24 de março de 2011

do preconceito


Essa canção é antiga, de composição de Billy Brandão e Paulinho Moska. Fez sucesso na abertura de uma novela das oito da Rede Globo, "A Próxima Vítima", de 1995. A melhor e a pior coisa que podem acontecer a um cantor e compositor dito "fora do circuito" da música de alta rotatividade - ou seja, o tipo underground, desconhecido e destituído do poder do "jabaculê" das rádios - é ter a sua música como tema de abertura de uma telenovela da Globo. Também funciona se a canção for tema de um dos personagens principais da trama; foi assim com Oswaldo Montenegro e a sua "Lua e Flor", música de letra e melodia inspiradas pelo barroco mineiro, na época em que o compositor morava na pequena, interiorana e barroca São João Del Rey. A letra é uma poesia de um lirismo simples e belo, que retrata o amor em sua mais romântica e platônica forma: o amante ama mais ao próprio sentimento do que ao objeto de seu desejo. Ocorre que "Lua e Flor" embalou o romance igualmente platônico de Sassá Mutema, um bóia-fria simplório, interpretado por Lima Duarte, e a professora Clotilde, vivida pela musa Maitê Proença, na novela "O Salvador da Pátria", de 1989. Eu havia dito que emplacar uma canção numa novela da Globo é a melhor e a pior coisa para um artista fora do "circuito cultural". Explico-me: no caso de Montenegro, a flauta doce predominante em "Lua e Flor" e o tempo melódico acabaram caindo no desgosto do público e no sarcasmo cáustico da crítica que, até hoje, 22 anos depois de o Sassá Mutema ter amargado um pé-na-bunda da "professorinha", ainda atrela a obra do compositor àquela música específica. Por outro lado, não vejo como Montenegro teria sido conhecido pelo público - ainda que amaldiçoado por ele - a não ser pelo escopo estrondoso que uma novela atinge.

O caso do Paulinho foi menos trágico. Em 1995, quando a sua "O Último Dia" alçou-o a quinze segundos de fama, ele ainda era conhecido pelos fãs cativos como "Paulinho". Hoje, 16 anos depois do final da novela, ele é simplesmente o Moska. Alguns compositores, ainda que underground, detém versatilidade e conseguem escapar das garras e da sombra da novela das oito. Moska mudou seu estilo - na época minimalista, com um violão e um violoncelo apenas - a cada novo álbum lançado e, hoje, é reconhecido praticamente como um "artista completo", definição etérea demais para mim, mas que abrange algo como a união do pop com o eletrônico, lounge, indie e não sei mais o que exatamente. O Montenegro, que de versátil não tem nada e nem sabe usar um computador, não varia seu estilo e, por isso, manteve o mesmo nome, desde que a sua "Bandolins" venceu o Festival da TV Tupi em 1979 e, em 1980, "Agonia" ganhou o primeiro prêmio no Festival da Música Popular. Hoje, ele é conhecido pelo "grande público" - a malta em frenesi, como gosto de chamá-lo carinhosamente - como o hippie velho, sujo e chato de "Lua e Flor". Essa ignorância e o preconceito aviltante da massa devem-se a um indivíduo que atendia pela alcunha de "Bussunda" e participava de um programa igualmente aviltante, de nome "Casseta e Planeta". A um "artista" - que por sinal jaz nas profundezas sulfúricas de Hades nesse minuto - que se autodenomina "Bussunda", não hei de me dignar a traçar nem mais uma linha.


O preconceito cultural, social, ideológico, racial, de gênero e estético não são apenas aviltantes e torpes; são a prova cabal da ignorância, da mente obtusa e da capacidade idiotizante que o animal urbano, vulgo cosmopolita e/ou cidadão do mundo tem de repetir conceitos pré-estabelecidos, tal qual seus companheiros psitaciformes, que emitem "louro, curupaco, louro, dá o pé" como se estivessem decretando a independência de uma pequena Ilha na Polinésia, pobres aves. Entretanto, este é o papel do papagaio e, por atender a seu propósito, ele merece os louros - trocadilhos à parte - da vitória. Por outro lado, o papel de um indivíduo pensante não é repetir idéias, arremedar hábitos sócio-culturais encruados e muito menos formar sua opinião a partir da opinião de um outro alguém, já formada a priori. Para que pensemos, é preciso, antes de qualquer coisa, que estejamos de olhos abertos, para que as múltiplas realidades do mundo que nos circunscreve entrem-nos pelos olhos e atinjam-nos a consciência. Ora, olhar, ver e enxergar são coisas completamente distintas. Quem olha a sua volta, mas não vê, nem jamais enxerga, é incapaz de pensar por si mesmo. Ocorre que "ver" e "enxergar" a realidade representam, em última análise, experimentar, ouvir, provar, lamber, comer e deglutir essa realidade. E, venhamos e convenhamos, é muito mais conveniente e cômodo andar pelo mundo com os olhos vendados, regurgitar as próprias e já familiares experiências e, assim, não enxergar coisa alguma além da ponta do nariz e, por conseqüência, reproduzir conceitos pscitaciformemente.

Sim, pois quando enxergamos, tocamos e lambemos o mundo, nossos conceitos, pré-estabelecidos ou recém-adquiridos, nossos valores e crenças e todo o paradigma que nos sustenta, estátuas de ouro com pragmáticos pés de barro, são chacoalhados e postos à prova. O barulho do novo e do diferente incomoda, ensurdece, irrita e enerva. É melhor e mais prudente, confortável até, silenciá-lo. Assim, repetimos as palavras do "Bussunda"; ecoamos ideais já mortos; mimetizamos hábitos paternos; evitamos os "pretos" porque nossos bisavós o faziam; xingamos as "bichas" porque nossos colegas de trabalho esperam que o façamos; taxamos as "solteironas" de 40 anos - que usam roupas de "gatinhas" de 20 - como "putas" e "mal-amadas", porque o nosso tio Jorge, muito admirado por seus êxitos na Bolsa de Valores, pensa assim; rebaixamos os "crentes" ao nível dos leprosos, "aidéticos" e semi-analfabetos porque, afinal, "crentes" não passam de ex-viciados, fracos e acéfalos; evitamos comida caseira, tipo arroz, feijão, ovo, couve e angu, porque o sócio majoritário do escritório disse que isso é coisa de "caipira", "paraíba" ou "bóia-fria"; ouvimos rock porque é bacana e vamos arranjar encontros; achamos que as praias não devem ser freqüentadas por moradores da "Baixada" porque a Linha Amarela foi um erro político abissal; cuspimos na música sertaneja - de ontem, de hoje, não importa, já que não a conhecemos - porque alguém muito famoso cuspiu também, em entrevista ao Jô; não assistimos a filmes nacionais porque alguém disse, num almoço de natal, que eles são péssimos desde Mazzaropi, só têm nudez gratuita e tiram dinheiro dos cofres públicos; adotamos o Flamengo como o "time do coração" porque é a maior torcida organizada do país; torcemos o nariz para os pais que pagam uma viagem à Disney para os filhos adolescentes porque isso virou cafonice de novo-rico, e o supra-suma da beleza, da civilidade e da organização urbana é a Europa;  queimamos a bandeira norte-americana porque é esperado que sejamos anti-yankees, anti-Bush, anti-Obama, anti-Chevrolet, anti-Hollywood, anti-McDonald's, anti-Coca-Cola, antibióticos, anti-inflamatórios, antifúngicos, blá, blá, blá.

Não defendo o relativismo cultural dos sociólogos. Muita coisa é relativa, sim, e é bom que o seja, mas nem tudo. Qualquer expressão cultural, em qualquer parte do mundo civilizado que envolver barbárie e opressão, NÃO deve ser relativizada. O objetivo máximo do homem é evoluir culturalmente, socialmente, economicamente, pessoalmente. Subir escadas é basicamente o que fazemos diariamente, desde que adentramos o mundo. Por isso o preconceito e a reprodução cega e surda de valores pré-estabelecidos são, a posteriori, uma demonstração simiesca da barbárie e da involução humanas. Em outras palavras, não enxergar o mundo, não pensar por si próprio e bancar o papagaio do vizinho têm o mesmo valor de andar para trás, enfiar a cabeça num buraco de avestruz e assumir-se um boçal, a despeito do alto valor obtido no último teste de coeficiente intelectual.

Ter idéias próprias é perigoso. Há bem pouco tempo ainda se torturava, queimava, enforcava e decapitava um bom número de "recalcitrantes" por isso. Eram o preconceito e o poder de mãos dadas, uma dupla infalível para a degradação humana. Mas a evolução é contínua e inexorável, ainda que lenta e não facilmente perceptível aos olhos - especialmente se estes estiverem fechados ou voltados para o umbigo do ser. Pensar por si próprio, hoje, não leva ninguém ao cadafalso, aos "porões da ditadura", nem a uma cruz incandescente de labaredas mortais. A liberdade de pensamento, mais do que a liberdade de expressão, é a garantia da unicidade e da evolução do homem, não enquanto espécie, mas como indivíduo e cidadão. Pensar sozinho dói? Às vezes. E formar uma opinião legítima? Sempre. Mas é libertador. Pois não há grilhões mais resistentes do que os do preconceito e da repetição. Uma vez livres deles, abrem-se os olhos, enxerga-se o mundo, experimenta-se a vida, tomam-se decisões e, finalmente, torna-se gente.   

8 comentários:

  1. Parei no ad hominen ao Bussunda.
    Até aguentei a defesa heróica do esquizóide - mas ad hominem é algo vil...

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  2. Alberto Lacerda24.3.11

    Concordo com você, acho que a maioria das reações de fundo preconceituosas é elaborada a partir de premissas sem grande profundidade.Ou seja ,segue-se apenas o que já está pre-estabelecido.Sem mesmo se dar ao trabalho de pensar como seria ser diferente.Parabéns pelo texto. Maravilhoso!!

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  3. Obrigada, Alberto, como sempre. Bom tê-lo aqui. E melhor ainda saber que sempre vai haver um comentário seu. Abraço grande!

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  4. Que pena que você parou no meu argumento contra o Bussunda, amigo. Vil é categorizar um artista de esquizóide, quando, na verdade, eu não entrei nesse tipo de demérito com relação ao Bussunda. Pena não ter lido o texto até o final. Só me atiça a curiosidade o seguinte fato: se não leu a crônica por inteiro, para que comentar...?

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  5. hey ya.
    entrar nesse campo minado do não-preconceito é arriscado, Beta. há quem possa pensar que você foi preconceituosa com o Bussunda... por ele fazer um humor que não toca a você, não é artista?
    não o estou defendendo, é só uma reflexão. sua opinião em relação a ele não estaria encharcada do seu amor pelo Oswaldo? afinal, é tão difícil ser imparcial quando há sentimentos envolvidos.

    no restante: o que falta é informação, como sempre, para os que seguem opiniões "estabelecidas", de massa. falta leitura, falta tbm querer colocar o pescoço pra fora da fumaça.

    fiquemos felizes porque sabemos construir nossos pensamentos. cheers! =]

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  6. Obrigada, irmã. Eu não tenho preconceito sobre o Bussunda, na verdade. Ele é que fazia um tipo de humor preconceituoso, até pondo gente acima do peso, como ele, na linha de fogo. Beijos, gata-mor!

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  7. Só no último parágrafo, a autora se vestiu de Roberta. Exceto por esse trecho, é lindo como a ela se coloca caridosamente como mais uma entre tantos que apenas repetem...
    repetem...
    petem...
    tem...
    mm.... mmm... .
    mmmm .mmuudo.

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  8. Ai que saudades, Matheus... Saudades, dades, des... Quantas vezes eu preciso dizer a mim mesma que os seus comentários são sempre os que mais refletem a mim? Adoro-te, sempre.

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