18 de fevereiro de 2011

in(só)lito capítulo 2

"Confidência", Pierre-Auguste Renoir

O apartamento não era tão pequeno como pensara a princípio, afinal. Com a toalha enrolada à cintura e a pele arrepiada de frio, cruzou o corredor e, à esquerda, encontrou-a sentada a uma bancada de mármore na cozinha. Seus cotovelos estavam sobre a bancada e o rosto, apoiado sobre as mãos cruzadas.
"Tenho uma xícara de café aqui para você. Venha".
Sua voz era sonora, cristalina e divertida, quase zombeteira, embora ela mesma não sorrisse. Mas os olhos dela riam o tempo todo e ele ainda estava tonto demais para decidir se havia malícia ou cumplicidade nos olhos daquela moça. Sentou-se à sua frente, onde ela já havia disposto pratos, talheres, uma xícara e copos. Sentiu-se constrangido por estar usando nada além de uma toalha de banho na cozinha de uma desconhecida com quem havia tido a mais casual das noites, embora soubesse que, se fizesse menção de se levantar para trocar de roupa, ela de alguma forma o impediria. A maneira como o olhava certificava-o disso. À sua esquerda havia uma janela grande e a luz da manhã, agora mais forte, vazava por ali e caía em cheio sobre ela.
Foi só então que ele pôde notar nos olhos dela; à noite, estivera escuro demais, bêbado demais, apressado demais para ver qualquer coisa. Agora, à luz da manhã, olhando-o por sobre a xícara de café, ela o deixava reparar seus olhos rasgados, de cílios claros, de um matiz amarelado com rajados verdes. Havia sardas em seu nariz comprido, fino e reto mas que, naquele rosto, com aqueles olhos e aquela boca de lábios largos e escuros, não poderia ser mais adequado. À sobriedade matutina, ela era mais bela e ainda mais interessante.
"Você pode comer umas bolachas e uma fatia de bolo se quiser, Bruno. É por conta da casa". E então ela sorriu. Era um gracejo adorável, ele reconhecia, mas ficou paralisado à menção de seu nome e não conseguiu sorrir. Ela sabia como se chamava e ele não fazia a mais vaga idéia do nome daquela mulher. Em que momento da noite lhe teria dito seu nome...? Decidiu então que seria patético continuar comportando-se como um autômato; a moça já o havia socorrido até o banho e estava sendo gentil, até bem humorada. O mínimo que ele deveria fazer era agir de acordo. Lembrou-se das férias que passava no interior, na casa da avó materna, quando era ainda muito tímido e alvo das chacotas de primas mais velhas, que ralhavam de seus longos silêncios e de suas calças curtas. Serviu-se de um cream-cracker da vasilha de vidro sobre a bancada e ponderou que muito pouco havia mudado desde então.
"Sabe, Bruno, eu sei que se conselho fosse bom a gente não dava, vendia. Mas eu acho que você não deveria beber tanta vodka". O que ela dizia era, fatalmente, uma censura, embora o tom, diferentemente do de suas primas, não denotasse pilhéria alguma.
"Não costumo beber assim. Na verdade, nem freqüento esse tipo de danceteria".
"É mesmo, Bruno? E o que você costuma fazer quando não está com a sua família?"
Ele largou imediatamente a faca de manteiga que estivera usando, como se fosse um carvão em brasa. Trincou os dentes e encarou seus olhos. Não havia ironia, nem tampouco zombaria neles, apenas uma curiosidade transparente e crua. Aquela mulher era uma criatura muito estranha ao mundo dele, em que todos se envelopavam em finesse, happy hours, retórica ou álcool para disfarçar os reais objetivos.
"Eu não tenho família".
"Tem, sim, Bruno. Você me disse ontem à noite".
Não era tanto o fato de ela saber um "segredo" dele sem que ele mesmo o soubesse que o enfurecia, mas a repetição do seu nome, "Bruno", "Bruno", "Bruno", naquela voz mansa e neutra da moça.
"Você vai me desculpar, mas eu não sei, quer dizer, eu não lembro o seu nome".
Dessa vez ela riu alto. Pousou a xícara na bancada, jogou a cabeça para trás, soltou o coque e sua gargalhada ressoou por todos os cômodos do apartamento. Bruno a olhava como um colonizador contemplaria a ave mais exótica num Safári no século XVIII. Queria falar alguma coisa, qualquer coisa, mas não sabia o que dizer. Mais uma vez, sentiu-se como o moleque que ia passar férias com a avó em Adamantina.
"Você conta a sua vida inteira para mim, me deixa acordada até quase cinco da manhã, pede para que eu faça café bem forte para você no dia seguinte e não se lembra do meu nome?"
"Se isso serve de consolo para você, eu não sou do tipo mentiroso. Não costumo beber mesmo. E não freqüento danceterias. Tanto que não me lembro de nada do que disse para você. Eu sinto muito, moça, eu... Eu não sei o que disse mas... eu não tenho mais família."
Por um momento ela ficou muito séria e não tirou os olhos do rosto dele. Bruno tinha certeza de que ela estava ponderando se poderia confiar nele ou não. Era compreensível. Ela havia conhecido um homem numa casa noturna, passado a noite com outro e acordado com um terceiro completamente diferente. Baixou a cabeça e fitou a bolacha, que permanecia intocada no prato, à espera de que ela dissesse algo ou o pusesse para correr porta à fora.
"Você falou tanto da sua avó Lourdes, de suas primas, do seu pai, que foi para Santa Catarina quando você e seu irmão ainda eram muito pequenos... Falou que sua mãe morreu há dois anos e que você não teve forças para ir ao enterro... Disse que seu pai liga para você quase toda semana, mas que você nunca fala com ele. Falou que não agüenta mais seu trabalho, que você nunca quis mexer com informática, que seu sonho é estudar arquitetura porque você adora casas e tem muito talento para desenhar, mas que precisou trabalhar desde cedo, porque seu pai foi embora, sua mãe era muito doente e seu irmão, um descabeçado. Me contou que a única coisa que faz você acordar de manhã é café bem forte, sem açúcar, então me beijou aqui, bem na barriga, e me fez prometer que eu faria café para você de manhã. Também me disse que odeia suas roupas jogadas pela casa. Por isso deixei tudo dobrado na penteadeira. E aí, quando já estava quase caindo de sono, você me disse que sua mulher se separou de você há três anos, e que ela mora com a filha de vocês, que você vê a cada quinze dias. E meu nome é Márcia, Bruno".   

4 comentários:

  1. Que coisa! Eu vou ler de novo, mas nessa primeira leitura, o que me chamou a atenção foi como os personagens "caça" e "caçador" invertem de figura o tempo todo.
    Durante a leitura, fiquei cada vez mais curioso pra saber quem seria o caçador, mas o final (pra variar) surpreendentemente, não deixou indicativos de quem o seria.
    E quem o é na vida real, não é mesmo? Caça e caçador é uma coisa que agente "está", e não "é".

    E pra sacanear... música pop... da pior qualidade... que me faz rir muito: http://www.youtube.com/watch?v=qoVjd_D6bJ4 e ele diz que é caça e caçador.... aaaaaaa neeimm!!!

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  2. A idéia é exatamente essa, Matheus. De caça e caçador, e da mudança que é isso, o tempo todo, e tanto, que não se É nem um nem outro, apenas se ESTÁ, de fato.

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  3. Acho que chamar o Fábio de "pop" é uma grande sacanagem com muita gente, rs. E essa canção eu a cantava alegremente pelos ônibus de biririzonte, na infância. Sem passar o chapéu, claro! Apenas mentalmente. haha!

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  4. Gabriel, acredita que eu também cantava muuuuito mentalmente essa canção? Ri muito com esse comentário seu!

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