29 de março de 2011

obsolescer

"Sebastião Marat", por Vik Muniz

Não há prosa mais fácil, abnegada e revigorante do que o papo com um taxista. Fácil porque, no espaço confinado de um carro, é natural que um indivíduo puxe conversa com o outro; abnegada, pois é completamente desprovida de interesse retórico legítimo de ambas as partes; e revigorante porque, num trajeto delimitado entre dois pontos, você pode abordar praticamente qualquer assunto sem o peso da responsabilidade de um reencontro. A conversa de táxi é uma das poucas formas de colóquio que possui, obrigatoriamente, começo, meio e fim, sem pretensões filosóficas ou embates morais. Tudo começa com um aceno para o motorista. Os movimentos seguintes são automáticos: você entra no carro, diz "bom dia", "boa tarde" ou "boa noite" e informa o destino e a preferência da rota a seguir, hábito que, por sinal, é novidade na praça, garantem os motoristas no tom injuriado do padre que ouve sermão do fiel antes da missa.

O diálogo é conseqüência; normalmente o motorista começa a conversa. Em Belo Horizonte é comum quebrar o gelo, falando sobre o tempo, as nuvens que se acumulam sobre a Serra do Curral e como toda mineira dá, menos a loteria. No Rio de Janeiro fala-se de futebol, atos heróicos envolvendo o Choque de Ordem e a Parada Gay e como os flanelinhas infernizam a vida dos cidadãos motorizados. Em São Paulo até os taxistas fazem networking e, para variar, é sobre negócios e dinheiro que se dialoga. As outras capitais também têm taxistas e eles não perdem por esperar minha visita. Todo bom taxista tem sempre um caso para contar, uma piada de trinta segundos e um resumo explicativo da política local, além de ser um bom ouvinte, se o passageiro for um interlocutor participativo.

Claro que tudo isso é opinião minha. Deve haver muita gente que abomina trocar mais do que meia dúzia de palavras essenciais com um taxista. Eu, ao contrário, sou uma entusiasta do papo de táxi; com motoristas de praça já desabafei segredos que nem um analista seria capaz de ouvir e, deles, já ouvi histórias que valeriam uma antologia. Aliás, alguém já deve ter publicado algo parecido, provavelmente intitulado "Memórias de Adilson, o Rei da Barão de Mesquita", mas devo ter perdido a tarde de autógrafos na Travessa. Digressões e futuros-fracassos literários a parte, jogar conversa fiada fora com um taxista compensa os dez reais mínimos de uma corrida ligeira. Se você for do tipo ausente, fechado e monossilábico ou simplesmente não curtir trocar uma idéia de passageiro para motorista, vai pagar pela corrida com o sentimento cívico insuperável de serviço prestado com discrição e impessoalidade. Se for do tipo comunicativo e não fizer distinção de ouvinte, há de pagar a idêntica quantia e ter o mesmo sentimento urbanóide de serviço prestado, mas, no entremeio, vai se divertir.

Às vezes a prosa engrena de tal maneira que dá pena de chegar ao destino. Foi assim nesse sábado, entre a Gávea e o Leblon, doze reais e oitenta centavos - o chefe fez por doze - e um Santana 2000 com bancos de couro. Puxei o assunto; perguntei se procedia essa história de "fazer diferença" para o passageiro o fato de o taxista estar dirigindo um Santana. De acordo com a SMTR, Secretaria Municipal de Transportes da cidade do Rio de Janeiro, em publicação de janeiro desse ano, os três modelos mais utilizados pela categoria são o Meriva Joy, o Corsa Sedan e o Zafira, todos da Chevrolet.  Há dez anos, a mesma lista era encabeçada pelo Volkswagen Santana, seguido do Astra Sedan (Chevrolet) e do Palio Weekend (Fiat). Quando um modelo de carro "emplaca" como táxi, as revendedoras se preparam para uma queda natural nas vendas desse modelo como carro de passeio. É compreensível; se você vai investir num carro zero quilômetro que sai da concessionária com uma depreciação de mercado que pode chegar até 25% ao final do primeiro ano, é melhor que esse carro tenha um pouco da sua "personalidade" e não seja confundido com um táxi:


As fotos do blog "Bizarrices Automotivas", que você confere no site acima, são auto-explicativas com relação a isso.  O problema com o Santana é que, além de ter caído na antipatia do público como "táxi de rodoviária", agora se transformou numa espécie de "espanta-passageiro" para os taxistas que ainda não trocaram seus velhos sedans por carros mais atraentes, modernos, confortáveis e populares entre os clientes. Isso quem me contou foi o taxista da Gávea, credenciado há oito anos e dono de um Santana. O fenômeno aqui é de natureza sócio-cultural, e não financeira ou técnica. Para um taxista dono de um carro mecânica e visualmente conservado e com a manutenção em dia, dirigir um Santana ano 2000 e um Meriva Joy 2010 não faz diferença no retorno financeiro ao final do dia. O que afeta diretamente o lucro líquido de um taxista não é o modelo, nem o ano do carro que dirige, mas o número de corridas efetuadas menos os gastos com combustível, impostos, manutenção e a desvalorização do próprio carro no mercado.

Imagine que você tenha acabado de adquirir uma concessão da Prefeitura para atuar como taxista. Seu primeiro investimento de capital será no veículo, instrumento do seu trabalho. Se optar por comprar um carro zero, que tem o maior valor de depreciação de um bem no mercado, já sairá da concessionária com um prejuízo de até 20% no investimento inicial até o primeiro ano do carro, sem mencionar os gastos extras com seguro, impostos e regularização do automóvel. Por outro lado, se já tiver um carro regularizado ou resolver comprar um usado, que além de ser mais barato, tem valores de seguro e IPVA igualmente menores, seu investimento não sofrerá tanta desvalorização no mercado. Isso acontece porque a partir do quinto ano de uso do automóvel, a desvalorização sofre uma queda, a menos de 10% ao ano, cuja mola central é a alta demanda por veículos usados, graças aos preços mais acessíveis e à conseqüente valorização dos mesmos.

Agora imagine que você esteja na situação do taxista com quem conversei. Ele é dono de um Santana de ano 2000, em bom estado de conservação, regularizado e recém-vistoriado, exerce essa profissão há oito anos e, agora, vem perdendo passageiros porque, em suas palavras, "os clientes rejeitam Santana na praça". Ele admite que alguns colegas contribuem para a má fama do carro, circulando com o mínimo exigido pela SMTR em termos de documentação legal e pouca ou quase nenhuma manutenção mecânica. "Mas são poucos", afirma; carros nesse estado não passam pela vistoria anual do Detran e são rejeitados pelas Cooperativas e Associações. Molas saltando do estofamento, barulhos internos, ar condicionado funcionando mal - ou não funcionando de maneira alguma - escapamento estourado e bancos cedendo sob o peso dos passageiros são pré-requisitos para o chefe mudar de carro, qualquer que seja o carro, Santana ou não.

"Quando chove, passageiro não quer saber que carro você está dirigindo. Pode ser um Fusca ou uma Brasília caindo aos pedaços; debaixo d'água, qualquer carro tá valendo", contou-me o taxista dessa história. Ele foi obrigado a dispensar uma cliente de Ipanema semana passada. A mulher entrou e, ainda há quilômetros do destino, começou a fazer as seguintes perguntas retóricas: "Esse seu banco é meio baixo, não é?"; "Esse carro é ultrapassado, você não acha?"; "Bom mesmo é andar de Meriva". Meu amigo não pensou duas vezes; parou o Santana, pediu para a mulher descer, não cobrou a corrida e ainda se permitiu trocar alguns desaforos com a ex-passageira e recém-adquirida inimiga. Achei digno.

De acordo com o portal da Receita Federal na internet, "a depreciação de bens do ativo imobilizado corresponde à diminuição do valor dos elementos ali classificáveis, resultante do desgaste pelo uso, ação da natureza ou obsolescência normal". Define-se como obsoleto tudo que é ultrapassado, arcaico, antiquado e fora de moda. O Santana obsolesceu; ainda é um carro confiável, do tipo que, se bem cuidado, não deixa o motorista na mão. Foi tão popular há alguns anos que caiu no clichê e daí rolou ladeira abaixo no gosto e na simpatia do público. Ainda que, tecnicamente, possua uma baixa quota de depreciação no mercado, o carro virou um rótulo, uma metonímia: "santanão" é carro de taxista, de velho, de gente obsoleta como ele.

Meu pai começou a me ensinar a dirigir numa Caravan verde; eu tinha onze anos. Naquela época podia-se tudo, só não podia qualquer coisa. Um dia embaracei-me com as marchas, olhei para o câmbio e estourei um pneu no meio-fio. Então, passamos a praticar num Fusca, que era menor, mais fácil e mais barato. Aos 16 anos, ele me deixou dirigir seu Santana GLS champagne, em que ele e minha mãe sofreram um acidente que mudou o rumo de nossas vidas. Classificar os carros dessa forma também ficou obsoleto e GLS, hoje, aponta para a orientação sexual dos indivíduos. Depois deste, houve outros Santanas, de cores, anos e momentos de vida diferentes. Eu tive dois. O primeiro, azul, teve um fim trágico num outro acidente em que um amigo da família dirigia. O outro, verde, foi furtado três vezes; recuperei-o nas primeiras duas ocasiões. Na terceira, o ladrão levou a melhor. Depois disso, minha mãe ficou cheia de melindres com o carro e disse que ele era "amaldiçoado" na família. Sua superstição não impediu que meu pai comprasse outro Santana, em 2000; não vende nem troca por carro algum e não dá a mínima se há modelos mais modernos e arrojados. Porque meu pai, como o carro e a época em que se podia tudo, também é obsoleto. E é bom que o seja porque, dessa forma, ecoa lembranças de um tempo que ficou nas brumas, preenchendo espaços vazios do presente.

A palavra "obsoleto" casa com a palavra "nostalgia". É nostálgico quem sente saudades de algo relacionado ao passado, ou seja, do obsoleto. Mas o passado, por definição e lógica, não existe. O que subsiste são os laços tênues em que nos agarramos para não dar um adeus final ao tempo que amamos e que, subjetivamente, ainda vive na memória. Esta é a metafísica da obsolescência. Tudo que existe há de cair em desuso e, posteriormente, no esquecimento: carros, computadores, fotografias, cartas manuscritas, livros, roupas, maneirismos, canções, profissões, pessoas, conceitos. Temos plena consciência da fugacidade do tempo e da inexorável superação de um elemento sobre outro, mas não podemos evitar o olhar melancólico para trás. Memória e nostalgia andam de mãos dadas, com a sombra da obsolescência a lhes obscurecer o caminho. Frágeis são os laços do passado, mas eles existem e são perpetuados por escolhas que tomamos, palavras que dizemos, músicas que ouvimos, roupas que vestimos, ideais que defendemos, carros que dirigimos.

Tem gente que nasce obsoleto e vive com uma comichão incômoda de não pertencer, não progredir, não se adequar. Meu amigo taxista comprou um Meriva. O carro novo chega em duas semanas. Ele se cansou de perder clientes que torcem o nariz para o seu Santana amarelo e antiquado, principalmente a galera mais jovem, exigente e moderna. Disse para ele que eu vou na contramão desses: quando preciso tomar um táxi, procuro um Santana. O taxista não verteu lágrimas quando ouviu a minha declaração porque, afinal, é um taxista carioca, "mermão", tá pensando o que? Quando a corrida acabou, ele olhou pelo retrovisor, encontrou os meus olhos e segredou: "tô vendendo meu Santana com o coração partido". Para negar a obsolescência das coisas, das pessoas e da vida, prefiro o "santanão" metonímico que, diferentemente de qualquer outro carro, vem com lembranças intransferíveis de fábrica.

27 de março de 2011

[...entre...]


entre viver no ato e espreitar pela janela
seguir de fato e empacar na contramão
tingir a paisagem e acinzentar os olhos
avançar no ataque e recuar ao solo

[...]

entre a brancura da luz e o véu do breu
a gargalhada compulsória e a lágrima imputada
a avidez dos abraços e a compostura dos olhos
a certeza do senso e a embriaguez dos sentidos

[...]

entre a proa dos mares e o ecoar das estradas
a rebeldia insana e a concessão descabida
o vislumbre entre as cortinas e as portas cerradas

[...]

entre o desejar liberto e o dever omisso
o despedaçar evidente e o soerguer ressentido
fico nos entremeios dos parênteses cavos

24 de março de 2011

do preconceito


Essa canção é antiga, de composição de Billy Brandão e Paulinho Moska. Fez sucesso na abertura de uma novela das oito da Rede Globo, "A Próxima Vítima", de 1995. A melhor e a pior coisa que podem acontecer a um cantor e compositor dito "fora do circuito" da música de alta rotatividade - ou seja, o tipo underground, desconhecido e destituído do poder do "jabaculê" das rádios - é ter a sua música como tema de abertura de uma telenovela da Globo. Também funciona se a canção for tema de um dos personagens principais da trama; foi assim com Oswaldo Montenegro e a sua "Lua e Flor", música de letra e melodia inspiradas pelo barroco mineiro, na época em que o compositor morava na pequena, interiorana e barroca São João Del Rey. A letra é uma poesia de um lirismo simples e belo, que retrata o amor em sua mais romântica e platônica forma: o amante ama mais ao próprio sentimento do que ao objeto de seu desejo. Ocorre que "Lua e Flor" embalou o romance igualmente platônico de Sassá Mutema, um bóia-fria simplório, interpretado por Lima Duarte, e a professora Clotilde, vivida pela musa Maitê Proença, na novela "O Salvador da Pátria", de 1989. Eu havia dito que emplacar uma canção numa novela da Globo é a melhor e a pior coisa para um artista fora do "circuito cultural". Explico-me: no caso de Montenegro, a flauta doce predominante em "Lua e Flor" e o tempo melódico acabaram caindo no desgosto do público e no sarcasmo cáustico da crítica que, até hoje, 22 anos depois de o Sassá Mutema ter amargado um pé-na-bunda da "professorinha", ainda atrela a obra do compositor àquela música específica. Por outro lado, não vejo como Montenegro teria sido conhecido pelo público - ainda que amaldiçoado por ele - a não ser pelo escopo estrondoso que uma novela atinge.

O caso do Paulinho foi menos trágico. Em 1995, quando a sua "O Último Dia" alçou-o a quinze segundos de fama, ele ainda era conhecido pelos fãs cativos como "Paulinho". Hoje, 16 anos depois do final da novela, ele é simplesmente o Moska. Alguns compositores, ainda que underground, detém versatilidade e conseguem escapar das garras e da sombra da novela das oito. Moska mudou seu estilo - na época minimalista, com um violão e um violoncelo apenas - a cada novo álbum lançado e, hoje, é reconhecido praticamente como um "artista completo", definição etérea demais para mim, mas que abrange algo como a união do pop com o eletrônico, lounge, indie e não sei mais o que exatamente. O Montenegro, que de versátil não tem nada e nem sabe usar um computador, não varia seu estilo e, por isso, manteve o mesmo nome, desde que a sua "Bandolins" venceu o Festival da TV Tupi em 1979 e, em 1980, "Agonia" ganhou o primeiro prêmio no Festival da Música Popular. Hoje, ele é conhecido pelo "grande público" - a malta em frenesi, como gosto de chamá-lo carinhosamente - como o hippie velho, sujo e chato de "Lua e Flor". Essa ignorância e o preconceito aviltante da massa devem-se a um indivíduo que atendia pela alcunha de "Bussunda" e participava de um programa igualmente aviltante, de nome "Casseta e Planeta". A um "artista" - que por sinal jaz nas profundezas sulfúricas de Hades nesse minuto - que se autodenomina "Bussunda", não hei de me dignar a traçar nem mais uma linha.


O preconceito cultural, social, ideológico, racial, de gênero e estético não são apenas aviltantes e torpes; são a prova cabal da ignorância, da mente obtusa e da capacidade idiotizante que o animal urbano, vulgo cosmopolita e/ou cidadão do mundo tem de repetir conceitos pré-estabelecidos, tal qual seus companheiros psitaciformes, que emitem "louro, curupaco, louro, dá o pé" como se estivessem decretando a independência de uma pequena Ilha na Polinésia, pobres aves. Entretanto, este é o papel do papagaio e, por atender a seu propósito, ele merece os louros - trocadilhos à parte - da vitória. Por outro lado, o papel de um indivíduo pensante não é repetir idéias, arremedar hábitos sócio-culturais encruados e muito menos formar sua opinião a partir da opinião de um outro alguém, já formada a priori. Para que pensemos, é preciso, antes de qualquer coisa, que estejamos de olhos abertos, para que as múltiplas realidades do mundo que nos circunscreve entrem-nos pelos olhos e atinjam-nos a consciência. Ora, olhar, ver e enxergar são coisas completamente distintas. Quem olha a sua volta, mas não vê, nem jamais enxerga, é incapaz de pensar por si mesmo. Ocorre que "ver" e "enxergar" a realidade representam, em última análise, experimentar, ouvir, provar, lamber, comer e deglutir essa realidade. E, venhamos e convenhamos, é muito mais conveniente e cômodo andar pelo mundo com os olhos vendados, regurgitar as próprias e já familiares experiências e, assim, não enxergar coisa alguma além da ponta do nariz e, por conseqüência, reproduzir conceitos pscitaciformemente.

Sim, pois quando enxergamos, tocamos e lambemos o mundo, nossos conceitos, pré-estabelecidos ou recém-adquiridos, nossos valores e crenças e todo o paradigma que nos sustenta, estátuas de ouro com pragmáticos pés de barro, são chacoalhados e postos à prova. O barulho do novo e do diferente incomoda, ensurdece, irrita e enerva. É melhor e mais prudente, confortável até, silenciá-lo. Assim, repetimos as palavras do "Bussunda"; ecoamos ideais já mortos; mimetizamos hábitos paternos; evitamos os "pretos" porque nossos bisavós o faziam; xingamos as "bichas" porque nossos colegas de trabalho esperam que o façamos; taxamos as "solteironas" de 40 anos - que usam roupas de "gatinhas" de 20 - como "putas" e "mal-amadas", porque o nosso tio Jorge, muito admirado por seus êxitos na Bolsa de Valores, pensa assim; rebaixamos os "crentes" ao nível dos leprosos, "aidéticos" e semi-analfabetos porque, afinal, "crentes" não passam de ex-viciados, fracos e acéfalos; evitamos comida caseira, tipo arroz, feijão, ovo, couve e angu, porque o sócio majoritário do escritório disse que isso é coisa de "caipira", "paraíba" ou "bóia-fria"; ouvimos rock porque é bacana e vamos arranjar encontros; achamos que as praias não devem ser freqüentadas por moradores da "Baixada" porque a Linha Amarela foi um erro político abissal; cuspimos na música sertaneja - de ontem, de hoje, não importa, já que não a conhecemos - porque alguém muito famoso cuspiu também, em entrevista ao Jô; não assistimos a filmes nacionais porque alguém disse, num almoço de natal, que eles são péssimos desde Mazzaropi, só têm nudez gratuita e tiram dinheiro dos cofres públicos; adotamos o Flamengo como o "time do coração" porque é a maior torcida organizada do país; torcemos o nariz para os pais que pagam uma viagem à Disney para os filhos adolescentes porque isso virou cafonice de novo-rico, e o supra-suma da beleza, da civilidade e da organização urbana é a Europa;  queimamos a bandeira norte-americana porque é esperado que sejamos anti-yankees, anti-Bush, anti-Obama, anti-Chevrolet, anti-Hollywood, anti-McDonald's, anti-Coca-Cola, antibióticos, anti-inflamatórios, antifúngicos, blá, blá, blá.

Não defendo o relativismo cultural dos sociólogos. Muita coisa é relativa, sim, e é bom que o seja, mas nem tudo. Qualquer expressão cultural, em qualquer parte do mundo civilizado que envolver barbárie e opressão, NÃO deve ser relativizada. O objetivo máximo do homem é evoluir culturalmente, socialmente, economicamente, pessoalmente. Subir escadas é basicamente o que fazemos diariamente, desde que adentramos o mundo. Por isso o preconceito e a reprodução cega e surda de valores pré-estabelecidos são, a posteriori, uma demonstração simiesca da barbárie e da involução humanas. Em outras palavras, não enxergar o mundo, não pensar por si próprio e bancar o papagaio do vizinho têm o mesmo valor de andar para trás, enfiar a cabeça num buraco de avestruz e assumir-se um boçal, a despeito do alto valor obtido no último teste de coeficiente intelectual.

Ter idéias próprias é perigoso. Há bem pouco tempo ainda se torturava, queimava, enforcava e decapitava um bom número de "recalcitrantes" por isso. Eram o preconceito e o poder de mãos dadas, uma dupla infalível para a degradação humana. Mas a evolução é contínua e inexorável, ainda que lenta e não facilmente perceptível aos olhos - especialmente se estes estiverem fechados ou voltados para o umbigo do ser. Pensar por si próprio, hoje, não leva ninguém ao cadafalso, aos "porões da ditadura", nem a uma cruz incandescente de labaredas mortais. A liberdade de pensamento, mais do que a liberdade de expressão, é a garantia da unicidade e da evolução do homem, não enquanto espécie, mas como indivíduo e cidadão. Pensar sozinho dói? Às vezes. E formar uma opinião legítima? Sempre. Mas é libertador. Pois não há grilhões mais resistentes do que os do preconceito e da repetição. Uma vez livres deles, abrem-se os olhos, enxerga-se o mundo, experimenta-se a vida, tomam-se decisões e, finalmente, torna-se gente.   

do desencontro

Eu, mar, que espera o desaguar tempestuoso dos rios, 
que farão minhas águas mais caudalosas
e enfeitarão as marés com torvelinhos e correntes salobras,
lambuzando-me o azul com uma língua de marrom barrento no estuário.

Tu, riacho, um regaro de águas doces e glaciais,
que correm mansas sobre perenes seixos polidos
curso d'água menos ávido que um ribeirão, sem pretensões mesmas
de seguir intrépido para desembocar em meu enlace oceânico.

Eu, balbúrdia de burgos, risadas retumbantes a ecoar por corredores
e fazer-lhes despencar azulejos, rebentar tramelas e invadir portões
um tropel de alazões fugidios no verão, desatinados em busca de seu senhor.

Tu, silêncio de bibliotecas, refinamento contrito que congela a aragem
e sufoca os movimentos, estalagmites de censura a acutilar, tolher e ressequir
uma gralha azul-inverno a ganir solitária na abóboda anil de um firmamento sem dono.

23 de março de 2011

não-sujeito [proseando com "Sujeito Simples, Composto", de Ivy]

Tenho uma bola de cristal maciço, pequena, que vive pendurada por um fio de nylon à janela do meu quarto. Não é uma Swarovski, como eu caprichosa e pretensiosamente desejaria, mas é cristal de verdade; nada daquele vidro colorido, meio opaco e misturado à resina, que nas feiras de praia e nos camelôs vendem-se aos milhares. Esse cristal não possui função meramente decorativa, até porque, esteticamente, nenhum penduricalho me agrada, mesmo que seja um penduricalho Swarovski. Meu cristal serve para dizer que o verão está acabando e o outono bate às portas tupiniquins. No verão, o sol mora alto no horizonte e não entra pela janela do meu quarto, ou seja, nenhum raio é refratado pelo cristal. À medida que o frio vem chegando, o sol fica cada vez mais indolente e, mandrião que só ele, vai-se deitando no firmamento. Então, seus raios compridos e tépidos vazam janela adentro e tocam o meu cristal; arco-íris se formam nas paredes do quarto e no piso do corredor. Se estiver ventando, o cristal gira com o fio de nylon e as cores dançam pela casa. Hoje vi o primeiro arco-íris que o meu cristal projetou; uma fatia de ondas de luz vermelho-cereja, clareando para laranja-bahia, amarelo-ouro, lápis-lazúli, rosa-chá e verde-rã, até sumir no branco. Se o meu cristal não estivesse ali para decompor a luz do sol e refratá-la em freqüências perceptíveis pelo olho humano, só haveria uma poça de branco no chão do corredor e as cores não bailariam pelas paredes.

   
Mas o meu cristal, como todo o resto da humanidade em conjunto e individualmente, tem uma história. Há três anos, enquanto limpava os vidros da janela, a faxineira atrapalhou-se com o fio de nylon e deixou a bola despencar do segundo andar. O cristal bateu na quina do meio-fio da rua, lascou-se numa das facetas, mas não morreu. A faxineira, sim, quase enfartou; não tanto por ter deixado o meu cristal cair. Afinal, acidentes domésticos são esperados na relação de contrato trabalhista com faxineiras; ela se assustou de verdade quando viu que a bola não havia se despedaçado por completo, caindo de uma altura de doze metros. Depois de se elevar ao status de sobrevivente, meu cristal tornou-se ainda mais importante, belo e único. 

Poetas e escritores vivem de metáforas. Acredito que o desejo de fazer malabarismo com as palavras venha dessa mania nossa de ver poesia, lirismo e metáforas em todo lugar. Para mim, toda a gente é como um cristal verdadeiro, Swarovski ou não, por quem a luz branca refrata e, só por isso, derrama-se em cor. Dizem que um cristal quebrado não cola jamais, nem produz o mesmo som. Mas acho que esse ditado se refere àquelas taças finíssimas que se caírem ou se tocarem com um pouco mais de força num brinde de ano-novo, vão invariavelmente se espatifar em mil pedaços. Quando penso em pessoas e cristais, não os associo tanto a taças, meros receptáculos de champagne, vinho e água, mas às bolas maciças, como a que habita a minha janela. Se colam depois de quebradas, não sei; a faxineira falhou em encontrar o pedaço lascado na rua do meu prédio. Entretanto, refratam a luz da mesma maneira. Aliás, quanto mais facetado um cristal, mais caro ele é e, conseqüentemente, maior é o seu poder refratário.

Roland Barthes, sociólogo e filósofo francês, dizia que um "escritor não tem passado, pois nasce com o texto". Para ele, o autor-sujeito e o escritor-indivíduo morrem para dar luz ao leitor, objetivo final e único do texto. Sobre escritores onfalópsicos, que regurgitam seus temas, circunscrevendo-os aos próprios umbigos e repensando identidades, Barthes afirma que não é a pergunta trágica do louco - "quem sou eu?" - que orienta a obra, mas a pergunta cômica do desnorteado - "sou?". Ultimamente tenho sentido uma espécie de angústia, uma experiência metafísica que é a consciência de mim mesma; Sartre chamava esse sentimento de angoisse, que existencialistas como eu têm, por exemplo, quando se perguntam se o que escrevem é um auto-retrato disfarçado de crônica ou uma tentativa de descoberta de identidade que leva o poeta, impulsivamente, a fazer poesia. Minha mãe diz que eu penso muito em "quem sou", o que, segundo Barthes, aloca-me no rol dos malucos trágicos. Ocorre que minha angoisse tomou-me tão completamente que me vejo melhor posicionada junto aos risíveis desnorteados; fartei-me de querer saber quem sou. Já nem sei mais se sou. No processo, escrevo. E, perdida, tento me encontrar nas entrelinhas, nos códigos cifrados e nas rimas.

Ivy Gobeti, que escreve nesse blog e é tão ou mais tresloucada do que eu, tem uma forma simples, sucinta e genial de definir essa questão de ser: somos sujeitos simples, e/mas compostos.


Este sempre foi um dilema primal na minha vida de crises existenciais. Sou um sujeito simples, na acepção pura da palavra: evidente, humilde, crédulo, rudimentar, espontâneo, natural. O problema, para variar, é a contradição, essa maldita dicotomia que impede o maniqueísmo conveniente, fácil e confortável do mundo. Por isso a definição de Ivy é tão completa: sujeito simples, composto de ambigüidades e incompleto. O poeta  maldito e beberrão, Charles Bukowski - que deveria ter sido enterrado num caixão de cristal Swarowski - dizia que não é morrer que é ruim; porcaria mesmo é estar perdido. Porcaria ainda maior é estar perdido entre a simplicidade do sujeito e o risco de se tornar sujeito simplório ou sujeito oco, tudo isso sem perder a complexidade, mas não se transformar em sujeito pedante ou sujeito facetado.

"Mulher Chorando", Pablo Picasso

Se eu fosse mais esperta e seguisse os conselhos da minha mãe, iria me afogar num trabalho prático, hiper, super bem remunerado, fazer um pé de meia fantástico, comprar roupas elegantes, viajar para a Europa e aplicar botox três vezes por ano. Agora, se eu tivesse poderes mediúnicos ou realmente acreditasse nisso, além de seguir os conselhos da minha mãe, eu juntaria uma turma de peso em matéria de elucubração e crise existencial. Na minha conferência do além-túmulo, estariam presentes Sartre, Barthes, Bukowski, Freud, Goethe, Schopenhauer, Cervantes, Dostoievski e mais um bando de barbudos malucos. Claro que eu pediria educadamente ao Nietzsche para comandar o debate. E, através da minha pretensa mediunidade avançada, filmaria essa turma de fantasmas pensantes quebrando o pau ou, na pior das hipóteses, chutando o pau da barraca por não chegar a um denominador comum. Obviamente que a conferência seria, num momento posterior, divulgada. E mais óbvio ainda seria o retorno financeiro dessa empreitada. Ninguém perguntou, aliás nem sei se isso viria muito ao caso, mas o cenário do debate seria o meu quarto. E no inverno, para as almas penadas ficarem alucinadas com os arco-íris do meu cristal rodopiando nas paredes.     

22 de março de 2011

dos remendos [eu a partir das roupas]


E seu amor por si era em roupas coloridas, era em trajes que ultrajassem, e suas estampas sem padrão. Desenhou-se a partir de modelos, na verdade, então criou marca que não sabia se original. Reconhecia-se apenas em contrário de outrem, virava-os aos avessos, descaracterizava-lhes os tecidos finos a grossos modos de flores selvagens e cores de fogo. Um remendo grande, fio a fio ela desfiava as saias retas pra que rodassem, ainda que de panos pesados e demasiado consistentes, queria tecer-se de movimentos leves, ou criá-los da separação de camadas por demais consistentes. Cabia-se em tamanhos que não lhe eram de pertencer, e ainda comum era que rasgasse as golas, costuras, botões que a apertassem e encobrissem, aqueles todos que prendessem o de fora sobre seu corpo. Apreciava-se em cortes simples, caimentos clássicos com toques de renovação, o caimento fazia-se sempre então em observável contradição, sobreposição de cores e padrões, quando do uso de linhas se fazia jamais era reto sem que se cruzassem, jamais se cruzavam sem partir dos pontos, os opostos. Não raro era, embora, que se quisesse findar em cinzas e negros tons de não reconhecer-se, de camuflar-se dentre prédios e carros e fumaças, ainda não raro era que saudosa ficasse prontamente dos motivos tropicais e de fazenda. Seus botões não tinham casa já que nada nela encontrava por onde trespassar, muitos dos zíperes eram de funcionar por 3 vezes ou menos, no que seu movimento de abrir-se e fechar-se por vezes diversas empacava em suas células, cerdas, pequenos precipícios. Teve também modelos rejeitados pela técnica e pecava com assiduidade na conformação de tempo e estética, forma interna e aparência de superfície, vezes muitas fora tida como de estilo incompreendido, despretensioso, incomunicável, tantas outras ainda como de conceitos e malhas e camadas por demasiado misturadas e ininteligíveis aos olhos de especialistas ou imperceptíveis pelo senso comum. Sentiu-se proposta, impelida, atirada a abandonar as roupas e desnudar-se de si quando passou a não mais caber em qual fosse, e nem ferro as deixavam retas, e nem água as limpavam mais também, mas tinha uma necessidade de vestir-se ainda, havia o frio e o sol e todas as coisas que a machucavam e queimavam, e os perigos das coisas todas que a tocavam na maior de suas vulnerabilidades. Descamava-se. Sabe-se dela hoje a remendar o que do chão se fez em resgate, e a fazer-se em combinações inusitadas, algumas eram antigas as que desenhou por cima, outras foram por completo recortadas de seus todos e reinseridas. Sabe-se dela hoje por tender à desconstrução e reconstrução constante de seus tecidos.

es ti lha ço


Can
   sa
da
   De
Ex
   por
Tu
   do
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   pe
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veemência

Há algum tempo, um amigo querido, que me conhece desde que éramos pouca coisa além de estudantes pretensiosos de 18 anos, escreveu-me uma poesia linda, que dizia assim:

"Palimpsesto. É isso que essa menina é. Por duas razões: palimpsesto não é uma palavra fácil, que se vê na boca de qualquer pessoa. É palavra rara. Assim como a Roberta. E como um palimpsesto, na vida e na memória das pessoas que convivem (e conviveram) com ela, mesmo com as camadas e camadas de tinta de tempo e de experiências, as cores da Roberta não se apagam e sempre reaparecem no primeiro plano da nossa vida novamente, somando seus traços inesquecíveis com nossos próprios desenhos. Mulher rara, intensa e inesquecível. Como a própria palavra."

Já escrevi muita coisa para muita gente. É compreensível; escrever é, e sempre foi, a paixão da minha vida. Nada mais natural para mim do que grafar sentimentos e impressões minhas para amigos, familiares, amantes, inimigos e até desconhecidos. Sim, pois já escrevi cartas de amor para namorados que não eram os meus, mas de garotas com quem morei numa república, nos tempos de Faculdade. Puxa, eu adorava aquilo; as moças me contavam suas histórias em ricos detalhes, eu passava horas ouvindo-as e, então, escrevia por elas; tive meus quinze minutos de Cyrano de Bergerac. Algumas cartas obtiveram êxito memorável; uma dessas garotas até se casou com o namorado e, ao que me consta, vivem felizes até hoje. Outras já não deram tão certo; acredito que os namorados desconfiavam que as cartas não poderiam ser de autoria das suas musas. Então, o que era para ser uma reconciliação ou uma noite de amor à la clair de lune acabava em pizza de massa mal assada e insossa. Vá lá; nem todo namorado é cem por cento otário e, confesso, nem sempre uma carta é a solução para um relacionamento à beira do precipício, ainda que o abismo e tudo mais pareça exacerbadamente maior aos 18 anos.

Escrevi muito para muita gente, mas poucos escreveram para mim. E entre esses, a poesia do palimpsesto, que transcrevi acima, é a que mais amo. Mas não é sobre palavras escritas, cartas e poesias que quero falar agora. Preciso mesmo é desabafar. Cyrano de Bergerac hoje quer assoar o seu nariz bulboso e dele expelir um bocado de coriza e pus em forma de mágoa. Resumo da missa: acusaram-me de "veemente". Não; "acusar" é uma palavra veemente demais. Deixe-me refrasear: alguém me disse, muito polidamente, que sou veemente demais. Ouvi, contestei um pouco e calei-me. Engolir sapos faz parte da minha natureza. Os batráquios invadem-me estômago e alma adentro, fico feito uma jibóia a digeri-los por um tempo e... voílá! Vomito uma crônica temperada de reminiscências e elucubrações encruadas.

Tenho um relacionamento sério, sólido e duradouro com o vernáculo. Está aí o sujeito que nunca te abandona, não mija fora do pinico, nem fala o que acha que pode ou o que deve: o dicionário. Claro que lhe contei o ocorrido assim que ficamos a sós, ele e eu; afinal de contas, para quem mais eu poderia delatar minhas derrotas? Então, o vernáculo respondeu-me assim:

veemente
adj.
1. Impetuoso; violento.
2. Forte; enérgico.
3. Intenso, grande.
4. Caloroso, entusiástico.
5. Encarecido; instante; fervoroso.


"Violento" e "encarecido", pensei. Não, não eram esses os vocábulos que casavam com a veemência em questão. Artes marciais, tapas na cara, cusparadas, celeuma, berraria e Tiffany & Co. não fazem parte do meu repertório, de modo que descartei "violento" e "encarecido" da resenha. Quanto às outras definições, bem, estas sim; cada uma delas reflete uma faceta do prisma fragmentado que sou. Então lembrei-me de meu amigo e da poesia que escreveu para mim, há tantos anos. Ele me chamava de "mulher intensa", mas não associava a tal intensidade a qualquer valor pejorativo. Eu também não. Tentei enxergar a mim através dos olhos da pessoa que, consternada, pedia-me para ser menos veemente, ou não tão veemente, não me recordo suas palavras exatas. Aquilo de me "xingar" de veemente foi como puxar meu tapete e me deixar caída com os fundilhos à mostra. Mais: foi educada, paulatina e despudoradamente pedir para mim que eu fosse menos eu, ou que fosse um outro alguém, abduzido pelo conteúdo perfeito e conveniente de um indivíduo ideal na casca da βετα que reconheço quando miro meu rosto no espelho.

Resultado: minha empática tentativa de enxergar a mim através dos olhos dessa pessoa foi de um fracasso veemente. Explico-me. Uma palavra é sempre um signo, dotado de significante (forma) e significado (conteúdo). Quem curte essas idéias é a turma da semiótica, gente como Peirce, Barthes e Umberto Eco, por exemplo. Eu curto semiótica, mas não entendo tanto quanto esse pessoal. Noves fora, para mim a palavra é tudo, dita ou escrita. De uma palavra nasce a metáfora do amor, como pombos pousados no ombro, dizia o Kundera; são as palavras que excitam os sentidos dos amantes e tornam erógenos os seus ouvidos - quando ditas - e os seus olhos - quando escritas Quando ouvidos e olhos são penetrados por palavras, a alma enamora-se e fica grávida de lirismo; são palavras que nos acalentam e adormecem quando ouvimos contos de fada e histórias de ninar; palavras moldam e movem mentes, gerações, universos. E, acima de tudo, palavras são pétalas de uma rosa de veludo mas, também e principalmente, um punhal mordaz, que lhe rouba a vitalidade sorrateiramente, sem que ao menos se dê conta disso. 

É na hora das pétalas e do punhal que entra a semiótica. Quando ouço ou leio o signo "veemente", é à assertividade que o associo; ao poder de decisão, às cores fortes dos quadros de Bartolomé Esteban Murillo, que amo, à parcialidade, para mim fundamental para qualquer um que esteja em luta com a vida e deseje vencer num jogo limpo, sem a dualidade etérea da diplomacia. Por falar em dualidade, vejamos o que o meu amante vernáculo diz a respeito do antônimo de veemente:

veemente
ant.
1. afervoroso.
2. calmo.
3. paciente.
4. tranqüilo.

Agora, sim. Meu velho companheiro dicionário lembrou-me que às vezes se define as palavras - e por conseguinte o conteúdo delas - pela não-definição, pelo oposto. Se palavras são definidas assim, a própria identidade também o é. Explico-me. Quando somos jovens, pré-pubescentes inundados de espinhas na cara e dúvidas na alma, é comum que adultos centrados e com a vida pronta nos perguntem o que vamos fazer de nossas vidas, profissionalmente. Atire a primeira pedra quem nunca respondeu - ou ao menos pensou - da seguinte maneira: "Bem, ainda não decidi o que quero fazer da minha vida, mas tenho certeza do que NÃO quero". A definição pela não-definição acontece o tempo todo; parece fazer parte da maneira como delimitamos nossos contornos e afirmamos quem somos, principalmente quando a dúvida, as indecisões e a dicotomia imperam: que cor vai usar hoje? Tudo, menos vermelho; para aonde gostaria de viajar nessas férias? Praia ou montanha, menos ficar na cidade; já escolheu a entrada? Estou em dúvida, mas definitivamente não tolero quibe frito.

Então, pela não-definição de veemente, ou melhor, pelo conteúdo oposto que ela representa, consegui entender os significados aos quais a pessoa que não gosta da minha veemência associa a mesma. Se sou veemente, não posso ser calma, paciente, afervorosa (fervorosas são as beatas e carpideiras) e muito menos tranqüila. Entendi a semântica - relativa ao conteúdo, ao significado - da palavra, consegui formar um laço de empatia com a pessoa, mas, nesse processo, percebi que o conteúdo que recheia minha forma não é o conteúdo que a pessoa em questão deseja ver, exalar, experimentar, vivenciar e adotar para si. É a velha história de Eco e Narciso. Puxa, como esse mito é primal... Digressões muitas sobre o mesmo aqui, nesse blog: http://escaloalfabeticas.blogspot.com/2011/03/eco-e-narciso-da-obsessao.html

Ninguém muda ninguém, a não ser que deseje se modificar por si mesmo, e não pelo ou para o outro. E mudança imputada corresponde à identidade amputada. Isso me faz lembrar de uma frase que uma outra amiga gosta de dizer, para falar de si mesma: atraímos os nossos iguais. Não poderia concordar mais com ela; essa lenga-lenga de "os opostos de atraem" só funciona em eletromagnetismo. Pode-se até modificar a forma de alguém por um tempo, para agradar ao outro, para parecer menos "oposto", mas, invariavelmente, o conteúdo vem à tona. Ocorre que depois de suprimido o conteúdo e soterrada a essência de um indivíduo, o resultado é o mesmo do efeito rebote com medicamentos: os "sintomas" tratados no início reaparecem com maior intensidade e predominância. São os tentáculos que você tentara cortar em vão, envolvendo o ser por inteiro, como a lava incandescente e inesperada de um vulcão que se pensava inativo.

Li e reli a poesia antiga de meu amigo, em que ele me compara a um palimpsesto. Palavras do vernáculo:

palimpsesto
s.m. Manuscrito em pergaminho que, após ser raspado e polido, é novamente aproveitado para a escrita de outros textos. Prática usual na Idade Média. Modernamente, a técnica tem permitido restaurar caracteres primitivos.

Amei a poesia de meu amigo por muitas razões. Na época em que me escreveu, eu vivia derrotas subseqüentes e já nem me lembrava mais de quem era; tristeza, decepção e solidão têm o poder de não apenas fazer-nos esquecer quem somos, mas nos transformar em sombras incognoscíveis aos outros e a nós mesmos. As palavras do meu amigo me lembraram de quem eu já havia sido, de quem eu poderia voltar a ser. Além do mais, em poucas linhas, ele resumiu exatamente quem sou: um manuscrito que é raspado, polido e reutilizado à exaustão, mas que, ainda assim, mostra suas cores primárias, seus traços essenciais. Mais do que isso, um manuscrito que se soma ao do outro e não se sobressai, nem se apaga. Para esse amigo, minhas cores fortes, a intensidade do meu eu e meus traços sublinhados são o que há de melhor em mim. Ele jamais teve a menor intenção de me mudar, nem eu a ele. E olhe que somos opostos em tudo: nos gostos, nas manias, na forma de viver. Sou veemente, sim. Um bicho manso, meio desgarrado do bando, dócil, mas um pouco arisco. Raro e inesquecível, Hudson? Lisonja sua, meu amigo. Mas veementemente intensa, sem dúvida.

sujeito simples, composto



Um sujeito simples, composto de muitas tantas vozes, verbos ocultos, desejos intransitivos, objetos diretos de figuras com linguagens desclassificadas, descategorizadas, figurativas de sentido, substantivos concretos de sua imaginação.
Sujeito simples, composto ainda de determinado e indeterminado, mesmo que por vezes elíptico, é constante que se verifique seu núcleo, embora de muitos tantos elementos, sempre singular.
Sujeito simples, composto de nome próprio, maiúsculo e de reticências, não pontua sem inventar, complemento que dá nome aos verbos, nunca só adjunto, mas ativo de voz.
Sujeito simples, composto de muitos tantos predicados, por vezes de núcleo descritivo, vezes outras de ação. Sujeito não à técnica ou ao formalismo, conhece mais variações de pretérito, ainda que honre sua conjugação do presente, está sempre com as terminações no futuro.

Apelo [Conversando com "Morte", de Beta]


Ela desliza em seu jardim, 
O cemitério,
Da terra um dia ela fez
Nascer flor, mas terra ela socou
Por cima, e então mais terra
Ela fez a cobrir.

Ela desanda em seu jardim,
O cemitério,
No que antes em camadas sorria,
De camadas era feito,
No que vida jazia,
Agora jazigos imutáveis,
Ela confronta sem diamantes ou minerais.
Não, não morra em vida,
Não converta em pó o rosto,

Não aceite o pálido sobre a cabeça.
É um apelo de vida essa morte,
É a vida que se vai dos corpos
Que não mais a comportam,
Aos que ainda caminham em passos
Concretos e pulsantes
Clamando ser inserida, reinserida.
Ela anda por seu jardim,
De flores esvanecidas,
Vidas tantas desconfiguradas,
Vida resetada, vida em marco zero.
Não morra em vida,
Não permaneça pálida,
Em suspiros últimos vidas inteiras

Sopraram em suas veias,
Na esperança de que se fizesse
Sol, fizesse sangue, fizesse roda.
Odeie as caixas de madeira, imensas,
Quebre as lascas, uma por uma,
Destrua, desaceite, desconstrua
A morte, sua caixa de madeira,
Odeie a morte em vida.
Não morra um poema pálido.

19 de março de 2011

uno

o eu e o outro, duas mentes, quatro pés
formas todas de uma crença tola
no perpétuo desejo de fazer-se uno
e esquecer o retiro que espreita ao leito

no embaralhar de quimeras, o embaraço dos dedos
no silêncio da ignorância, o cício das promessas
em que andejam dois, as metades exsudadas
diluídas numa parelha de lassa unidade

o poente deita às costas de ambos
a mesma luz, febre rutilante de cor, o igual veneno
e projeta um indistinto de sombras veladas

pois é débil a unidade, pusilânimes os passos
caminhar insalubre e mudo em direção ao oco
que é o anelo pela metade, esse ermo de mim

"A Pair of Shoes", Vincent Van Gogh

17 de março de 2011

morte

A mãe da minha irmã morreu há quatro dias. Morrer é algo tão brutalmente doloroso e destituído de beleza, que eufemismos tais como "falecer", "expirar", "partir" e "ir ao encontro dos seus" são um despropósito sem precedentes. A morte é um quadro grotesco, sem qualquer noção de proporção e profundidade, pintado com todos os possíveis matizes de negro e cinza da paleta mórbida do ceifador. Não há o menor vestígio de cor e nenhum raio de luz nesse cenário; a pintura da morte é sombria, impactante e gélida.

Até o presente momento, o ceifador tomou poucas pessoas realmente íntimas e caras a mim, nessa ordem: meu avô Juca, que morreu de derrame quando eu tinha seis anos e cuja última frase proferida antes de fechar os olhos cor de mel que eu adorava foi: "Nair, cadê Roberta?". Ele falava o meu nome de um jeito único; deixava os "erres" vibrar no palato, de forma que, em sua voz, eu era a "Roberrrta"; meu tio Alarico, que levava a mim e meus primos para passear em seu Fusca amarelo e deixava que nós, todos moleques àquela época, empoleirássemos nos pára-choques do carro, enquanto ele dirigia devagar pela estrada de terra, rindo-se da criançada comendo poeira e do nosso pseudo-equilibrismo tresloucado. Meu tio amava música clássica. Numa tarde de julho, com o sol morrendo vermelho atrás do Fusca, ele parou perto de um bambuzal enorme, ligou o toca-fitas e nós ouvimos "A Cavalgada das Valquírias", até o anoitecer. Ele chorou de emoção naquele dia e eu também. A vida e a morte são paradoxos bizarros, i.e., meu tio foi um homem que passou a vida inteira na lida com plantações, bois de corte, gado leiteiro e, ainda assim, amava e chorava por Wagner e pelo ocaso.

Então foi a vez de minha avó Nair, cuja morte abalou as estruturas, os valores e a união de toda uma geração da minha família. A vovó tinha essa mania de gente antiga; ela olhava os netos e netas e dizia: "Mas como você engordou, está muito bonito!". Ela jamais falava os nomes das pessoas depois que morriam, porque acreditava que seria como se os chamássemos de volta à vida, o que os perturbaria. Assim, minha avó perdeu o marido e um filho e, depois disso, nunca mais pronunciou os nomes "Juca" e "Alarico". Em seguida o ceifador tomou minha tia Lígia, irmã daquele, que eu amava como à própria vida. Ela fazia os melhores bolos-mármore, as mais deliciosas brevidades, o mais inesquecível arroz com canjiquinha e bananas fritas e os mais admirados pastéis de carne. Enquanto as férias não vinham e eu esperava inconsolada para ir à fazenda, minha tia juntava potes incontáveis de nata; quando eu chegava, ela me deixava "bater" a gordura do leite com uma colher de pau, até virar manteiga de verdade, amarelinha, com gosto de roça. Minha tia teria adorado conhecer o meu filho. E tenho certeza de que o mimaria como o fez comigo. Anos depois se foi Carlinhos, filho do tio Alarico, que morreu de enfarto fulminante numa noite em que fazia um frio fora dos padrões. Ele tinha 47 anos, dois filhos adultos e uma esposa que é um anjo. A morte do meu primo foi estúpida, incompreensível e inaceitável. Na última vez em que estive com ele, Carlinhos levou meu filho para brincar com os pintinhos no galinheiro, moeu milho no paiol com ele e, juntos, subiram no telhado da casa. Depois, ele lavou as louças para sua mãe e, quando nos despedimos, abraçou-me apertado. Ele era o meu tio novamente, em todos os aspectos.

Há valores que adquirimos na vida através dos meios em que transitamos. Outros imputamos em nossas mentes sozinhos, porque simpatizamos com as idéias ou porque acreditamos que refletem nossa personalidade. Os demais, aprendemos e reproduzimos a partir de nossos pais. Eu não estive presente no velório de nenhuma dessas pessoas cujos poucos detalhes citei acima, nem fui ao enterro de nenhuma delas. Meu pai também não. Eu e ele compartilhamos uma repulsa inominável de ver gente morta, velar o corpo inerte e frio e, em seguida, vê-lo ser trancado numa caixa de madeira e fechado com tijolos e cimento no interior de um "jazigo". Aliás, este vocábulo causa-me uma revolta contrita nesse contexto, pois jazigo, antes de ser sepultura e tumba, é "um lugar em que existem camadas, veios ou filões de minerais no seio da terra: jazigo de diamantes; o mesmo que jazida e mina". O signo "jazigo" é dotado de um significado cujo conteúdo remete a fonte, veias, seio, minas e morada, ou seja, a semântica envolvida na palavra é pura vida e origem. Daí minha indignação quanto ao uso de "jazigo", dotado de um significado tão belo, para um significante e uma forma tão contraditória ao mesmo. Uma sepultura não é morada, nem fonte e muito menos origem de nada; é uma forma bizarra e medonha de encerrar a vida.

Nunca penso na minha própria morte. Nem mesmo depois que meu filho nasceu, tal idéia passou a me perturbar. Por outro lado, a morte das pessoas que amo é algo profundamente impactante para mim, algo que não vejo de forma alguma como natural. Aliás, jamais entendi pessoas que dizem que a morte "é a coisa mais natural da vida", a única certeza do mar de incertezas que é viver. São incríveis as maneiras que os indivíduos encontram para se confortar e "engolir" a tragédia que é a morte. O que há de natural em morrer? Natural é viver, desabrochar, construir. Então, para os vivos que ficam não enlouquecerem, jargões estapafúrdios e de parco valor reconfortante como "a vida continua", "é o ciclo da vida", "morre um para nascerem milhares", são nos empurrados goela abaixo. E ai de quem não os aceitar ou questionar; acaba por cair na malha fina dos que têm a vida determinada pelos mortos.

Estou muito soturna hoje. Não deveria escrever sobre a morte e, ao fazê-lo, talvez fosse mais seguro para mim usar um pseudônimo ou nem publicar o texto. Porque minhas opiniões sobre a morte e, mais especificamente, sobre o ritual que envolve o adeus, o sepultamento, enfim, o luto, não fazem parte do senso comum; são idéias que podem gerar revolta, antipatia, incompreensão, julgamentos prévios acerca do que represento enquanto unidade viva. Entretanto, cabe ao escritor dizer o que não pode ser nem é comumente dito. Por isso autores, ou seja, escritores publicados e conhecidos, utilizam-se de pseudônimos, para proteger sua imagem pública e evitar possíveis equívocos exegéticos. Eu não sou autora; não tenho editor, não publiquei nada do que escrevo. O máximo de "público" que alcanço são os leitores cativos deste blog e um ou outro guerreiro que leia as postagens na íntegra. Dessa forma, presunção literária à parte, não me importo muito em saber que serei alvo de pensamentos nada blandiciosos por um texto como este.

Existem dois tipos de escritor: o que escreve para viver - os autores - e o que vive para e por escrever - os poetas malditos, os blogueiros, os futuro-ex-autores frustrados. E o segundo tipo, ao qual me encaixo, escreve como forma de catarse, porque não conhece outra maneira de se comunicar consigo mesmo e de compreender a si mesmo, a não ser através da escrita. Somos assim: escritores onfalópsicos, que contemplam o próprio umbigo e a vida ao seu redor e vomitam as impressões que têm sobre ela em forma de palavras. Um exemplo paralelo seria o do tycoon-nerd mirim, Mark Zuckerberg, que concebeu a idéia do Facebook, a maior rede social do planeta, após ter levado um fora descomunal da namorada. Bom para ele; sua catarse gerou lucros, mudou a interface da web e o transformou no bilionário mais jovem do mundo.

O cenário para escritores introspectivos, fin de siècle, nostálgicos, falidos e chegados a uma elucubração é diferente do mise en scène dos gênios da informática; nem sempre a catarse literária dá certo. Às vezes a realidade, o cotidiano e mesmo a imaginação são tão bolorentas que é aconselhável respirar fundo, contar até dez e não escrever absolutamente coisa alguma. Nessas horas, para evitar me expor ou escrever uma porcaria de proporções blasfemas, eu leio; um livro por dia, se for necessário. Mas, então, chega o momento de sair do casulo, a mente fervilhante domina os olhos e os dedos e, simplesmente, escreve-se. Como dizia a Clarice: "escrevo porque sou um desesperado e estou cansado, não suporto mais a rotina de me ser. E se não fosse sempre a novidade que é escrever, eu me morreria simbolicamente todos os dias".

Ocorre que a mãe da minha irmã morreu. Teve um enfarte fulminante numa manhã de domingo e... pronto. Num estalar de dedos do ceifador, sua vida transformou-se em inércia para sempre. A morte da primeira mulher do meu pai, o sofrimento acachapante de minha irmã e dos seus filhos e o conforto que tentei ofertar-lhes, em vão, tirou-me de órbita e cobriu meu céu com um manto cinza que era a própria morte a rondar-me a alma, os desejos e a vontade de viver. Não escrevi desde então; apenas li e elucubrei. Mas não me bastou chorar; preciso chover. Preciso expurgar uma tromba d'água de mim para que eu não afogue de dentro para fora. Necessito processar o luto e o seu impacto fazendo um temporal, vazando uma enchente de mim; para voltar à sanidade, para delimitar contornos, para vomitar palavras.

A mãe da minha irmã era católica, muito religiosa e ia semanalmente à missa de domingo. Aliás, a mãe da minha irmã era muitas coisas; a religiosidade constituía apenas uma de suas múltiplas facetas. Era também uma mulher vaidosa, bem-criada, generosa, honesta, cortês, discreta e que amava sua filha e seus netos. E talvez por ela não ser a minha própria mãe, nem o meu pai - pessoas a quem a menor referência de morte é inconcebível, intolerável e inaceitável para mim - ou porque a solidão, o sofrimento e o desespero que vi refratados nos olhos de minha irmã, que são os olhos do meu pai, e também os de meu avô, talvez por essas razões e outras que desconheço, fui ao velório dessa mulher, que me conhece desde que nasci e que convive comigo e com minha família amigavelmente desde então. Velei seu corpo ao lado de minha irmã e sobrinhos até alta madrugada, com os olhos fixos nas velas elétricas, velas com chamas de mentira da capela, porque não conseguia fitar aquele rosto inativo, que era tudo o que se podia ver em meio às flores amarelas, um rosto que parecia querer acordar a qualquer momento. Quando o sol se pôs, minha tristeza aumentou de tal forma que tudo o que eu desejava era virar um líquido qualquer para escorrer pela terra, ou um gás muito leve, para subir em direção ao crepúsculo. Não há sentimento de derrota mais contagiante do que a morte. 

Na manhã seguinte, porque achei uma tortura excruciante a cantoria lúgubre das beatas, escrevi um texto de homenagem a ela e à família. Valores e crenças não são debatíveis; eu já deveria saber disso a essa altura da vida. Mas de alguma maneira muito insensata, ou muito intuitiva e, de qualquer forma, totalmente bem-intencionada, quis proporcionar alguma leveza ao ambiente, um sopro carinhoso na consciência de minha irmã, algo que tivesse o valor e o toque de flores vivas, e não aquelas mortas no caixão e as sem raízes da coroa. Eu disse que escritores muitas vezes precisam escrever para compreender melhor a si mesmos e o mundo que os rodeia; mas não fui completamente sincera ou, pelo menos, omiti o essencial sobre a escrita catártica. Por vezes escreve-se para tentar enxergar a realidade como maré vazante e parar de remar contra  ela, e sim a seu favor. Quando há correnteza no mar, a primeira reação do nadador é dar braçadas contra a maré; afinal, a correnteza pode levá-lo para qualquer lugar, até mesmo para o mar alto. Nadando contra a correnteza, porém, por mais exímio que seja, o nadador há de se afogar. Se, no entanto, nadar a favor da maré e boiar para descansar quando as cãibras vierem, o mar o devolverá para a areia.

Toda essa digressão mascarada com metáforas de mar tem apenas uma finalidade: dizer aos céticos como eu, aos que não aceitam a morte e escarnecem dos rituais, das flores mortas, das cantorias lamurientas e dos jazigos, que ela é, sim, uma certeza. E que talvez seja melhor fazer as pazes com o ceifador e com a forma como os vivos lidam com ele do que passar a vida nadando contra a maré e se afogar na praia. Foi o que fiz, ou ao menos tentei fazer com as palavras, instrumentos meus; escritas para mim, para a família que ficou, para quem foi, pelo discernimento e equilíbrio de quem ainda está no páreo. De manhã, estas foram as palavras que li para as pessoas que foram ver a Dulce pela última vez:

Não é comum na nossa cultura que um dos membros da família tome a palavra, num dia onde a dor da perda dilacera. Acontece que a mãe da minha irmã não está mais aqui com a gente. E eu, que só sei confortar as pessoas com as palavras, senti esse ímpeto de trazer alívio a todos que a amavam. Vejam como as reviravoltas da vida são curiosas. A Dulce dizia que o seu maior medo era morrer sozinha. Mas ontem, enquanto velávamos seu corpo de rosto sereno, como que a dormir profundamente, percebemos que a Dulce não ERA sozinha, muito pelo contrário. Ela poderia até ter seus momentos de solidão, mas quem de nós não tem...? Muitos a admiravam e muitos sentiram profundamente a sua perda. E me conforta pensar que o seu espírito leve pegou carona nas costas de um beija-flor faceiro e voou para longe, para aonde o céu é mais azul e o ar, mais puro. E nesse momento, tenham certeza, Dulce não estava só. Todos que a amavam estavam lá com ela, não de corpo presente, mas vivos em seu coração. Por isso solidão é tão relativo. Tem gente que vive e morre cercado de gente e, no meio dessa multidão, parte sozinho porque não há um amigo verdadeiro sequer que habite a sua alma. Com a Dulce foi diferente, memorável e lindo. Estávamos todos com ela, o tempo todo, em pensamentos, energia, preces, amor e admiração. E isso, meus amigos, é tudo, MENOS solidão.

Eu sou a Roberta, irmã da Cris, a moça que gosta de contar histórias. E hoje, quero contar histórias felizes, para que a gente se lembre da Dulce como ela gostaria de ser lembrada: uma mulher alegre, vaidosa e jovial, e não alguém de cara-amarrada. Eu sou a menina que a Dulcinha levava para a fazenda Santa Bárbara, num Fusca cinza, ouvindo músicas italianas e francesas. Todo o meu conhecimento a respeito dessas músicas que a Dulce amava, devo a ela. Foi a Dulcinha que, nessas viagens, me falava da Páscoa, do que ela significava e, o que eu mais adorava, me mostrava as quaresmeiras escondidas nas matas. Até hoje, quando vejo uma quaresmeira explodindo em cores exuberantes, é da Dulce que me lembro. Um dia, voltando da fazenda eu e ela, num sol de rachar a moleira, a Dulcinha parou o Fusca no acostamento da estrada de terra, abriu as portas do carro e tocou “La Barca” a todo volume, me puxando para dançar com ela. Enquanto a gente rodopiava, eu via as quaresmeiras ao fundo. E era feliz. 

A Dulce gostava de ouvir as histórias da Cristiane e, através das aventuras da filha, ela rejuvenescia e ria à vontade. Nunca vi a Dulcinha julgar o comportamento de sua filha, até porque ela confiava na criação que dera à Cris. A Dulcinha gostava de fotos. As últimas que tirou foram da Camila, com cabelo recém-cortado, e do Arthur, sentado à mesa comendo o arroz com carne assada que a Tereza tinha preparado. Sim, porque sempre que ia ao Rio visitar a filha e os netos, a Dulce levava milhares de pães e bolos, leite, ovos, sucos e até arroz com carne assada. Para a Dulcinha, a Cris sempre foi aquela menina que ela gostava de cuidar e, se dependesse da Dulce, ela adotaria o mundo e colocava debaixo de suas asas protetoras. Quando jovem, ela gostava de tomar banhos de sol com sua filha nas praias do Rio; recentemente, era fã de cinema e de um bom almoço em família. E assim foi o seu último aniversário: com a família reunida à mesa, muita risada e diversão, um colar lindo que ela ganhou e um filme que ela adorou assistir. A última foto que tiramos de Dulce é pura poesia: sentada a uma mesa na Tijuca, em meio aos foliões do Carnaval, ela pôs uma máscara veneziana, fez uma pose graciosa e sorriu, ao lado de sua neta. Depois, voltou para a casa da filha comigo e me contou que tinha muito orgulho da Cris, porque ela é uma batalhadora; e do Carlos, que é um homem como poucos; e de Camila, que é uma menina valente; dos meus pais, seus amigos tão leais; e do Arthur, seu neto mais jovem, mais bagunceiro e mais adorável.

À Dulcinha eu devo o melhor presente da minha vida: a reaproximação com a minha irmã. Houve uma viagem para Cabo Frio, em que Cristiane e Dulcinha iriam juntas, mas que, na última hora, a mãe deu para trás, dizendo que estava indisposta. Mas eu acho que a Dulce era muito, mas muito mais esperta do que isso, porque logo disse à Cris: “Chama a Roberta, ela vai com você”. Gosto de acreditar que ela arranjou a desculpa perfeita para nos juntar. E a manobra da Dulce foi tão perfeita e abençoada que, desde essa viagem, em que fomos eu, a Cris e o Arthur, a gente não se desgruda mais. Somos confidentes, rimos e choramos juntas, xingamos às vezes – principalmente quando eu não lavo as louças, molho a pia do banheiro, tomo um banho de mais de 30 minutos e quando o Arthur faz pipi na tampa da privada. Mas, ainda assim, a Cris às vezes me apresenta como sua filha mais velha, que ela vai levar pro Rio para terminar de criar. E, novamente, a Cris é como a Dulce, coração do tamanho do mundo, pura generosidade e capacidade para amar. Muitos de vocês, aqui, têm certeza de que vão se reencontrar com a Dulce. A Cristiane já encontrou a Dulce porque, nela, vivem cada célula da essência de sua mãe, assim como em seus netos. E eu, que conheço a Dulce desde que nasci, já a reencontrei no presente em forma de Cristiane que ela mandou para mim. Agora, quando ela for descer para a terra, vamos fechar os olhos e imaginar que quem partiu está voando e vai encontrar a gente, nas costas de um beija-flor. Mas não se esqueçam: o sobrenome da Dulce é Perini. E Perini, gente, é quase “perene”: e perene é o que é eterno, feito um rio que nunca, mas nunca mesmo, seca.

12 de março de 2011

trilha sonora


Por mais que me enverede por terrenos desconhecidos, por mais intensos que sejam os mergulhos no interior abissal da minha alma e, sobretudo, por mais que eu tente variar, e mesmo modificar o tema musical sobre o qual dedilho as cordas da minha vida, a trilha sonora que minha batuta rege é sempre a mesma. Gosto particularmente dessa idéia: a vida de cada indivíduo é entrelaçada a uma partitura, tal qual a uma sinfonia clássica, com quatro movimentos. O tema, ou seja, o corpo musical de uma sinfonia, é único, sempre o mesmo, embora o compositor insira variações e instrumentos diversos, e as cadências dos movimentos imprimam certa fluidez à eventual monotonia sonora.

Agrada-me tal comparação. Vivemos para ecoar, até o fim, o tema com o qual já entramos no palco do mundo, tema que é a essência mesma de cada um; as idiossincrasias; os maneirismos; os óculos escuros ou coloridos através dos quais enxergamos a realidade; as tintas que usamos para pintar os cenários que habitamos e por onde nos movimentamos; os gestos grandiloqüentes com os quais respondemos a estímulos pouco relevantes e vice-versa; os idealismos e o pragmatismo; as crenças, presenças, ausências e os valores; tudo que há e todo o vazio intrínseco à existência; enfim, estes são alguns dos elementos que fazem parte do tema musical da sinfonia de nossas vidas.

É comum que a introdução no mundo seja sob um movimento de caráter ligeiro, um allegro por exemplo. Gosto de pensar que a infância e a adolescência são o allegro da vida, quando somos frescos e enérgicos e estamos ansiosos por mostrar ao mundo a nossa música; somos pura disposição para afirmar nossa identidade, o tema musical da personalidade. O segundo movimento é a música lenta e longa da obra; pode ser um largo, um andante, ou mesmo um adagio. É o começo da vida adulta, as rotinas que se estabelecem, as decisões importantes que tomamos ou deixamos de tomar, como onde viver e com o que trabalhar, as uniões e rupturas amorosas, os legados, os filhos, a ausência deles. O terceiro movimento é conhecido como minueto; é a música mais simples da obra. Possui um tema inicial que, em seguida, é interrompido por uma variação mais intensa do tema principal.

Penso no minueto como as eventuais reviravoltas que sofremos, causamos ou permitimos acontecer em nossas vidas. Nem todas as sinfonias possuem um terceiro movimento e, da mesma maneira, nem todos os indivíduos levam uma vida em que reviravoltas e variações bruscas no tema imperam. Estes, como as sinfonias, passam do andante para o final da composição sem minueto, sem encruzilhadas, sem mais revertérios e suas reverberações cataclísmicas. O quarto e último movimento, o finale, é normalmente a música mais emotiva da obra. O ocaso da vida, a maturidade adquirida tombo após tombo, vitórias e derrotas, a sensação de missão cumprida e vida vivida, o tempo da contemplação, enfim, deve ser de fato o mais emotivo. De qualquer forma, o final das coisas tende a ser mais emotivo do que o início e o caminhar das mesmas. 

Na trilha sonora da minha vida, o tema é bem definido e, por mais que haja variações, é sempre o mesmo. Nas linhas desta partitura estão grafadas, em alto-relevo, os nós que definem minhas notas musicais: identidade, busca, espera e retorno. Se eu soubesse pintar e entendesse minimamente sobre design gráfico, meu auto-retrato e avatar seriam um oroboro, aquela serpente que devora a própria cauda. O Robert Langdon, personagem cuja profissão de "simbologista" o autor Dan Brown retirou miraculosamente de sua cartola, para o romance "O Código Da Vinci", diria que o oroboro simboliza a eternidade, a auto-fecundação, a evolução e sabe-se lá mais o que. Mas o ilustre Mr. Langdon não é um oroboro; eu sou. E, para mim, a imagem de uma cobra mordendo o próprio rabo significa que dou voltas e mais voltas para retornar sempre ao mesmo ponto, algo como marchar em areia movediça, cavar um poço em círculos pelo centro do universo e sair pelo mesmo buraco. Em outras palavras, sou uma contradição entre ir e voltar, ad nauseum. 

Por isso duas são as canções recorrentes em minhas viagens de carro, de avião, de balão, de trem ou a pé: "Lume de Estrelas", do Montenegro, e "Did You Ever Get the Feeling", que Jimmy Durante canta no filme "The Man Who Came to Dinner", de 1942. 

Lume de Estrelas
(Oswaldo Montenegro / Mongol)

"Toda vez que eu volto
Tô partindo
E no sentido exato
É por saudade
Ah! coração taí a festa
E nós
Por aí vai
Nossa colorida idade
Diga depressa com quantas paixões
Faz-se a canoa
Do amor que a gente quer
E quando eu não voltar
Acenda o mesmo lume de estrelas
Que eu deixei no teu olhar"


A letra da segunda canção é mais uma pergunta dolorosamente retórica, que Jimmy Durante martela ao piano; o que se ouve são trinta segundos de pura dúvida, um dilema que dura toda a eternidade para oroboros de plantão:

Did You Ever Get the Feeling
(Jimmy Durante)

"Did you ever get the feeling that you wanted to go,
But still had the feeling that you wanted to stay,
You knew it was right, wasn't wrong.
Still you knew you wouldn't be very long.
Go or stay, stay or go,
Start to go again and change your mind again.
It's hard to have the feeling that you wanted to go,
But still have the feeling that you wanted to stay.
Do, re, mi, fa, so, la, si, do.
I'll go..."


A parte medíocre, tediosa e reles do refrão de uma vida não é tanto o sentimento de querer ir, mas ao mesmo tempo querer ficar, nem o inconveniente de mudar de idéia ou, o que é pior, a indecisão que nada define e deixa a partitura em aberto. A melodia transforma-se em disco de vinil arranhado, com som abafado e entrecortado quando entra em cena a contradição de naturezas que adornam o tema principal da sinfonia. No meu caso, tal contradição é expressa em raízes que anseio por fincar num solo que me foge aos pés; o desejo de ter as velas infladas pelo vento, ganhar velocidade, navegar em mar alto e, por outro lado, o temor do naufrágio e da inexistência de um porto; a ânsia de afirmar um tema original, identidade própria e, por conseqüência, perder referências que há tempos delimitam meus contornos.

Tudo isso fica muito bonito em Shakespeare, quando Hamlet, o príncipe indeciso que deseja, mas não sabe se pode, se deve, ou se quer mesmo vingar a morte de seu pai, recita:

"Ser ou não ser, eis a questão: será mais nobre
Em nosso espírito sofrer pedras e setas
Com que a Fortuna, enfurecida, nos alveja,
Ou insurgir-nos contra um mar de provações
E em luta pôr-lhes fim? Morrer.. dormir: não mais.
Dizer que rematamos com um sono a angústia
E as mil pelejas naturais-herança do homem:
Morrer para dormir... é uma consumação
Que bem merece e desejamos com fervor.
Dormir... Talvez sonhar: eis onde surge o obstáculo:
Pois quando livres do tumulto da existência,
No repouso da morte o sonho que tenhamos
Devem fazer-nos hesitar: eis a suspeita
Que impõe tão longa vida aos nossos infortúnios.
Quem sofreria os relhos e a irrisão do mundo,
O agravo do opressor, a afronta do orgulhoso,
Toda a lancinação do mal-prezado amor,
A insolência oficial, as dilações da lei,
Os doestos que dos nulos têm de suportar
O mérito paciente, quem o sofreria,
Quando alcançasse a mais perfeita quitação
Com a ponta de um punhal? Quem levaria fardos,
Gemendo e suando sob a vida fatigante,
Se o receio de alguma coisa após a morte,
Essa região desconhecida cujas raias
Jamais viajante algum atravessou de volta –
Não nos pusesse a voar para outros, não sabidos?
O pensamento assim nos acovarda, e assim
É que se cobre a tez normal da decisão
Com o tom pálido e enfermo da melancolia;
E desde que nos prendam tais cogitações,
Empresas de alto escopo e que bem alto planam
Desviam-se de rumo e cessam até mesmo
De se chamar ação (...)"

Tradução de SILVA RAMOS, Péricles Eugênio. "Hamlet", Editora Abril, 1976.



A tragédia de Hamlet é a peça mais longa de Shakespeare, provavelmente a mais conhecida e, certamente, a de conteúdo mais denso e amplamente interpretado e debatido. Alguns críticos encaram sua indecisão como uma técnica do autor de prolongar a ação do enredo; há também quem veja o dilema épico como o resultado da pressão exercida por questões éticas e filosóficas que cercam o assassinato a sangue-frio, conseqüência de uma vingança calculada ou de um desejo frustrado do príncipe.

Dramático, atemporal, clássico e lindo. Em Hamlet. Na trilha sonora da minha vida, entretanto, esse "ser ou não ser" é uma questão, um revés angustiante, a encruzilhada de lama onde meus bois atolam e me deixam a ver navios. Como os termos "bois atolam" e "a ver navios" podem habitar a mesma sentença é o cerne da minha sinfonia inacabada e destoante; a celeuma que retumba no silêncio incômodo da minha existência; a lacuna que falho em completar. Porém, sou persistente, ou melhor, preciso sê-lo. Afinal, o fechar das cortinas de Hamlet, o quarto movimento de sua sinfonia é, indubitavelmente, um dos mais emocionantes e belos que se possa conceber; mas, fato ao qual crítico algum consegue escapar, lúgubre como poucos.