24 de fevereiro de 2011

in(só)lito capítulo 10 [final]

"Expectations", Gustav Klimt

Ele tomou as chaves da mão de Márcia, sopesou-as por uns segundos e, em seguida, guardou-as no bolso dianteiro da calça. Ficou olhando para a mão erguida da moça, seus dedos longos e as unhas pequenas e quadradas. Consultou o relógio: quase cinco horas. Mais nuvens se acumulavam no céu agora e o vento começou a soprar mais frio. Ela envolveu o próprio corpo num abraço solitário e esfregou as mãos nos braços, arrepiados.
"Parece que essa noite vai ser gelada".
Bruno não respondeu. Imaginava que em pouco tempo o sol sumiria no horizonte, as mães deixariam a pracinha do parque com seus filhos para dar início à rotina noturna de banho, jantar e histórias para dormir, outros moradores chegariam da praia ou mesmo da cidade, o turno de Amauri terminaria para começar o de Romano, ele pegaria um engarrafamento absurdo até chegar ao seu bairro e Márcia voltaria para o apartamento da mãe, para a mobília antiga, o tic-tac do relógio de parede e o bolo de laranja sobre a bancada da cozinha. Tudo aquilo, por mais habitual e normal que Bruno soubesse que fosse, não parecia natural.
"Eu não precisaria de desculpas nem subterfúgios para estar aqui, Márcia".
"Fico feliz em saber disso. Não lido muito bem com desculpas".
"É mais difícil para você pedir ou aceitar desculpas?"
Ela sorriu, um riso curto e triste como uma lua-crescente no céu, e tocou-o no rosto. Bruno fechou os olhos por um segundo e deu-se conta de que, em cinco anos de casamento, Áurea nunca o tocara dessa maneira. Segurou-lhe a mão e beijou sua palma. Ocorreu-lhe também que, em cinco anos de casamento, nunca quis beijar a palma da mão da ex-mulher. A carícia de Márcia seguida da sua, e a constatação de que não fora capaz de trocar um gesto íntimo e ao mesmo tempo tão espontâneo com a mulher que um dia pensara ter amado, preencheram-no de leveza e desprendimento. O passado, tal qual o presente, não passavam de bolhas coloridas de sabão. Caberia a cada um soprá-las para longe, estourá-las ou continuar produzindo-as, até que os olhos se fartassem de tanta volatilidade e cor.
"Acho que é difícil para todo mundo desculpar e pedir perdão, Bruno. Ninguém quer errar, essa é a verdade".
"Mas nem tudo é só querer, não é mesmo, mocinha?
Ela olhou para cima, para as folhas de amendoeira que o vento fazia balançar. 
"Às vezes eu me canso das coisas que quero. Outras vezes me canso de querer. Mas então me lembro de que me sinto muito exaurida e vazia quando não quero absolutamente nada".
A frase "e o que você quer, afinal?" formou-se imediatamente no pensamento de Bruno, e chegou mesmo a deslizar por sua língua. Mas ele cerrou os dentes e ficou em silêncio, mais uma vez. A perspectiva de entrar em seu carro e voltar para casa o emudecia e embotava-lhe a consciência. Sentiu-se subitamente muito cansado, com as pálpebras pesadas de um sono de morte.
"Márcia, você foi uma surpresa adorável. A melhor surpresa que eu tenho em anos, para ser honesto".
Ela quis perguntar a ele se tinha sido apenas uma surpresa adorável naquele domingo, se gostaria de continuar sendo surpreendido e o que poderia fazer para que ele não a deixasse sozinha naquele final de tarde frio. Cada uma daquelas perguntas ela teve que engolir a seco, por puro medo das respostas.
"Preciso ir agora, moça".
"Claro. Já passou da sua hora, não é?"
"Estou cansado, na verdade. Preciso colocar o sono em dia. Amanhã é dia de trabalho".
"Para mim também. E nós não dormimos muito".
Os sorrisos de Márcia ficavam cada vez mais forçados e nitidamente constrangidos. Bruno não queria se lembrar dela daquela forma.
"Bem, você me acompanha até o carro?"
"Passamos tantas vezes por ele que tenho certeza de que você não vai errar o caminho, mesmo sem ter espalhado migalhas de pão para marcar suas trilhas, Joãozinho. Está ficando muito frio. Vou subir, se você não se importar".
"Claro. Já passou da sua hora, não é?"
Novamente ela tentou esboçar um sorriso, mas a Bruno pareceu uma caricatura, a sombra da mulher jovial e enérgica que ele havia conhecido. Olharam-se uma última vez, demoradamente. O vento deixou uma mecha do cabelo dele cair sobre a testa e trouxe folhas secas de amendoeira para perto de seus pés. A chegada de Adélia com as chaves representou, de alguma forma, a ruptura da ponte delicada que haviam construído entre si durante o dia. Eram, mais uma vez, dois estranhos solitários e nus num parque repleto de amendoeiras e folhas mortas e desconheciam a razão para tanto distanciamento.
Márcia caminhou até o prédio sem olhar para trás. Seu peito queimava como se ela tivesse engolido soda cáustica. Abriu a porta de vidro e deparou-se com o olhar desconfiado de Amauri. Sentou-se na mesma poltrona onde Bruno esperara por ela enquanto procurava as chaves com o porteiro pela manhã. Ouviu o motor do carro dele roncando até o silêncio retornar à entrada do edifício. Naquele momento soube que ele tinha saído do seu bairro, da sua história e da sua vida, e arrependeu-se imediatamente por não ter sequer o abraçado uma última vez.

A vida de Márcia continuou do ponto em que havia estado em suspensão, há três semanas. Acordava às sete da manhã, tomava um copo de leite gelado, vestia o uniforme do ateliê, caminhava até o ponto de ônibus, pegava o metrô em seguida, trabalhava até as sete da noite, retornava para casa, tomava um banho, comia as sobras do café da manhã e ficava assistindo à televisão até o sono chegar. Nos três finais de semana que sucederam seu encontro com Bruno, ela pensava em voltar àquela danceteria para encontrá-lo, mas jamais tivera coragem e audácia para por a idéia em prática. Não haviam trocado números de telefone, o que a poupava da ansiedade de esperar que ele entrasse em contato com ela. Nos primeiros dias sentiu um vazio imenso e a certeza de que fizera algo muito errado. Com o tempo, o vazio cedeu espaço a uma tristeza muda e inexplicável e ela já não pensava mais no que poderia ter acertado e onde teria falhado. Apenas sentia falta dele. Mas ainda pior do que a saudade do homem que conhecera era a nostalgia pelo homem que ela ainda queria conhecer e por quem seu desejo de se apaixonar não havia morrido.
No quarto final de semana, Márcia resolveu sair de casa. Era domingo, uma manhã típica de inverno paulistano, com nuvens pesadas no céu e um vento gelado vindo do sul. Ela vestiu uma malha azul pesada, calças de veludo e botas pretas, prendeu os cabelos num gorro laranja, trocou meia-dúzia de palavras com Amauri e foi caminhar no parque. Nesse dia não havia crianças, nem mães, apenas dois vira-latas de rua revirando os latões de lixo. Ela andava com as mãos nos bolsos e sentia o frio queimar-lhe a pele das bochechas. Lembrou-se de que poderia ter pego um cachecol, mas estava com muita preguiça de voltar até o apartamento.
Perdeu a noção do tempo em que ficara dando voltas ao redor do parque. Ela não se exercitava assim há dias e o movimento lhe fez bem. Seu sangue circulou mais depressa, o rosto ficou corado e ela não sentiu tanto frio. Retirou o gorro e soltou os cabelos. Olhou para o céu. Não havia a menor brecha por entre as nuvens para que o sol pudesse chegar até as amendoeiras. Sentou-se no banco próximo ao caramanchão e retirou um pequeno livro do bolso da calça. Eram poesias que Adélia havia lhe dado há poucos dias. Leu três páginas e sentiu as pálpebras pesadas de sono. Olhou para o prédio no final da avenida e ponderou que chegaria em seu apartamento em dez minutos. Mas, então, aquele torpor envolvente a teria abandonado e ela perderia a chance de tirar uma soneca agradável no parque. Acomodou-se melhor no banco, fechou os olhos e adormeceu.
Quando despertou, viu que as nuvens estavam mais espessas e o vento, mais frio. Pensou em voltar para casa, assar um bolo de banana e levá-lo para Adélia e Ivan mais tarde. Foi então que o ouviu, sua voz vindo de trás dela:
"Você não tem medo de dormir num banco de praça, sozinha?"
Ele estava sentado nos degraus do caramanchão, sorria e olhava para ela. 
"Pelo jeito eu não estava completamente sozinha".
"Mas poderia estar. E, então, seria perigoso. Você precisa de mais juízo, menina".
"E você está atrasado. Quatro semanas. Nunca ninguém me deixou esperando tanto tempo".
"E daí? Você não costuma esperar pelo que quer"?
Ela riu alto; a gargalhada pela qual ele acreditara ser plenamente possível se apaixonar.
"Não em portarias. Em bancos de parque no inverno? Pouco provável.
"E então esperava o que, cochilando aí, alheia à vida efervescente do seu bairro?"
Em cinco passadas ela chegara até ele. Estendeu-lhe a mão para ajudá-lo a se levantar.
"Esperava o tempo melhorar e o céu abrir".
"Mas estamos em pleno inverno, mocinha".
"Eu não sou mais uma mocinha".
"Vai ser sempre uma mocinha para mim. Teimosa, contestadora e mimada. Mas diferente. Especial".
"Você nunca me disse que eu era especial".
"E você nunca me pediu para ficar".
"Fica. Por favor. Eu quero muito".
"O que você não sabe, moça, é que eu vim para ficar. E você nem precisaria ter me pedido".     

2 comentários:

  1. Ah!!! Acabou?!?! Não!!! Ah, não!!!
    Poxa...

    ResponderExcluir
  2. Fê, minha linda, tô fazendo outro. Diferente tema, novos personagens... Que bom que você existe e lê minhas doideiras!

    ResponderExcluir