10 de março de 2011

amigas de alma


O que se segue é a transcrição literal de uma correspondência entre Ivy, que você já conhece daqui do Expresso, e Roberta, esta que agora lhes escreve. Trata-se de um dilacerar de carnes e almas pessoal, cru, destemido, desnudo, íntimo, revelador, doloroso e, por tudo isso, libertador.

É comum que escritores, mesmo os aspirantes, troquem correspondências e, anos depois, algum editor com faro para os negócios decida publicá-las. Porque cartas pessoais revelam muito da personalidade e da essência do autor, e é grande o interesse popular pela vida pessoal de escritores célebres. O interesse dos leitores do Expresso pela vida pessoal das ilustres desconhecidas Roberta Rohen e Ivy Gobeti é, digamos, módico, para não rasgar o verbo e dizer "nulo".

Mas não foi por auto-promoção que optei por postar nossas correspondências aqui; mas, sim, porque muitos dos dilemas vividos por nós são também os seus e, de alguma forma, seja na certeza de não estar inteiramente só, seja nas reflexões sobre tais dilemas, o leitor há de encontrar certo alento, conforto e, à distância, um eco compreensivo.

de Ivy pra mim:

Ai... Nem sei, sabe, porque estou lhe escrevendo esse email agora... Deu vontade de conversar com você, que me conhece tão bem, sem precisar conhecer minha história. Eu decidi que quero voltar a estudar, e quero fazer mestrado em Lingüística e estudos do Discurso, dialogismo, dialética. Sabe, aquilo que a gente já faz todos os dias? Então... É tão difícil pra mim, minha amiga de alma, voltar a estudar, eu choro todos os dias de medo. Eu tenho traumas tão fortes com isso, desde a escola, ninguém entendia o que eu falava, ninguém entendia o que eu escrevia. Na faculdade, então, foi um desastre. Só brigas com os professores e uma verdadeira tragédia no meu TCC, que foi contra todas as idéias dos professores tradicionalistas. Mas eu quero, eu quero muito estudar, mas com o passar dos anos eu passei a acreditar que sou burra, eu sinto isso dentro de mim, um medo enorme de ser burra, de nunca ser aceita, apesar de achar que a minha essência, a minha missão é essa mesma, de não ser aceita. Ajuda-me, amiga, sempre, com a nossa poesia, eu preciso acreditar, até o fim, é o momento mais ousado da minha vida, no qual eu me encaro de frente, minha escrita sempre foi escondida, nunca a assumi, cada post que eu publico me sinto uma idiota, de tão ruins que acho que são, mas eu quero superar, quero me superar, eu quero passar esse medo, me sentir interessante, quero poder agregar, quero significar, quero me ultrapassar. Você me ajuda?


de βετα pra ela:


Esse seu email foi tão importante para mim, significou tanto, marcou-me tão fundo, que peço sua permissão para responder a ele em nosso blog. Posso? Estou chorando de emoção aqui, de verdade, principalmente porque você é o meu eco, Ivy, o eco transbordante de significados que eu nunca tive e pelo qual sempre ansiei. Também quero voltar a estudar, ampliar meus horizontes e voar, (re)construir minha identidade, facetada a tal ponto que já não me reconheço em reflexo algum. No entanto, sinto-me igualmente estúpida e parva; limitada, desprovida de talento e de técnica; despreparada; auto-indulgente e leniente; medíocre e incapaz; velha demais e ultrapassada; alijada do mercado de trabalho; culpada pelo legado de meus pais, cuja continuidade cabe a mim, e ao qual imponho dúvidas, à primeira vista, de uma insensatez colossal; prisioneira dos meus próprios temores e fracassos; murcha e vazia como mulher, filha, profissional e mãe; sabotada; auto-piedosa e patética; sozinha como um elevador vazio e com um filho de quatro anos para criar.
Quando haveremos de rechear nossos peitos de CORAGEM? Sepultar antigos e bestiais fantasmas, personificados em TRAUMAS? Ignorar subterfúgios vãos? Olhar para a estrada de frente e seguir, não como faróis caducos, que iluminam o que ficou para trás, mas como a tocha que precisamos ser? Quando, minha amiga de alma, encararemos nosso reflexo no espelho, tal qual ele é, sem mais dolorosas, MARTIRIZANTES e sufocantes crises existenciais? Em nome de todos os deuses do Olimpo, Ivy, que PAVOR é esse que nos paralisa, embota os pensamentos e nos impede de tomar as rédeas de nossas vidas nas mãos? Há alguns anos alguém me disse que existem basicamente dois tipos de indivíduos na forma como reagem a estímulos externos, à dor e ao aprendizado. O primeiro é aquele que, ao perceber um Steinway de cauda despencar do vigésimo andar, olha a desgraça iminente, compadece-se da destruição do piano mais raro do mundo, mas não fica sob a linha de queda. O segundo tipo age de maneira idêntica ao primeiro mas, por poesia, loucura, lerdeza ou INADEQUAÇÃO, mantém-se sob a linha de queda do Steinway, como que para se certificar se o piano vai se espatifar mesmo. É claro que se espatifa. E sobre a sua cabeça. Por que minha alma me sussurra, cúmplice e irônica, que tanto eu quanto você pertencemos à segunda categoria...?
Eu sempre repito meus temas, "flor de obsessão" que sou, e você, menina, não faz diferente. São suas essas palavras: "com o passar dos anos eu passei a acreditar que sou burra, eu sinto isso dentro de mim, um medo enorme de ser burra, de nunca ser aceita, apesar de achar que a minha essência, a minha missão é essa mesma, de não ser aceita." Leia essa frase uma, duas, três, mil vezes, garota. E, agora, preste atenção na análise que faço do seu discurso, esta que parece ser minha sina: "passei a acreditar" é eufemismo para dizer: "creio, acredito, sei, reconheço, assino embaixo"; "apesar de achar que a minha essência, a minha missão é essa mesma, de não ser aceita". Quando você diz "apesar", contradiz a frase anterior: "passei a acreditar que sou burra, eu sinto isso dentro de mim, um medo enorme de ser burra, de nunca ser aceita". Esse "apesar", Ivy, é a chave do seu discurso, como se você dissesse: "eu até considero a possibilidade de ser burra e de nunca ser aceita, mas...". Mas quem acha que sua missão é não ser aceita, não PERTENCER, apenas acha querida; não tem certeza.
Acabo de me lembrar de algo que meu pai, esta que é a criatura mais importante da minha existência, o nó da minha vida, disse-me num de meus muitos momentos de dúvidas, temores e questionamentos; "A vida foi e ainda tem sido muito boa com você, Roberta. Talvez seja a hora de, alguma forma, você retribuir, não acha?". De muitas coisas que meu pai me disse e de que jamais me esquecerei, Ivy, esta tenha representado, talvez, o murro fundamental do Steinway, bem em cima da minha cabeça dura, confusa e bem-intencionada.
Vamos combinar o seguinte: eu ajudo você e você me ajuda, minha irmã, meu eco, minha alma. Ajudo-a a virar a borboleta que flutua em você, essência sua, e que se esconde em casulos de mentira; e você me ajuda a virar o barco a velas, sem âncora, mas com um porto para aonde voltar, que eu preciso ser. Combinado? Amo você, Ivy Gobeti. E vou te ouvir, te ecoar e te carregar nos braços, sempre.

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