10 de março de 2011

olá, como vai?

eu vou indo e você, tudo bem?
olha, essa é do paulinho da viola.
pois é; o chico cantava muito essa...
já faz um tempo tão comprido desde o nosso último encontro.
é verdade; feito sombra de fim de tarde.
sabia que intelectual chama por de sol de "ocaso"?
já tinha ouvido falar; mas não fazia idéia.
pois é... desculpe a ferrugem em minha mente, mas é que...
não se preocupe; todos estamos ficando esquecidos mesmo.
é verdade; mas é que não me lembro mais do seu nome, garota...

[silêncio de despropósito]

eu sou a Expectativa; muito prazer.
ora, o que é isso, Expectativa, não precisa se apresentar para me fazer sentir culpado.
força do hábito; deveria ser sempre um prazer para todo mundo nutrir expectativas.

[sorrisos amarelos]

pois é... mas nem sempre, eu diria.
veja você como são as coisas; também me esqueci do seu nome...
ah, que alívio; assim a culpa não me pesa tanto nos ombros!
então...?
claro, claro, Expectativa; eu sou o Pragmático, lembra agora?
prazer, Pragmático.
mas nós já nos conhecemos, moça...
é verdade; e nem há tanto prazer assim em ser pragmático, há?

[silêncio reflexivo]

bom, isso depende, Expectativa.
depende de que?
da funcionalidade das idéias, oras.
desculpe minha ignorância, Pragmático, mas ainda não compreendi...
o prazer do pragmatismo é a certeza, sabe; gente como eu só considera algo necessário se tiver valor prático.
e se não tiver?
imagine uma discussão sobre várias teorias; se não houver qualquer diferença prática entre elas, ou seja, que funcione praticamente, então todas as alternativas significam praticamente a mesma coisa, e não há razão para discussões; essa garantia da funcionalidade das coisas, essa certeza de um retorno funcional é extremamente prazeroso, você não concorda?
sei lá se concordo com tanta certeza assim; eu espero sempre um algo mais de quase tudo.
mesmo que as suas expectativas sejam vãs?
e por que minhas expectativas haveriam de ser vãs, Pragmático?
porque não têm o menor calço da prática e do valor funcional em si mesmas, Expectativa; esperar é a maior prova de uma aposta feita às cegas, sem a menor garantia de retorno.
é... nisso você até que tem razão; eu, por exemplo, jamais imaginaria encontrar você, justamente você, por aqui.
por que não?
porque estamos numa pracinha, no meio de um monte de gente indo e vindo à toa, esperando o tempo mudar; quer dizer, qual é a funcionalidade prática de uma pracinha com crianças, idosos, e uma cambada de gente sem nada para fazer?
essa é muito fácil, Expectativa; o lazer. 

[silêncio constrangido]

faz sentido, meu amigo; eu estava confundindo funcionalidade com ocupacionalidade.
são coisas distintas; até o ócio pode ter uma finalidade prática em si mesmo; mas, quer dizer que a senhorita acha que um cara como eu não combina com pracinhas?
deixa disso, Pragmático; a gente não se vê desde os tempos de colégio; eu nem sabia exatamente o que esperar de você; afinal, todo mundo muda, não é?
isso é tão absolutamente típico de você; esperar que as pessoas mudem como as marés e, mais do que isso, pressupor que, na ausência de mudanças, você possa esperar, melhor ainda, conceber uma reação pela pessoa...
você continua o mesmo garoto articulado da faculdade, Pragmático; imagino que tenha tido bastante sorte na carreira.
que estranho; você fala isso como se a sua carreira não tenha sido como você esperava...
mas não foi, mesmo; acabei saindo daquele escritório, lembra? aliás, eu nem deveria ter terminado a faculdade...
você era bastante aplicada, pelo que me lembro.
mas não tinha talento.
e desde quando é preciso de talento para ser contador, Expectativa?
eu acredito que é preciso talento para qualquer coisa na vida; imagine esperar satisfação pessoal num trabalho para o qual não se leva jeito...
satisfação profissional, você queria dizer.
como assim?
Expectativa, sua moça crédula e ingênua... esperar satisfação pessoal através do trabalho não tem finalidade prática alguma. Busca-se satisfação pessoal na vida pessoal, e não na vida profissional.
você é o tipo de pessoa que compartimenta a vida em vários e diferentes lugares, de acordo com a finalidade das coisas, como se estivesse separando as sobras do jantar e guardando tudo em vários potes plásticos; e o pior é que deixa tudo lá, arrumado e meio esquecido, e não espera nada de ninguém...
a senhorita é que sempre mistura alhos com bugalhos e espera que, num passe de mágica, a satisfação plena da sua vida chegue voando de balão.
não, senhor.
sim, senhorita; você passa a vida, esse campo de batalha, esperando de peito aberto.
e você deixa a vida passar, Pragmático, se defendendo nas trincheiras.
a sua expectativa é ofensiva, moça.
para você, que não suporta ser alvo, nem depósito de confiança.
então esperar é confiar, Expectativa?
mas não é esse o propósito de quem espera? eu sei que a satisfação não vem por si só; mas me agrada a idéia de viver num mundo em que os universos se comuniquem, onde as realidades sejam intercambiáveis.
qual a finalidade disso?
nem tudo tem que ter uma finalidade, Pragmático, seu moço tolo e obtuso; certas coisas são como e porque são e pronto.
isso não faz o menor sentido, Expectativa.
e por que tudo tem que fazer sentido para você para ser bom, para valer a pena?

[silêncio consternado]

sei lá porque; sou assim e pronto.
viu? foi o que eu acabei de dizer.
eu acho que o sentido das coisas em si mesmas torna desnecessária a vontade de esperar por um resultado surpreendente; eu não gosto de esperar; prefiro analisar e categorizar as coisas; esperar dá muito trabalho...
que estranho; você fala isso como se já tivesse esperado por alguma coisa algum dia...
e esperei, mesmo; esperei ser um dos sócios daquele escritório, lembra? aliás, eu nunca deveria ter começado a trabalhar lá.
você era perfeito para o cargo, pelo que me lembro.
mas não tinha espírito apostador.
e desde quando é preciso de 'espírito apostador' para ser contador, Pragmático?
desde que os clientes passaram a esperar pró-atividade de nós; ultimamente, parece que todo mundo espera algo de alguém.

[silêncio constrangido]

então parece que você está em minoria, não é, Pragmático?
balela; qualquer um gostaria da segurança das minhas certezas e funcionalidades; o problema é essa aura romântica que envolve aqueles que esperam, esse mise-en-scéne.
quer dizer que eu, por exemplo, alguém que reage de acordo com as expectativas atendidas ou não, sou uma romântica, uma dama teatral?
não foi isso o que eu disse, Expectativa.
não disse em linguagem semântica, meu caro, mas gritou em linguagem pragmática.
você até que é bem articulada para alguém que espera tão pouco de si mesma, Expectativa.
e você, em sua defensiva, até que ataca muito habilmente, Pragmático. 

[silêncio de remorso]

a você, minha cara, às pessoas, a prática não se aplica; essas coisas só funcionam em teoria, acho.
então você não trabalha com pessoas? não convive com gente?
falo de profissionais, Expectativa; profissionais é que não deveriam projetar suas esperanças em colegas de trabalho.
dessa vez é você que está misturando alhos com bugalhos, Pragmático.
em que sentido?
pessoas, profissionais ou não, pais, filhos, amantes, irmãos, companheiros, todos projetam suas expectativas na esperança de que haja melhorias, meu amigo.
por isso projetar expectativas não tem funcionalidade prática; se não houver melhorias, haverá frustração.
agora entendo essa história de 'espírito apostador'; e se houver melhorias, Pragmático?
não serei eu a pagar para ver, Expectativa; meu trabalho e minha essência são analíticas, não dedutivas.
mas muitas vezes a dedução conduz a uma peça que faltava na análise; por isso intelectual fala num certo 'raciocínio lógico-dedutivo'...
já tinha ouvido falar; mas não fazia idéia; não nesse contexto.
nesse compartimento da sua realidade, você queria dizer.

[silêncio de cumplicidade]

+

[sorrisos brancos]


...

2 comentários:

  1. Desde pequeno que no meu fantástico mundo imaginário, convivo com diariamente com dois Matheus, que passam longe de ser aquele "anjinho" e "capetinha" que ficam sobre os ombros, na imagem esteriotipada pela nossa cultura. Mas são dois Matheus, imparciais e que discutem vários assuntos da minha vida, cada um tentando me convencer de alguma coisa.

    Enfim, eu vi muito claramente isso quando imaginei vc escrevendo esse texto. Uma Rohen seria o pragmático e a outra a Expectativa. Acho esse duelo de consciência uma coisa sensacional.

    Percebi também que muito da Expectativa e do Pragmático se encontram em Márcio e Bruno de Insólito.

    Desvendar seus olhos é fácil. Difícil é ver a cor da sua ires. Quanto mais leio esse livro aberto, mais fechado fica o caminho ao entendimento.

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  2. É verdade, é verdade. Mas,sabe de uma coisa...? Eu queria mais pragmatismo em mim, querido. É expectativa demais para pouco pé-no-chão, acho. Quanto a Bruno e Márcia... É como eu digo sempre: a obsessão é sempre a mesma; nossos temas também. Desvendar a mim é extremamente fácil, Matheus. Entender também. Você sabe disso, meu caro, caríssimo...

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