23 de março de 2011

não-sujeito [proseando com "Sujeito Simples, Composto", de Ivy]

Tenho uma bola de cristal maciço, pequena, que vive pendurada por um fio de nylon à janela do meu quarto. Não é uma Swarovski, como eu caprichosa e pretensiosamente desejaria, mas é cristal de verdade; nada daquele vidro colorido, meio opaco e misturado à resina, que nas feiras de praia e nos camelôs vendem-se aos milhares. Esse cristal não possui função meramente decorativa, até porque, esteticamente, nenhum penduricalho me agrada, mesmo que seja um penduricalho Swarovski. Meu cristal serve para dizer que o verão está acabando e o outono bate às portas tupiniquins. No verão, o sol mora alto no horizonte e não entra pela janela do meu quarto, ou seja, nenhum raio é refratado pelo cristal. À medida que o frio vem chegando, o sol fica cada vez mais indolente e, mandrião que só ele, vai-se deitando no firmamento. Então, seus raios compridos e tépidos vazam janela adentro e tocam o meu cristal; arco-íris se formam nas paredes do quarto e no piso do corredor. Se estiver ventando, o cristal gira com o fio de nylon e as cores dançam pela casa. Hoje vi o primeiro arco-íris que o meu cristal projetou; uma fatia de ondas de luz vermelho-cereja, clareando para laranja-bahia, amarelo-ouro, lápis-lazúli, rosa-chá e verde-rã, até sumir no branco. Se o meu cristal não estivesse ali para decompor a luz do sol e refratá-la em freqüências perceptíveis pelo olho humano, só haveria uma poça de branco no chão do corredor e as cores não bailariam pelas paredes.

   
Mas o meu cristal, como todo o resto da humanidade em conjunto e individualmente, tem uma história. Há três anos, enquanto limpava os vidros da janela, a faxineira atrapalhou-se com o fio de nylon e deixou a bola despencar do segundo andar. O cristal bateu na quina do meio-fio da rua, lascou-se numa das facetas, mas não morreu. A faxineira, sim, quase enfartou; não tanto por ter deixado o meu cristal cair. Afinal, acidentes domésticos são esperados na relação de contrato trabalhista com faxineiras; ela se assustou de verdade quando viu que a bola não havia se despedaçado por completo, caindo de uma altura de doze metros. Depois de se elevar ao status de sobrevivente, meu cristal tornou-se ainda mais importante, belo e único. 

Poetas e escritores vivem de metáforas. Acredito que o desejo de fazer malabarismo com as palavras venha dessa mania nossa de ver poesia, lirismo e metáforas em todo lugar. Para mim, toda a gente é como um cristal verdadeiro, Swarovski ou não, por quem a luz branca refrata e, só por isso, derrama-se em cor. Dizem que um cristal quebrado não cola jamais, nem produz o mesmo som. Mas acho que esse ditado se refere àquelas taças finíssimas que se caírem ou se tocarem com um pouco mais de força num brinde de ano-novo, vão invariavelmente se espatifar em mil pedaços. Quando penso em pessoas e cristais, não os associo tanto a taças, meros receptáculos de champagne, vinho e água, mas às bolas maciças, como a que habita a minha janela. Se colam depois de quebradas, não sei; a faxineira falhou em encontrar o pedaço lascado na rua do meu prédio. Entretanto, refratam a luz da mesma maneira. Aliás, quanto mais facetado um cristal, mais caro ele é e, conseqüentemente, maior é o seu poder refratário.

Roland Barthes, sociólogo e filósofo francês, dizia que um "escritor não tem passado, pois nasce com o texto". Para ele, o autor-sujeito e o escritor-indivíduo morrem para dar luz ao leitor, objetivo final e único do texto. Sobre escritores onfalópsicos, que regurgitam seus temas, circunscrevendo-os aos próprios umbigos e repensando identidades, Barthes afirma que não é a pergunta trágica do louco - "quem sou eu?" - que orienta a obra, mas a pergunta cômica do desnorteado - "sou?". Ultimamente tenho sentido uma espécie de angústia, uma experiência metafísica que é a consciência de mim mesma; Sartre chamava esse sentimento de angoisse, que existencialistas como eu têm, por exemplo, quando se perguntam se o que escrevem é um auto-retrato disfarçado de crônica ou uma tentativa de descoberta de identidade que leva o poeta, impulsivamente, a fazer poesia. Minha mãe diz que eu penso muito em "quem sou", o que, segundo Barthes, aloca-me no rol dos malucos trágicos. Ocorre que minha angoisse tomou-me tão completamente que me vejo melhor posicionada junto aos risíveis desnorteados; fartei-me de querer saber quem sou. Já nem sei mais se sou. No processo, escrevo. E, perdida, tento me encontrar nas entrelinhas, nos códigos cifrados e nas rimas.

Ivy Gobeti, que escreve nesse blog e é tão ou mais tresloucada do que eu, tem uma forma simples, sucinta e genial de definir essa questão de ser: somos sujeitos simples, e/mas compostos.


Este sempre foi um dilema primal na minha vida de crises existenciais. Sou um sujeito simples, na acepção pura da palavra: evidente, humilde, crédulo, rudimentar, espontâneo, natural. O problema, para variar, é a contradição, essa maldita dicotomia que impede o maniqueísmo conveniente, fácil e confortável do mundo. Por isso a definição de Ivy é tão completa: sujeito simples, composto de ambigüidades e incompleto. O poeta  maldito e beberrão, Charles Bukowski - que deveria ter sido enterrado num caixão de cristal Swarowski - dizia que não é morrer que é ruim; porcaria mesmo é estar perdido. Porcaria ainda maior é estar perdido entre a simplicidade do sujeito e o risco de se tornar sujeito simplório ou sujeito oco, tudo isso sem perder a complexidade, mas não se transformar em sujeito pedante ou sujeito facetado.

"Mulher Chorando", Pablo Picasso

Se eu fosse mais esperta e seguisse os conselhos da minha mãe, iria me afogar num trabalho prático, hiper, super bem remunerado, fazer um pé de meia fantástico, comprar roupas elegantes, viajar para a Europa e aplicar botox três vezes por ano. Agora, se eu tivesse poderes mediúnicos ou realmente acreditasse nisso, além de seguir os conselhos da minha mãe, eu juntaria uma turma de peso em matéria de elucubração e crise existencial. Na minha conferência do além-túmulo, estariam presentes Sartre, Barthes, Bukowski, Freud, Goethe, Schopenhauer, Cervantes, Dostoievski e mais um bando de barbudos malucos. Claro que eu pediria educadamente ao Nietzsche para comandar o debate. E, através da minha pretensa mediunidade avançada, filmaria essa turma de fantasmas pensantes quebrando o pau ou, na pior das hipóteses, chutando o pau da barraca por não chegar a um denominador comum. Obviamente que a conferência seria, num momento posterior, divulgada. E mais óbvio ainda seria o retorno financeiro dessa empreitada. Ninguém perguntou, aliás nem sei se isso viria muito ao caso, mas o cenário do debate seria o meu quarto. E no inverno, para as almas penadas ficarem alucinadas com os arco-íris do meu cristal rodopiando nas paredes.     

10 comentários:

  1. Alberto Lacerda23.3.11

    Parabéns Roberta, Seus trabalhos são apaixonantes, Você sabe tocar a profundamente a alma dos seus leitores, com suas belas palavras.Espero encotra-la novamente nas entrelinhas, nos códigos cifrados e nas rimas.Um abraço!!

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  2. Muito obrigada, Alberto. Que elogio bom de se ler; um acalento à distância, de fato. Espero vê-lo sempre por aqui, onde podemos nos encontrar nos comentários e, de fato, nas entrelinhas. Abraço grande pra ti!

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  3. Quedas servem para tornar os cristais mais valiosos... Adorei! Lindo mesmo Roberta!

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  4. Obrigada, Nat querida. Somos isso, né? Cristais quebrados, mais fortes e andando pelo mundo. Força para a gente, querida!

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  5. diagnóstico:
    uma reunião REAL com amigos REAIS tiraria você rapidamente de tantos questionamentos. hey, moça, pra quem é tão cerebral: mais ação. (é o que me digo TODOS os dias). esse é o nosso mal.
    sinceramente, cara, a gente precisa se encontrar. mas você é muuuuitoooo difícil! próxima vez que for a MP podemos nos encontrar aí na sua city? posso ir te ver! (já que vc vir me ver é impossível!)
    ;)

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  6. Não é impossível. Estou no Rio todo fim de semana. Sem falta. Mas fico sem jeito de ligar, acredita...? Posso te ver ESSE fim de semana? Me liga, pra quebrar o gelo do não-ser que me consome...?

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  7. comassim fica sem jeito de me ligar??? ai, carai, quase tô te mandando à merda!! esse fds seria ótimo! só precisamos marcar um lugar conhecido pois não conheço as bandas de Jacarépaguá e não tenho GPS! rsrs então, bancando a Roberta, me manda seu cel por mensagem no Face... hehehe e aí te ligo! beijooo

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  8. Eu já te liguei. E hoje, inicia-se o nosso Sabá!

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  9. Pri Rohem12.4.11

    Beta, eu que o diga, como cristal que sou andei quicando bastante nos últimos meses... Lindo este texto!!!! Pri

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  10. Obrigada, moça. E, como cristal que é, refrata a luz em maior colorido a cada tombo.

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