2 de março de 2011

datas comemorativas


Nunca sei a data oficial do início do Carnaval. A bem da verdade, datas comemorativas e aniversários sempre foram o ponto-cego do meu calendário. Entender as raízes dos conflitos no Oriente Médio também se encaixa nessa categoria. Vestir-se de acordo com a moda da estação, renovar a documentação do carro, decorar nomes de ruas, ler mapas e chegar com uma hora de antecedência ao aeroporto também. Estas são apenas algumas das falhas com as quais aprendi a conviver pelo puro desânimo de continuar remando contra a maré para ser como a esmagadora maioria dos seres vivos pensantes e atuantes no mercado de trabalho.

De acordo com o site http://www.calendario2011.org/, o Carnaval começa dia 08 de março, em plena terça-feira. Esse também é o Dia Internacional da Mulher, data cuja relevância escapa-me à compreensão, uma vez que dez de dezembro já está reservado para a comemoração do Dia Internacional dos Direitos Humanos, declarados nessa mesma data, em 1948. Sempre pensei que, se há um dia especial para relembrar a Declaração Universal dos Direitos Humanos, não haveria muito senso prático na comemoração, por exemplo, do Dia Internacional da Mulher que, antes de ser um exemplar de homo sapiens sapiens portador de uma dupla de cromossomos X, é um ser humano com direitos plenos, universais e idênticos aos dos demais indivíduos, independentemente do gênero, da nacionalidade, da idade, do credo, da cor ou de quaisquer outros elementos de diversificação da massa.

Então, deparei-me com as seguintes páginas na internet:

http://www.arteducacao.pro.br/comemorativas.htm
http://www.dhnet.org.br/dados/calendario/index.htm

Tratam-se de calendários atualizados com datas comemorativas nacionais e internacionais. Para alguém como esta que lhes escreve, alguém que se dá conta da chegada da Páscoa apenas quando as Lojas Americanas começam a pendurar milhares de ovos de chocolate no teto, um calendário como este é a própria descoberta da pólvora, uma carta de revelações de proporções místicas. Em janeiro, por exemplo, há um certo Dia da Abreugrafia, o Dia do Enfermo e o Dia da Saudade. Quando li o vocábulo "abreugrafia", termo que obviamente desconhecia até escrever esta crônica, pensei numa forma distinta de escrita, envolvendo nanquim, penas de aves raras e saraus requintados do século XIX. Qual não foi minha decepção quando, ao pesquisar o termo, descobri que não passa de "um método rápido e barato de tirar pequenas chapas radiográficas dos pulmões, para facilitar o diagnóstico da tuberculose". O exame leva o nome de seu inventor, Manuel Dias de Abreu, que foi indicado ao Nobel de Fisiologia ou Medicina em 1950 e perdeu para dois americanos e um polonês, "por suas descobertas relativas aos hormônios do córtex adrenal, sua estrutura e efeitos biológicos".

Em fevereiro, o calendário lista os dias do zelador, do repórter e da amizade, que é, de fato, o dia de São Valentim, quando o mundo inteiro celebra o amor entre amigos, pais e casais. Em março tem o Dia do Sogro (?), em abril, o Dia da Sogra (??) e, em maio, o Dia do Silêncio (???). Em junho, há o Dia Internacional de Deus, ao que me pergunto se estão incluídas aqui entidades específicas como Alá, Jeovah, Buda, Shiva e Ganesha ou se o dia é de "deus" como o sagrado absoluto. Também é em junho o Dia Internacional do Orgulho Gay. Em julho, comemora-se o Dia do Orgasmo, em agosto, o Dia dos Solteiros, em setembro, o Dia do Amante, em outubro, o Dia do Anarquista, em novembro, o Dia da Criatividade e, em dezembro, o Dia do Numismata (????), que é o cidadão cujo objeto de estudo são as moedas e medalhas.

Citei algumas das datas comemorativas que, de fato, deixaram-me boquiaberta e que, mais do que isso, fizeram-me enxergar o Dia Internacional da Mulher como a celebração mais banal e corriqueira do mundo. Recomendo ao leitor que visite as páginas citadas acima e chegue às próprias conclusões do grotesco absoluto que é um calendário de datas comemorativas ou, melhor, o grotesco que as próprias datas representam. Aspirante a escritor é assim, sabe; depara-se com determinado fato e logo imagina histórias, situações peculiares e cenários pantomímicos. Dia 31 de julho, sábado à noite, homem e mulher decidem comemorar o Dia do Orgasmo na suíte Millenium do Motel Vip's, um mimo da Oscar Niemeyer, na "cidade maravilhosa". Se não houver vagas para julho, reserve para 15 de agosto, Dia do Solteiro. Agora imagine que, três horas de romance e rala-e-rola depois, em pleno Dia do Orgasmo, o homem não consiga fazer sua parceira atingir o clímax. Seria plausível, no momento em que fosse pagar a conta, pedir um desconto considerável pela frustração feminina intrínseca, agravada pelo dia em questão? "Leva a mal, não, chefia, eu tentei de tudo. Até sexo tântrico. Mas a patroa não gozou. Faz um precinho camarada para o amigo aqui, vai. Hoje é Dia do Orgasmo, meu bróder..."

E como se comportaria um ateu convicto no Dia Internacional de Deus? Acho mais do que razoável que possa tirar licença do trabalho, sem o dia descontado da folha de pagamento, e ficar em casa com os demais amigos ateus, comemorando a data com a leitura, em jogral, do último livro de Stephen Hawking. E o que fariam Fátima Bernardes e William Bonner no Dia do Silêncio? Apresentariam o Jornal Nacional em linguagem de sinais. Agora pense que, em pleno Dia da Criatividade, os irmãos Coen fossem acometidos por um vazio criativo e não conseguissem escrever, produzir, nem editar seu mais recente filme. Imagine a sensação esmagadora de culpa que Joel e Ethan compartilhariam. E o anarquista que, tendo um dia especial apenas para si, vê-se obrigado a votar ao lado de púberes democráticos de 16 anos?

O conceito de "vida pós-moderna" relativiza tanto os indivíduos nos níveis cultural, social e econômico que as fronteiras que não apenas os delimitam, mas que também os definem como indivíduos ímpares vão se flexibilizando e esgarçando até o ponto de não serem mais palpáveis. Tudo é tão veloz e imediato e, ao mesmo tempo, tão pouco real e impessoal que os contornos humanos se volatilizam, de maneira a fazer da identidade uma entidade embebida em éter. Em tempos de aglutinação, aldeias globais e conexões mundiais, o indivíduo nunca esteve tão alijado, obliterado e distante de si mesmo. Então é preciso que haja a diferenciação dos grupos, a separação de tribos, a constante reafirmação de identidades perdidas. Dessa forma, todo e qualquer público de massa pode - e deve, segundo os preceitos da "pós-modernidade" - ser considerado como um nicho específico de mercado. Todos somos categorizados, rotulados e compartimentados em esferas independentes de existência.

Assim, não somos apenas seres humanos com direitos universais. Não, já não nos basta ser humanos. Somos homens, mulheres, gays, simpatizantes, solteiros, casados, cornos, amantes, negros, anarquistas, ateus, anti-americanos, pró-americanos, alienados, ativistas, vegetarianos, intelectuais, burgueses, emergentes, naturalistas, cariocas, paulistas, mineiros, jovens, jovens adultos, adultos na terceira-idade, nerds, mauricinhos, patricinhas, riquinhos, pés-rapados, funkeiros, pagodeiros, portadores do vírus HIV, anoréxicos, obesos mórbidos, bariátricos, deprimidos, bipolares, borderlines, mães solteiras, mães casadas, mães viúvas, titias encalhadas, solteirões elegíveis, herdeiros, empreendedores, vagabundos, desempregados, trabalhadores do setor informal, blá, blá, blá.

Se na década perdida de 1980 os yuppies cunharam a ideologia "você é o que você tem", subexistente até o presente momento em que os seus olhos percorrem essas linhas, o século XXI vem para se contrapor à ditadura do "ter" por uma ideologia tão ou ainda mais opressiva: a ditadura do "ser". Você é o que é, e pronto. Então trate de se definir de uma vez e decidir em que time jogar, porque o que você tem não é apenas insuficiente, como também não o define, ao contrário, limita-o à não definição. Então, na ausência de fronteiras e na volatilização do ser pós-moderno, os indivíduos lutam, como nunca, por sua especificidade, mesmo que esta não passe de um rótulo enjambrado, mal-colado, ilegítimo e, muitas vezes, auto-imposto. Da tentativa de aglutinação de iguais, logo vem a sesseção e, desta, mais alienação. Não somos mais uma massa indistinta de humanos com direitos equânimes pautados pela ética universal, mas um bocado de grupos isolados entre si e aglutinados pela idéia vaga de que pertencemos a algo maior e mais definido do que nossa própria individualidade humana.

E acima de qualquer diferenciação de grupos, pairando com a leveza e o poder de uma divindade mitológica, há o Carnaval, o momento máximo da democratização sócio-econômica e cultural brasileiras. Com data oficial para começar em 8 de março, a folia já vem acontecendo no Rio de Janeiro, por exemplo, há três semanas, com os blocos invadindo a orla e as ruas pacatas dos bairros da Zona Sul. Os moradores torcem o nariz para a sujeira dos vendedores ambulantes, para a balbúrdia dominical, para a fedentina dos mijões descontrolados e para os agentes de trânsito, que só no último final de semana rebocaram quase trezentos veículos estacionados em local regulamentado nas ruas de Ipanema, Leblon e Copacabana. Detalhe importante: tais locais de estacionamento são regulamentados em dias úteis, a dois reais por hora, mas, aos sábados e domingos, cedem espaço para a alegria dos blocos.

O que significa dizer que, se o seu carro estiver estacionado em local permitido e os agentes de trânsito afixarem cartazes de "Proibido Estacionar. Sujeito a Reboque" a apenas dez minutos antes de o bloco passar por aquela rua, o seu veículo vai ser rebocado em pleno sábado e você terá que vivenciar um pesadelo na segunda-feira para retirá-lo do depósito da Prefeitura no Recreio dos Bandeirantes. Mas esses detalhes não passam de inconvenientes perfeitamente perdoáveis aos naturais do país do Carnaval, quando brancos, pretos, pobres, ricos, emergentes, gays, héteros, anarquistas e comunistas encontram-se plenamente nivelados em meio à massa de samba, suor, máscaras e fantasias. Então aqui, a individualidade e o direito de ser diferente e não se integrar à folia não são bem vistos. Se você não tem samba no pé, nem ziriguidum, meu amigo, é melhor não dizê-lo aos quatro ventos. E deixar para exercer seu direito à exceção para depois da quarta-feira de cinzas, isso se a sua cidade não for como a minha, onde o Carnaval dura longos, barulhentos e torturantes nove dias. Gente como eu enlouquece; e o Rei Momo, agradece.            

2 comentários:

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  2. que insano escrever, comentar eu mesma e, depois, eu mesma remover o comentário...

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