela causalidade.
Foi até ela e, vencendo um embaraço inicial, pegou-a pela mão e levou-a até a saleta de entrada. Haviam cruzado uma ponte de onde não possuíam meios para retornar, pelo menos não naquele momento, não enquanto ainda houvesse uma coincidência a dispô-los sobre os pratos de uma mesma balança. Ficou com ela perto da porta, para não se sentir rejeitado demais caso ela pedisse para ele sair.
"Lembro que você foi a única mulher que chamou minha atenção naquela danceteria. Vi você passando, de costas para mim. Você era diferente de tudo, de todos ali".
"Em que sentido?"
Ele deu um suspiro cansado. Em outra ocasião, as perguntas dela o instigariam mas, agora, apenas deixavam-no exasperado. Talvez porque o obrigassem a pensar e, conseqüentemente, a optar por dizer a verdade ou não. 
"Não tenho uma resposta objetiva para isso. Seu vestido, talvez. Parecia pouco... jovial para a sua idade. O jeito de andar. Você olhava para baixo, parecia nem se dar conta do lugar, da música, das pessoas".
"E então, quando eu estava voltando, você segurou meu braço e disse que precisava me dizer uma coisa."
Ele sorriu e sentou-se na poltrona. Tirou os sapatos, recostou-se e esticou as pernas confortavelmente. Aquela conversa não iria terminar tão cedo. E, de qualquer forma, só teria as chaves do carro e de casa à noite. 
"É. Não me esqueci disso. Então eu disse que você era uma figura muito diferente, que não pertencia àquele lugar, e perguntei se queria beber alguma coisa".
"Você também não me pareceu um habitué, Bruno. Estava até mais deslocado do que eu, para dizer a verdade".
"Então por que me deixou beijar você? A minha estranheza seria a sua chance para me deixar sozinho no bar".
Ela foi até ele e se abaixou até que seus olhos se nivelassem. O olhar dela era tão intenso que ele não o conseguiu sustentar.
"Digamos que, talvez, o estranho me atraia."
"Talvez?"
"Absolutamente".
"Muito?"
"Mais do que a outras garotas". Então ela roçou-lhe os cabelos num beijo leve, aspirando o perfume que exalava do alto de sua cabeça. Fez isso como se fosse o gesto mais corriqueiro do mundo, antes de se afastar dele. E Bruno percebeu que já não estava mais contando os minutos para que Adélia e Ivan voltassem de Ubatuba.

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