12 de março de 2011

trilha sonora


Por mais que me enverede por terrenos desconhecidos, por mais intensos que sejam os mergulhos no interior abissal da minha alma e, sobretudo, por mais que eu tente variar, e mesmo modificar o tema musical sobre o qual dedilho as cordas da minha vida, a trilha sonora que minha batuta rege é sempre a mesma. Gosto particularmente dessa idéia: a vida de cada indivíduo é entrelaçada a uma partitura, tal qual a uma sinfonia clássica, com quatro movimentos. O tema, ou seja, o corpo musical de uma sinfonia, é único, sempre o mesmo, embora o compositor insira variações e instrumentos diversos, e as cadências dos movimentos imprimam certa fluidez à eventual monotonia sonora.

Agrada-me tal comparação. Vivemos para ecoar, até o fim, o tema com o qual já entramos no palco do mundo, tema que é a essência mesma de cada um; as idiossincrasias; os maneirismos; os óculos escuros ou coloridos através dos quais enxergamos a realidade; as tintas que usamos para pintar os cenários que habitamos e por onde nos movimentamos; os gestos grandiloqüentes com os quais respondemos a estímulos pouco relevantes e vice-versa; os idealismos e o pragmatismo; as crenças, presenças, ausências e os valores; tudo que há e todo o vazio intrínseco à existência; enfim, estes são alguns dos elementos que fazem parte do tema musical da sinfonia de nossas vidas.

É comum que a introdução no mundo seja sob um movimento de caráter ligeiro, um allegro por exemplo. Gosto de pensar que a infância e a adolescência são o allegro da vida, quando somos frescos e enérgicos e estamos ansiosos por mostrar ao mundo a nossa música; somos pura disposição para afirmar nossa identidade, o tema musical da personalidade. O segundo movimento é a música lenta e longa da obra; pode ser um largo, um andante, ou mesmo um adagio. É o começo da vida adulta, as rotinas que se estabelecem, as decisões importantes que tomamos ou deixamos de tomar, como onde viver e com o que trabalhar, as uniões e rupturas amorosas, os legados, os filhos, a ausência deles. O terceiro movimento é conhecido como minueto; é a música mais simples da obra. Possui um tema inicial que, em seguida, é interrompido por uma variação mais intensa do tema principal.

Penso no minueto como as eventuais reviravoltas que sofremos, causamos ou permitimos acontecer em nossas vidas. Nem todas as sinfonias possuem um terceiro movimento e, da mesma maneira, nem todos os indivíduos levam uma vida em que reviravoltas e variações bruscas no tema imperam. Estes, como as sinfonias, passam do andante para o final da composição sem minueto, sem encruzilhadas, sem mais revertérios e suas reverberações cataclísmicas. O quarto e último movimento, o finale, é normalmente a música mais emotiva da obra. O ocaso da vida, a maturidade adquirida tombo após tombo, vitórias e derrotas, a sensação de missão cumprida e vida vivida, o tempo da contemplação, enfim, deve ser de fato o mais emotivo. De qualquer forma, o final das coisas tende a ser mais emotivo do que o início e o caminhar das mesmas. 

Na trilha sonora da minha vida, o tema é bem definido e, por mais que haja variações, é sempre o mesmo. Nas linhas desta partitura estão grafadas, em alto-relevo, os nós que definem minhas notas musicais: identidade, busca, espera e retorno. Se eu soubesse pintar e entendesse minimamente sobre design gráfico, meu auto-retrato e avatar seriam um oroboro, aquela serpente que devora a própria cauda. O Robert Langdon, personagem cuja profissão de "simbologista" o autor Dan Brown retirou miraculosamente de sua cartola, para o romance "O Código Da Vinci", diria que o oroboro simboliza a eternidade, a auto-fecundação, a evolução e sabe-se lá mais o que. Mas o ilustre Mr. Langdon não é um oroboro; eu sou. E, para mim, a imagem de uma cobra mordendo o próprio rabo significa que dou voltas e mais voltas para retornar sempre ao mesmo ponto, algo como marchar em areia movediça, cavar um poço em círculos pelo centro do universo e sair pelo mesmo buraco. Em outras palavras, sou uma contradição entre ir e voltar, ad nauseum. 

Por isso duas são as canções recorrentes em minhas viagens de carro, de avião, de balão, de trem ou a pé: "Lume de Estrelas", do Montenegro, e "Did You Ever Get the Feeling", que Jimmy Durante canta no filme "The Man Who Came to Dinner", de 1942. 

Lume de Estrelas
(Oswaldo Montenegro / Mongol)

"Toda vez que eu volto
Tô partindo
E no sentido exato
É por saudade
Ah! coração taí a festa
E nós
Por aí vai
Nossa colorida idade
Diga depressa com quantas paixões
Faz-se a canoa
Do amor que a gente quer
E quando eu não voltar
Acenda o mesmo lume de estrelas
Que eu deixei no teu olhar"


A letra da segunda canção é mais uma pergunta dolorosamente retórica, que Jimmy Durante martela ao piano; o que se ouve são trinta segundos de pura dúvida, um dilema que dura toda a eternidade para oroboros de plantão:

Did You Ever Get the Feeling
(Jimmy Durante)

"Did you ever get the feeling that you wanted to go,
But still had the feeling that you wanted to stay,
You knew it was right, wasn't wrong.
Still you knew you wouldn't be very long.
Go or stay, stay or go,
Start to go again and change your mind again.
It's hard to have the feeling that you wanted to go,
But still have the feeling that you wanted to stay.
Do, re, mi, fa, so, la, si, do.
I'll go..."


A parte medíocre, tediosa e reles do refrão de uma vida não é tanto o sentimento de querer ir, mas ao mesmo tempo querer ficar, nem o inconveniente de mudar de idéia ou, o que é pior, a indecisão que nada define e deixa a partitura em aberto. A melodia transforma-se em disco de vinil arranhado, com som abafado e entrecortado quando entra em cena a contradição de naturezas que adornam o tema principal da sinfonia. No meu caso, tal contradição é expressa em raízes que anseio por fincar num solo que me foge aos pés; o desejo de ter as velas infladas pelo vento, ganhar velocidade, navegar em mar alto e, por outro lado, o temor do naufrágio e da inexistência de um porto; a ânsia de afirmar um tema original, identidade própria e, por conseqüência, perder referências que há tempos delimitam meus contornos.

Tudo isso fica muito bonito em Shakespeare, quando Hamlet, o príncipe indeciso que deseja, mas não sabe se pode, se deve, ou se quer mesmo vingar a morte de seu pai, recita:

"Ser ou não ser, eis a questão: será mais nobre
Em nosso espírito sofrer pedras e setas
Com que a Fortuna, enfurecida, nos alveja,
Ou insurgir-nos contra um mar de provações
E em luta pôr-lhes fim? Morrer.. dormir: não mais.
Dizer que rematamos com um sono a angústia
E as mil pelejas naturais-herança do homem:
Morrer para dormir... é uma consumação
Que bem merece e desejamos com fervor.
Dormir... Talvez sonhar: eis onde surge o obstáculo:
Pois quando livres do tumulto da existência,
No repouso da morte o sonho que tenhamos
Devem fazer-nos hesitar: eis a suspeita
Que impõe tão longa vida aos nossos infortúnios.
Quem sofreria os relhos e a irrisão do mundo,
O agravo do opressor, a afronta do orgulhoso,
Toda a lancinação do mal-prezado amor,
A insolência oficial, as dilações da lei,
Os doestos que dos nulos têm de suportar
O mérito paciente, quem o sofreria,
Quando alcançasse a mais perfeita quitação
Com a ponta de um punhal? Quem levaria fardos,
Gemendo e suando sob a vida fatigante,
Se o receio de alguma coisa após a morte,
Essa região desconhecida cujas raias
Jamais viajante algum atravessou de volta –
Não nos pusesse a voar para outros, não sabidos?
O pensamento assim nos acovarda, e assim
É que se cobre a tez normal da decisão
Com o tom pálido e enfermo da melancolia;
E desde que nos prendam tais cogitações,
Empresas de alto escopo e que bem alto planam
Desviam-se de rumo e cessam até mesmo
De se chamar ação (...)"

Tradução de SILVA RAMOS, Péricles Eugênio. "Hamlet", Editora Abril, 1976.



A tragédia de Hamlet é a peça mais longa de Shakespeare, provavelmente a mais conhecida e, certamente, a de conteúdo mais denso e amplamente interpretado e debatido. Alguns críticos encaram sua indecisão como uma técnica do autor de prolongar a ação do enredo; há também quem veja o dilema épico como o resultado da pressão exercida por questões éticas e filosóficas que cercam o assassinato a sangue-frio, conseqüência de uma vingança calculada ou de um desejo frustrado do príncipe.

Dramático, atemporal, clássico e lindo. Em Hamlet. Na trilha sonora da minha vida, entretanto, esse "ser ou não ser" é uma questão, um revés angustiante, a encruzilhada de lama onde meus bois atolam e me deixam a ver navios. Como os termos "bois atolam" e "a ver navios" podem habitar a mesma sentença é o cerne da minha sinfonia inacabada e destoante; a celeuma que retumba no silêncio incômodo da minha existência; a lacuna que falho em completar. Porém, sou persistente, ou melhor, preciso sê-lo. Afinal, o fechar das cortinas de Hamlet, o quarto movimento de sua sinfonia é, indubitavelmente, um dos mais emocionantes e belos que se possa conceber; mas, fato ao qual crítico algum consegue escapar, lúgubre como poucos. 

2 comentários:

  1. Falando de música... hummm que delícia de texto... e que triste texto.
    E para um texto triste, versos tristes de uma música alegre, feitos por um maestro que tinha a batuta sorridente e dedicados para uma mulher mais que linda:

    "Senão é como amar uma mulher só linda
    E daí? Uma mulher tem que ter
    Qualquer coisa além de beleza
    Qualquer coisa de triste
    Qualquer coisa que chora
    Qualquer coisa que sente saudade
    Um molejo de amor machucado
    Uma beleza que vem da tristeza
    De se saber mulher
    Feita apenas para amar
    Para sofrer pelo seu amor
    E pra ser só perdão"

    http://www.youtube.com/watch?v=pdStj4D28vY&feature=player_embedded

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  2. Como sempre, um comentário pertinente, memorável, lindo. Adoro-te, criatura.

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