7 de março de 2011

incongruência

"Gli Amanti", René Magritte, 1928

a contradição assusta e dilacera
tanto quanto as certezas absolutas
pois sob o facho de luz branca da convicção
não há táticas nem trincheiras onde se refugiar

entre as linhas tortas da incongruência
também não há clausura nem asilo
e a antinomia, sustentáculo das almas
expõe a carne crua em suas mazelas

o enleio, hipnótico em cores difusas
e ardiloso na ausência de contornos
pinta um quadro adventício de se contemplar
onde a retina vaga entorpecida, à deriva do olhar

há dias em que esse olhar é todo terra
vastidão de solo argiloso, fertilizado em verde
onde os pés sonham percorrer e fincar raízes
no terreno fagueiro do conhecido

mas a dualidade é fruto legítimo da alma
que, maduro e prenhe, rebenta em sementes
que vazam por poros, olhos e fluidos
e anseiam pela corte de um vendaval

que as leve, gérmen, para longe do barro
estufa que nutre, aquece, mas sufoca
e as sopre para além do horizonte
onde há sal, espuma, areia em neve e velas

a vastidão da terra firme, bem o sei
é a mesma do mar inconstante, pai da visão
onde olhos famintos, pairando sobre a bruma
tomam a forma de farol, apontando para o amanhã

há neblina espessa e frio cortante
no archote desse círio do olhar
que solitário, ao topo da colina
ilumina tanto certezas de terra quanto ambiguidades de mar

entre a restinga estreita e a amplidão do golfo
há uma ilha salobra de hesitação e visgo
que percorro às cegas, em temor
de onde não saio e para aonde não chego

é este o limbo de greda e mar
raízes, gomos, canais e naus
onde marejam meus olhos
e nele estancam os mais impetuosos anseios

na certeza dos traços retos e firmes
não há o escudo da penumbra
esta que não passa de um embuste
onde o conforto da dúvida adormece o querer

mas na ventura curvilínea da dicotomia
não há sombra, incertezas nem insídias
apenas a mais liberta e custosa das conquistas
o olhar aquilino, que enxerga ao largo do estuário

brandão certeiro, amplo e incandescente
que desvela o nevoeiro e coa a borra d'água do solo
para que entre a terra firme e o mar alto
não resista um só grão do deserto de dúvidas

apenas a bravura crua, natural e aguda da visão
que enxerga, esquadrinha e escolhe
num vislumbre de audácia, na migração das andorinhas
uma terra para estancar, ou um mar para velejar.  

Nenhum comentário:

Postar um comentário